Feliciana, a romântica
Henrique Araújo
especial para O POVO
Reconstrução
histórica, metalinguagem, tom confessional.
essas são algumas das características de
dias e dias, da cearense Ana Miranda
Às vésperas de lançar seu novo romance, Yuxin, alma
("O livro homenageia Capistrano de Abreu, autor de
um precioso vocabulário da língua caxinauá, que
contém longos depoimentos de dois índios dessa
tribo"), previsto para janeiro do ano que vem, a
escritora cearense Ana Miranda conversa com O
POVO sobre Dias e Dias. Publicado em 2002,
vencedor do prêmio Jabuti de 2003 e indicado ao
vestibular da Universidade Federal do Ceará em 2009,
a obra fala da espera de Feliciana, uma poeta sem
poemas. Conta a história da menina que se apaixona
por um par de versos escritos por Antonio Gonçalves
Dias (1823-1864), autor de Canção do Exílio e I-Juca
Pirama, e fixados a lápis no mesmo papel de embrulho
das compras que havia sido incumbida de fazer. O
cenário é a pequena Caxias, no Maranhão, nos idos do
século XIX.
O POVO - Dias e Dias fala de poesia e amor,
mas também do tempo. Tempo consumido de um e outro
modo: por quem ama e é amado e também por quem
apenas ama. O que é a espera para a escritora Ana
Miranda?
Ana Miranda - A espera para mim sempre foi
insuportável, não consigo esperar, sou impetuosa e
vou imediatamente resolvendo tudo, mesmo quando
ainda faltam elementos para que a decisão seja
tomada de forma mais sensata, assim costumo errar,
muitas vezes erro, porém jamais fico estagnada, sou
impaciente quanto à perda de tempo, tenho a sensação
de que a vida é muito breve para que possamos perder
algum instante. Agora, com a idade e a experiência,
tenho sido um pouco mais paciente quanto à perda de
tempo. Um dia ganhei um livro de um amigo médico, A
arte de não fazer nada, percebi que ele estava me
dando um remédio, desde então, quando sento numa
rede, ou fico olhando o horizonte, sem estar
meditando em algum trabalho, não me sinto tão mal.
OP - Ainda sobre o tempo. A incrível e
devotada espera de Feliciana a torna uma espécie de
mártir, uma figura que, ao fim da história, encanta
e enternece. Como essa personagem foi construída?
Ana Miranda - Miguel de Unamuno dizia que o
nome é a própria coisa. E Feliciana é seu próprio
nome. Seu nome registra o seu motivo central, o seu
cerne, seu nascimento, o baldrame de sua construção.
Ela representa os diversos aspectos do Romantismo,
ela é o espírito romântico, ou melhor, ela lida com
os aspectos do Romantismo, como o eu sensível, a
busca do próprio rosto, a brasilidade, a idealização
do amor impossível como perpetuação do desejo, a
perpetuação do desejo como símbolo da arte, pois a
arte é a não-realidade, a arte é a possibilidade de
sonharmos. Ela deseja ser romântica, deseja ser
infeliz, assim como imagina que seja Antonio, que
sejam as musas do Romantismo. No entanto, ela ri, e
é feliz, vive apenas de maneira vicária a
experiência da poesia, da arte, da vida sensorial, e
extra-sensorial. Feliciana ficou anos e anos sendo
gerada por meu inconsciente, e nasceu assim, com os
traços românticos, com as características de minha
pessoa naquele momento de vida, me voltando para mim
mesma, para minhas origens. Veja que os olhos de
Feliciana são verdes apenas quando ela olha o mar do
Ceará, quando ela sai pela primeira vez de sua
cidade e vem para o Ceará.
OP - Não custa perguntar: por que Feliciana
decide aguardar tanto tempo por seu fugidio Antonio?
Ana Miranda - Feliciana não está esperando,
ela aproveita cada instante para exercer sua arte,
que é a arte de sonhar. Ela não está interessada em
nada mais do que na luta para manter o sonho vivo,
para impedir que a realidade possa sufocar o sonho.
Menina pequena, ela se fascina ao ler um poema, e
tem um sentimento platônico, no sentido de ver
apenas o que deseja ver. O que ela viu no poema foi
a possibilidade de, por meio da literatura, da arte,
transcender uma existência material e limitada,
conforme a vida que esperava as moças interioranas
do século 19, conforme a vida de sua madrasta,
Natalícia. Feliciana tem acesso a Antonio, ele está
sempre ali, por perto, é vizinho de Feliciana, eles
chegam a se encontrar casualmente, cara a cara, na
ocasião da homenagem ao imperador, mas ela foge, ela
sempre foge da possibilidade de realizar a relação
com Antonio, ela não manda as cartas, ela não se
aproxima, ela foge, ela é quem é fugidia, ela é puro
sonho, e mesmo no final, quando ela percebe que a
matéria de sonho que significava Antonio está por
terminar, ela troca esse por outro sonho, quando ela
ouve o bandolim do professor Adelino, ao final do
livro. Observe que ela não vê o professor a chegar
no cais, mas ela ouve o bandolim, ela então troca o
sonho por outro sonho, a arte por outra arte, a
poesia pela música. O professor Adelino aprendeu a
lidar com Feliciana, a conquistar seu coração,
primeiro ele leu em voz alta os poemas de Gonçalves
Dias, fazendo os olhos de Feliciana projetarem o
sonho nele, depois ele adquiriu um bandolim,
desviando Feliciana do sonho poético, levando-a ao
sonho musical. Essa é a minha interpretação.
OP - Através das páginas do livro temos
acesso ao mundo afetivo do poeta romântico Gonçalves
Dias. Sei que Dias e Dias foi inspirado num poema
não-publicado por Rubem Fonseca. O que exatamente a
motivou a escolher Gonçalves Dias como matéria de
romance?
Ana Miranda - Como sempre, os meus
personagens históricos são, mais do que fontes de
inspiração, fontes lingüísticas. O que me motivou
foi a nova leitura que fiz de sua obra, motivada
pelo poema de Fonseca, em que ele se mostra bom
conhecedor dos segredos amorosos de Gonçalves Dias.
Intrigada sobre como Rubem Fonseca conseguiu
penetrar esses mistérios pessoais e velados pelo
tempo, parti para uma leitura do outro, no caso o
autor, no caso o Gonçalves Dias, e esse encontro com
o fantasma de Gonçalves Dias despertou em mim uma
paixão literária que corresponde, mais ou menos, ao
sentimento que represento em Feliciana. Ou melhor,
foi esse sentimento de afeto por Gonçalves Dias, de
compaixão por sua vida tão esmagadora e humilhante,
foi um sentimento de querer proteger esse homem tão
frágil e desamparado, mas ao mesmo tempo capaz de
uma rara força literária, foi por ternura por esse
artista que tirou de seu sofrimento os seus versos,
suas palavras, admiração por sua coragem ao embater
contra normas e regras e limitações... Foi tudo isso
que me motivou, e ele se tornou uma verdade para
mim. Como uma experiência real.
OP - Para a construção do livro, você
pesquisou cartas e documentos sobre o autor. Como
foi esse trabalho de coleta de material e filtragem
e que aspectos da vida do poeta mais a
impressionaram?
Ana Miranda - Foi dos mais simples, as cartas
estão reunidas em livro, uma boa seleção feita por
Alexei Bueno, todas as cartas substanciais estão
ali, e Gonçalves Dias deixou uma obra epistolar
fabulosa, uma das melhores e mais confessionais da
literatura brasileira, pois seu interlocutor era um
confidente, amigo íntimo e conhecedor de suas
frustrações amorosas, além do mais, Gonçalves Dias
escrevia perfeitamente, mergulhava nos assuntos,
esclarecia, sugeria... dava pistas da vida,
misturava vida e arte... tanto com as cartas, como
com os poemas líricos. O meu modo de escrever parte
de uma crença que eu tenho, de que não escrevemos o
que queremos, mas escrevemos o que somos. Então, eu
tento ser cada vez mais aquilo que almejo. E me
transformei em Feliciana, para me aproximar
subjetivamente, e com liberdade, de um tema que
pertence a todos nós, brasileiros. A narração na
primeira pessoa é totalmente subjetiva. Expressa uma
opinião pessoal. O que mais me impressionou em
Gonçalves Dias foi a sua força poética, o seu
talento indestrutível, tudo parecia ser inimigo de
sua arte, no entanto, tudo ele transformava em
alimento, ele deu sua alma, deu sua felicidade em
troca da realização como criador.
SERVIÇO
Dias e Dias (Companhia das Letras, 2002. 243
páginas), de Ana Miranda. Preço: R$ 39,50.