Rosa
Alice Branco
A
PALMEIRA DE KAIROUAN
Soletro
Kairouan nesta casa vazia
sem
arcos de passagem onde abrigar
a
tua ausência. Soletro cada pedaço de céu
nas
tuas portas, na poeira das ruas que se eleva
para
tecer as nuvens com a lã dos tapetes.
Hora
da prece. Oiço a tua voz nas margens de Kairouan,
os
joelhos colados ao chão vistos de fora. Vou desenhando
círculos
à volta do poço. Sísifo trabalha a minha água,
o
eterno retorno a Kairouan. Quem te fez azul:
porta,
janela, arcada, passeio simétrico do branco?
Quem
fez de Kairouan o céu do meio dia? E contudo terra
onde
um alfaiate cose a noite junto à porta. Contudo
todas
as cores e os gatos vasculhando o lixo. Latas,
e
pequenas caixas nas prateleiras junto à coca-cola.
Bato
à tua porta para que a casa se recolha
antes
de me acolher. Camas onde nos sentamos
para
beber o segredo do vinho enquanto as nossas mãos
se
encontram num só prato. Molhamos o pão e a boca
entre
o “ka” e o “da” dos palradores da noite e é com palavras
que
embalamos a Medina deserta a esta hora.
E
cada dia o céu se faz madeira de porta,
cimento
de molduras e as sete curvas da ruela
que
os guias impingem aos turistas antes dos dinares.
Marabout,
deixa-me soletrar o nome do teu santo.
Mesquita,
deixa-me ficar nos arredores do nada
onde
tem morado a Palestina e diz-me quanta poeira
terei
de comer, quanto azul verter para que tenhas casa.
E
digo eu que a minha casa está vazia, a mesa apenas mesa
e
o prato irrepartido. Que o céu e o mar se não fazem corpo
no
corpo da cidade. Que há uma explicação
para
as nuvens que não é a poeira dos meus passos.
Mas
o azul é vermelho na tua língua onde a palavra
nem
sequer é casa. As grades ardem dentro das janelas,
dentro
dos pulmões irrespiráveis que te sofrem. Palestina,
os
meus pés hão-de soletrar o teu solo como a minha boca
soletra
Kairouan, o corpo do céu nas tuas casas. Afasto-me
como
o gato que desliza sobre o muro, o avião que me traz
de
volta na cadeira vaga. Diz que me vês atravessar o Souk,
bater
à minha porta na Medina, diz que sou o teu azul na terra
quando
adormecemos no poço mais fundo de Kairouan
onde
se espelha o céu nas nossas asas. Kairouan une os dois lados
do
meu coração como uma palmeira hermafrodita.
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