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Ana Miranda 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

Ana Miranda

conversa com

Henriques Nunes

sobre Gonçalves Dias

 


 

 

Feliciana, a romântica

Henrique Araújo
especial para O POVO

Reconstrução histórica, metalinguagem, tom confessional. essas são algumas das características de dias e dias, da cearense Ana Miranda

 

Às vésperas de lançar seu novo romance, Yuxin, alma ("O livro homenageia Capistrano de Abreu, autor de um precioso vocabulário da língua caxinauá, que contém longos depoimentos de dois índios dessa tribo"), previsto para janeiro do ano que vem, a escritora cearense Ana Miranda conversa com O POVO sobre Dias e Dias. Publicado em 2002, vencedor do prêmio Jabuti de 2003 e indicado ao vestibular da Universidade Federal do Ceará em 2009, a obra fala da espera de Feliciana, uma poeta sem poemas. Conta a história da menina que se apaixona por um par de versos escritos por Antonio Gonçalves Dias (1823-1864), autor de Canção do Exílio e I-Juca Pirama, e fixados a lápis no mesmo papel de embrulho das compras que havia sido incumbida de fazer. O cenário é a pequena Caxias, no Maranhão, nos idos do século XIX.


O POVO - Dias e Dias fala de poesia e amor, mas também do tempo. Tempo consumido de um e outro modo: por quem ama e é amado e também por quem apenas ama. O que é a espera para a escritora Ana Miranda?
Ana Miranda - A espera para mim sempre foi insuportável, não consigo esperar, sou impetuosa e vou imediatamente resolvendo tudo, mesmo quando ainda faltam elementos para que a decisão seja tomada de forma mais sensata, assim costumo errar, muitas vezes erro, porém jamais fico estagnada, sou impaciente quanto à perda de tempo, tenho a sensação de que a vida é muito breve para que possamos perder algum instante. Agora, com a idade e a experiência, tenho sido um pouco mais paciente quanto à perda de tempo. Um dia ganhei um livro de um amigo médico, A arte de não fazer nada, percebi que ele estava me dando um remédio, desde então, quando sento numa rede, ou fico olhando o horizonte, sem estar meditando em algum trabalho, não me sinto tão mal.

OP - Ainda sobre o tempo. A incrível e devotada espera de Feliciana a torna uma espécie de mártir, uma figura que, ao fim da história, encanta e enternece. Como essa personagem foi construída?
Ana Miranda - Miguel de Unamuno dizia que o nome é a própria coisa. E Feliciana é seu próprio nome. Seu nome registra o seu motivo central, o seu cerne, seu nascimento, o baldrame de sua construção. Ela representa os diversos aspectos do Romantismo, ela é o espírito romântico, ou melhor, ela lida com os aspectos do Romantismo, como o eu sensível, a busca do próprio rosto, a brasilidade, a idealização do amor impossível como perpetuação do desejo, a perpetuação do desejo como símbolo da arte, pois a arte é a não-realidade, a arte é a possibilidade de sonharmos. Ela deseja ser romântica, deseja ser infeliz, assim como imagina que seja Antonio, que sejam as musas do Romantismo. No entanto, ela ri, e é feliz, vive apenas de maneira vicária a experiência da poesia, da arte, da vida sensorial, e extra-sensorial. Feliciana ficou anos e anos sendo gerada por meu inconsciente, e nasceu assim, com os traços românticos, com as características de minha pessoa naquele momento de vida, me voltando para mim mesma, para minhas origens. Veja que os olhos de Feliciana são verdes apenas quando ela olha o mar do Ceará, quando ela sai pela primeira vez de sua cidade e vem para o Ceará.

OP - Não custa perguntar: por que Feliciana decide aguardar tanto tempo por seu fugidio Antonio?
Ana Miranda - Feliciana não está esperando, ela aproveita cada instante para exercer sua arte, que é a arte de sonhar. Ela não está interessada em nada mais do que na luta para manter o sonho vivo, para impedir que a realidade possa sufocar o sonho. Menina pequena, ela se fascina ao ler um poema, e tem um sentimento platônico, no sentido de ver apenas o que deseja ver. O que ela viu no poema foi a possibilidade de, por meio da literatura, da arte, transcender uma existência material e limitada, conforme a vida que esperava as moças interioranas do século 19, conforme a vida de sua madrasta, Natalícia. Feliciana tem acesso a Antonio, ele está sempre ali, por perto, é vizinho de Feliciana, eles chegam a se encontrar casualmente, cara a cara, na ocasião da homenagem ao imperador, mas ela foge, ela sempre foge da possibilidade de realizar a relação com Antonio, ela não manda as cartas, ela não se aproxima, ela foge, ela é quem é fugidia, ela é puro sonho, e mesmo no final, quando ela percebe que a matéria de sonho que significava Antonio está por terminar, ela troca esse por outro sonho, quando ela ouve o bandolim do professor Adelino, ao final do livro. Observe que ela não vê o professor a chegar no cais, mas ela ouve o bandolim, ela então troca o sonho por outro sonho, a arte por outra arte, a poesia pela música. O professor Adelino aprendeu a lidar com Feliciana, a conquistar seu coração, primeiro ele leu em voz alta os poemas de Gonçalves Dias, fazendo os olhos de Feliciana projetarem o sonho nele, depois ele adquiriu um bandolim, desviando Feliciana do sonho poético, levando-a ao sonho musical. Essa é a minha interpretação.

OP - Através das páginas do livro temos acesso ao mundo afetivo do poeta romântico Gonçalves Dias. Sei que Dias e Dias foi inspirado num poema não-publicado por Rubem Fonseca. O que exatamente a motivou a escolher Gonçalves Dias como matéria de romance?
Ana Miranda - Como sempre, os meus personagens históricos são, mais do que fontes de inspiração, fontes lingüísticas. O que me motivou foi a nova leitura que fiz de sua obra, motivada pelo poema de Fonseca, em que ele se mostra bom conhecedor dos segredos amorosos de Gonçalves Dias. Intrigada sobre como Rubem Fonseca conseguiu penetrar esses mistérios pessoais e velados pelo tempo, parti para uma leitura do outro, no caso o autor, no caso o Gonçalves Dias, e esse encontro com o fantasma de Gonçalves Dias despertou em mim uma paixão literária que corresponde, mais ou menos, ao sentimento que represento em Feliciana. Ou melhor, foi esse sentimento de afeto por Gonçalves Dias, de compaixão por sua vida tão esmagadora e humilhante, foi um sentimento de querer proteger esse homem tão frágil e desamparado, mas ao mesmo tempo capaz de uma rara força literária, foi por ternura por esse artista que tirou de seu sofrimento os seus versos, suas palavras, admiração por sua coragem ao embater contra normas e regras e limitações... Foi tudo isso que me motivou, e ele se tornou uma verdade para mim. Como uma experiência real.

OP - Para a construção do livro, você pesquisou cartas e documentos sobre o autor. Como foi esse trabalho de coleta de material e filtragem e que aspectos da vida do poeta mais a impressionaram?
Ana Miranda - Foi dos mais simples, as cartas estão reunidas em livro, uma boa seleção feita por Alexei Bueno, todas as cartas substanciais estão ali, e Gonçalves Dias deixou uma obra epistolar fabulosa, uma das melhores e mais confessionais da literatura brasileira, pois seu interlocutor era um confidente, amigo íntimo e conhecedor de suas frustrações amorosas, além do mais, Gonçalves Dias escrevia perfeitamente, mergulhava nos assuntos, esclarecia, sugeria... dava pistas da vida, misturava vida e arte... tanto com as cartas, como com os poemas líricos. O meu modo de escrever parte de uma crença que eu tenho, de que não escrevemos o que queremos, mas escrevemos o que somos. Então, eu tento ser cada vez mais aquilo que almejo. E me transformei em Feliciana, para me aproximar subjetivamente, e com liberdade, de um tema que pertence a todos nós, brasileiros. A narração na primeira pessoa é totalmente subjetiva. Expressa uma opinião pessoal. O que mais me impressionou em Gonçalves Dias foi a sua força poética, o seu talento indestrutível, tudo parecia ser inimigo de sua arte, no entanto, tudo ele transformava em alimento, ele deu sua alma, deu sua felicidade em troca da realização como criador.


SERVIÇO

Dias e Dias (Companhia das Letras, 2002. 243 páginas), de Ana Miranda. Preço: R$ 39,50.

 

   
 
 

 

 

 

 

 

09/05/2006