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Rosa Alice Branco

r.a.branco@mail.telepac.pt 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Poesia:


 Ensaio, crítica, resenha & comentário:


 

 

Rosa Alice Branco

Rosa Alice Branco edita  revista Logovemos que é hospedada no Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

Rosa Alice Branco


PASSOS SEM MEMÓRIA

 

Olho pela janela e não vejo o mar. As gaivotas

andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,

o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume

e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom dia.

As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas

amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem

e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos

de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me

como se soubesses o que hei-de saber mais logo.

Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura

de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair

de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.

A janela está vazia. O meu filho caminha na praia

e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente

sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,

todos os amantes. Invento passos e palavras

para adormecer. A esta hora a minha avó enrolava o rosário

nas mãos. Eu estava dentro das contas, dentro do sono

que rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.

Agora caminhamos juntos. Sem memória.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

Rosa Alice Branco


GRAVITAÇÃO UNIVERSAL

 

De novo o mar que espero

sentada à janela que dá para as rosas.

Que dá para todas as ruas que passei

com os teus passos. Para a estrada

onde virámos a cabeça para não ver

o homem esvaído no chão.

Depois comemos na casa de um amigo,

bebemos e falámos como se a vida fosse eterna.

À volta a estrada estava limpa, sem sinais

de sangue. As luzes sobre o mar nas duas margens

e a tua mão na minha perna. Lá no céu

um homem esventrado procura as suas asas.

Nada sei de anjos. Eu que espero o mar todos os dias

acredito na rotação da terra e na lei da gravidade.

Mas quando chegas o corpo não tem peso

e as palavras voam em redor de nós

alagadas em suor. E vem o mar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Rosa Alice Branco


POR UM DIA DE INVERNO

 

O homem do talho morreu. Deixou mulher,

dois filhos e carne fresca estendida como roupa

no varal. Lembro-me do orgulho com que passava a mão

pelo cachaço. Lembro-me da peixeira

que nos acordava de manhã «peixe fresco

tão vivinho» e como era caro o estertor do linguado.

Mesmo as alfaces são frescas depois de mortas,

o molho de nabiças, até de uma cenoura esperamos

que seja fresca ali no prato com o linguado rigorosamente

apartado das espinhas. Tão fresco! O homem do talho

vai a enterrar depois do almoço. Agora jaz na capela mortuária

de rosto descoberto para a família e os curiosos. O homem

do talho morreu cansado, mas agora está fresco:

foi abatido ontem, será embalado às quatro da tarde.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

Rosa Alice Branco


A PALMEIRA DE KAIROUAN

 

Soletro Kairouan nesta casa vazia

sem arcos de passagem onde abrigar

a tua ausência. Soletro cada pedaço de céu

nas tuas portas, na poeira das ruas que se eleva

para tecer as nuvens com a lã dos tapetes.

Hora da prece. Oiço a tua voz nas margens de Kairouan,

os joelhos colados ao chão vistos de fora. Vou desenhando

círculos à volta do poço. Sísifo trabalha a minha água,

o eterno retorno a Kairouan. Quem te fez azul:

porta, janela, arcada, passeio simétrico do branco?

Quem fez de Kairouan o céu do meio dia? E contudo terra

onde um alfaiate cose a noite junto à porta. Contudo

todas as cores e os gatos vasculhando o lixo. Latas,

e pequenas caixas nas prateleiras junto à coca-cola.

Bato à tua porta para que a casa se recolha

antes de me acolher. Camas onde nos sentamos

para beber o segredo do vinho enquanto as nossas mãos

se encontram num só prato. Molhamos o pão e a boca

entre o “ka” e o “da” dos palradores da noite e é com palavras

que embalamos a Medina deserta a esta hora.

E cada dia o céu se faz madeira de porta,

cimento de molduras e as sete curvas da ruela

que os guias impingem aos turistas antes dos dinares.

Marabout, deixa-me soletrar o nome do teu santo.

Mesquita, deixa-me ficar nos arredores do nada

onde tem morado a Palestina e diz-me quanta poeira

terei de comer, quanto azul verter para que tenhas casa.

E digo eu que a minha casa está vazia, a mesa apenas mesa

e o prato irrepartido. Que o céu e o mar se não fazem corpo

no corpo da cidade. Que há uma explicação

para as nuvens que não é a poeira dos meus passos.

Mas o azul é vermelho na tua língua onde a palavra

nem sequer é casa. As grades ardem dentro das janelas,

dentro dos pulmões irrespiráveis que te sofrem. Palestina,

os meus pés hão-de soletrar o teu solo como a minha boca

soletra Kairouan, o corpo do céu nas tuas casas. Afasto-me

como o gato que desliza sobre o muro, o avião que me traz

de volta na cadeira vaga. Diz que me vês atravessar o Souk,

bater à minha porta na Medina, diz que sou o teu azul na terra

quando adormecemos no poço mais fundo de Kairouan

onde se espelha o céu nas nossas asas. Kairouan une os dois lados

do meu coração como uma palmeira hermafrodita.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

Rosa Alice Branco


A TUA PELE DESCALÇA

 

Veio uma onda . A varrer o meu sono .

Caminhava nele como caminho na areia .

Nada me une ou divide. Nada me retém.

Sentas-te onde me sento no teu colo

e peço sempre a mesma história . A tua voz

cria as memórias que hei-de ter . Por agora

caminho ao longo das gaivotas e grito como elas

quando a maré baixa . Às vezes apoio-me num rochedo

para dizer “casa” e logo desmorono. Sigo descalça

como tu para dizer “seguimos”. Mas são apenas sons

sob o sol de maio. Murmúrios do que não serei.

Sempre tive problemas com o verbo ser. Faço

e desfaço as malas, entro e saio das gavetas.

Pausa na camisa que vestiste da última vez.

Uma vontade de a amarrotar, desapertar os botões

e sentir lá dentro a tua pele cá fora.

Tudo isto é tão verdade como podem ser os botões

de uma camisa escrita. Confesso que não pensei na cor,

ou se era às riscas. Agora acho que podia ser a de quadrados.

Em qualquer delas a tua pele entra na minha.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

Rosa Alice Branco


RETRACTO PUÍDO NAS ENTRANHAS

 

Palmeiras inclinadas. Ao longe o casario.

É na água que o vejo, que sinto a cidade acordar.

Mais uma mulher que olha o rio. Tenho as mãos desatadas,

os pés a caminho. As margens alargam quando estou perto,

mas do outro lado as mulheres não reflectem

o rosto ou mesmo a sua ausência.

São matéria do verbo fazer e caminham junto ao chão,

na curva da noite para o marido. Gastos os sonhos por usar.

Descorado pano que ficou ao sol. Nelas a cidade não acorda,

não regressam os barcos à tardinha.

Vêm pela beira dos caminhos, a tristeza amável,

a raiva cega e às vezes um sorriso que sacode os ombros

porque até a tristeza tem um custo, uma esperança

na sola do sapato. Vejo-as todos os dias e é como se a vida

me atasse os pés, me anelasse os dedos. Como eu,

outras mulheres olhando o rio, desbordando o pano,

descozendo a sopa. Ama-se o homem que vira a esquina

connosco e sabe que não podemos fingir que a ferida

está fechada. As casas acendem.

É na água que vejo a sua luz descendo o rio.

As mulheres passam em silêncio para as casas,

atravessam a pele – deixam um retracto puído nas entranhas.

Olho o rio e não sei fingir que finjo tanto mar.