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Ana Mary C. Cavalcante



Da editoria do Vida & Arte
jornal O Povo, 01.07.2000


 

A escritora cearense Ana Miranda (foto), que mora em São Paulo, abre seu "Caderno de Sonhos". Numa entrevista por e-mail, ela escreve sobre devaneios e literatura. As ilustrações do livro são da escritora.
 

As anotações tinham se perdido e, um dia, a mãe da escritora lhe mandou umas coisas num caixote, acharam-se os escritos da adolescência literária. Ana Miranda, cearense radicada no Sudeste, publica Caderno de Sonhos. Uma sobra da década de 1970, época em que tinha 21 anos, estava grávida do primeiro filho e desenhava seres fantásticos. ``É um roteiro de recordações confusas de minha juventude. Me faz lembrar do dia em que fui comprar roupinhas para o bebê que ia nascer, ou quando estava decidindo se devia ou não casar na Igreja, ou a minha incapacidde de me comunicar com as pessoas, pois eu era muito calada, hermética'', dá a pista.
 

Na entrevista, Ana Miranda mostra os atalhos da literatura que escreve: fala do seu processo de aprendizagem, da negação às regras vigentes, dos seus devaneios coletivos. ``Os sonhos revelam o mundo inconsciente. Quem nunca sonhou com a nudez pública, com ondas ameaçadoras, com vulcões, com monstros, com ladrões, com sexo?''.


Vida & Arte - A senhora aponta suas anotações oníricas, feitas na adolescência, como um ``primeiro livro''. Ao mesmo tempo, as identifica como ``uma forma pré-literária''. Como a senhora caracteriza sua última obra, Caderno de Sonhos, que é uma parte de tais anotações?

Ana Miranda - O Caderno de Sonhos é meu primeiro livro de prosa. Antes dele escrevia, quando criança, livrinhos de poesia, dos quais só restou o Tocador de Esquisitices, que fiz com a minha irmã, Marlui Miranda. O Caderno... tem forma pré-literária no sentido de que anuncia minha literatura, sem ainda ser ela mesma. Lá estão meus personagens, minha maneira de narrar, de sentir o mundo. Não deixa de ser literatura, nem deixa de ser ficção, embora seja uma criação involuntária. Parecem pequenos contos absurdos.


V&A - Quais os liames entre devaneios e literatura, presentes na sua escrita atual, já que a senhora vê nos sonhos um fundamento de sua vida literária?

Ana Miranda - O romance é um gênero de devaneio. Nos devaneios ele se torna mais literário e menos dramático, no sentido de dramaturgia teatral, ou cinematográfica. E é na liberdade da mente, que encontramos nossos personagens, nossas tramas, nossos cenários, nossos diálogos. Todas as obras literárias têm um certo quê de sonho.


V&A - Por ser o primeiro livro, elaborado na adolescência (ainda que editado somente na maturidade), a senhora diz que Caderno de Sonhos ``tem o frescor da juventude, uma ingenuidade e uma pureza que não mais conservo''. Que avaliação crítica a senhora faria de seus escritos, desde então?

Ana Miranda - Hoje estou contaminada pela imensidão de livros que li, pelo que aprendi. Passei por uma longa experiência de aprendizagem de técnica literária, por um processo de construção de minha dicção e minha persona literária, e depois por um processo de libertação da mente, para trabalhar de uma forma mais experimental com a linguagem. Meu estilo foi construído com o barroco, o parnasianismo, o romantismo, entre outras escolas literárias. Isso tem vantagens e desvantagens. Claro que não posso comparar o texto singelo do Caderno de Sonhos com o texto elaboradíssimo do Desmundo, por exemplo, que é uma recriação da linguagem do século 16. O Caderno... tem um estilo kafkiano, conta episódios absurdos como se fossem a verdade mais natural. Para dar esse sentido mais realista kafkiano, mudei o tempo da narrativa do caderno original, que era: Eu estava numa praia, Eu ia sair, eu via. Ficou no tempo presente. O efeito disso é extraordinário. Mas eu só pude perceber esse artifício hoje, porque tenho mais conhecimento de técnica literária.


V&A - Como a senhora, se colocando no papel de leitora, interpreta os sonhos descritos no livro? Há imagens/ações bastante recorrentes, como o sexo/erotismo, os seres fantásticos, a presença de crianças e uma perene sensação de angústia...

Ana Miranda - Sou uma leitora muito consciente e deformada pela minha familiaridade com a palavra. Leio sempre tomada pela síndrome da mulher verde, daquela história do artista que pintou uma mulher verde, e alguém que estava olhando o quadro se espantou, e disse, ``Nunca vi uma mulher verde.'' O artista respondeu: ``Isto não é uma mulher, é um quadro.'' Para mim os livros são sempre livros. O erotismo não é erotismo propriamente, mas uma narrativa carregada de sentimentos eróticos, no sentido mais amplo, de Eros, o Amor. Os seres fantásticos são palavras, a sensação de angústia são palavras, as crianças são palavras. Mesmo quando leio livros alheios, vejo palavras, e me interessa mais o efeito das palavras, mas aquilo tudo não passa de um livro. Cada um tem um livro dentro de si, e cada palavra, ou frase, ou romance, nos toca de uma maneira diferente. O meu Caderno... é um. Cada pessoa que o lê cria seu próprio caderno de sonhos.


V&A - A senhora, aliás, tem uma visão da literatura como ``uma coisa absolutamente aberta''. Não é arriscado considerar a literatura como algo ``sem regras''? Sendo assim, como se avaliar um texto que se pretende literário?

Ana Miranda - Eu aprendi as regras para depois me libertar delas. Gosto de conhecer a técnica literária, me ajuda a realizar o trabalho, e ela veio naturalmente, por minha curiosidade, por minha assiduidade no ato de escrever. Mas cada escritor deve ter sua própria dicção, reconhecível, única. Somente assim ele adquire uma expressão na história literária. O Borroughs criou para ele o método cut-up, que consistia em recortar palavras de jornais e soprá-las sobre um papel. O acaso do vento era o seu texto. Ele juntava assim as palavras. Não deixa de ser uma regra, mas é dele. Era isso que eu queria dizer com não ter regras. Nunca se deve avaliar um texto pela sua observância ou não das técnicas literárias, ou das regras vigentes.


V&A - Numa entrevista, há dois anos, a senhora declarou que nunca imaginava se tornar escritora. Como a senhora passou dos seus escritos "pré-literários" - as anotações dos sonhos, os diários de toda menina, as poesias com a irmã - à Literatura? Em que momento (ou de que forma), a senhora percebeu que "tinha virado" escritora?

Ana Miranda - Para mim tudo o que se expressa pela palavra é literatura. Mesmo outras linguagens podem ser literatura. A fala é literatura. Há a literatura de bula de remédio, de manuais de uso, de jornalismo, de informática, de engenharia, de jargão acadêmico, de crítica, de ficção. Sempre fui ficcionista, mesmo meus diários eram ficcionais, pois eu mudava a realidade e criava um mundo imaginário. Percebi que era escritora quando publiquei meu primeiro romance, Boca do Inferno. Saiu nos jornais, compraram o livro, leram. O mundo me disse que eu era escritora, fui aceita. Mas eu vinha me transformando numa escritora nos dez anos anteriores à publicação do livro, pois escrevia todos os dias uma grande quantidade de horas e só pensava nisso, tinha dedicação integral ao trabalho de escritora.


V&A - Apesar de ser reconhecida como autora de romances históricos, a senhora se aventura por outros gêneros literários (como a poesia e a novela), ainda que não tenha a mesma resposta positiva dos leitores e da própria crítica. É importante para o escritor arriscar outros caminhos, mesmo que ele não domine suas técnicas? Para ele, não vale a máxima que diz não mexer em time que está ganhando?

Ana Miranda - Gosto dos escritores que mantém uma linha, um estilo, como Guimarães Rosa, gostaria de ser como ele, ou como Machado de Assis, que sempre escreveu com a mesma verve, o mesmo estilo, embora tenha escrito romances, contos, poesias, crônicas, jornalismo, crítica. Mas eu não escrevo o que eu quero. Escrevo o que eu sou. Sou versátil, e tenho muitas solicitações interiores e exteriores de outros textos, estilos, gêneros.


V&A - A senhora tem sonhado com o quê, ultimamente... Quer dizer, qual será seu próximo projeto literário?

Ana Miranda - Tenho sonhado com meu neto Raphael, que mora na Califórnia e vai fazer um ano em julho. Sinto muitas saudades dele. Estou escrevendo um romance na linha do Desmundo e do Amrik, ficcção histórica narrada na primeira pessoa por uma africana escrava que foi separada da filha pequena e passou a vida a procurá-la. Estou há dois anos trabalhando nesse romance, espero terminar logo. Às vezes sonho com ele.


Caderno de Sonhos - livro de Ana Miranda. Dantes Editora, Rio de Janeiro, 2000. 114 páginas. R$ 22,00.
 

 

Ana Miranda

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15/04/2005