Ana Mary Cavalcante
Pela porta da frente
Da Editoria do
Vida & Arte
[Jornal O Povo, 28.02.1999]
Inéditos e
Dispersos, livro que reúne trabalhos de Ana Cristina Cesar escritos
entre 1961 e 1983, sai em nova edição. Numa parceria entre a Editora
Ática e o Instituto Moreira Salles, a obra acopla material
iconográfico ao discurso poético marginal dos anos 70.
Na poesia, ela se
apresentava assim: "Sou uma mulher do século XIX disfarçada em
século XX.'' Sob esse disfarce poético, procurava a voz escrita que
a mostraria na literatura nacional. Ela vivia atrás ``do
despojamento mais inteiro/ da simplicidade mais erma/ da palavra
mais recém-nascida/ do inteiro mais despojado/ do ermo mais simples/
do nascimento a mais da palavra''. E, quando encontrou o que
procurava, quando esbarrou na palavra-broto (porém líquida,
escorregadia), saiu de fininho pela janela do apartamento dos pais.
``Lá onde cruzo com a modernidade, e meu pensamento passa como um
raio, a pedra no caminho é o time que você tira de campo.'' Acabou
voltando pela porta da frente.
Ana Cristina Cesar,
a mulher disfarçada em século XX e dona de uma poesia sem disfarces,
tem sua obra relançada via Editora Ática e Instituto Moreira Salles.
A republicação teve início em agosto do ano passado, com A
Teus Pés. Sai, agora, Inéditos e Dispersos,
que reúne trabalhos escritos entre 1961 e 1983, em prosa e poesia. A
nova edição acomoda material iconográfico (fotos, desenhos da autora
e fac-símiles) que, aliando-se aos escritos feitos na infância e
adolescência, ajudam a esmiuçar a arte poética de Ana Cristina.
A Teus Pés,
publicado originalmente antes de sua morte, junta a parte mais
conhecida da obra de Ana. É uma espécie de convite para se tomar o
chá das cinco com ela e a ouvir falar de histórias passionais,
noites cariocas, inverno europeu. (Baixinho, uma poesia marginal
soa). Além do livro homônimo, outros três fazem parte de A
Teus Pés: Cenas de Abril, Correspondência Completa e Luvas de Pelica
(todos editados pela autora). Já em Inéditos e Dispersos,
pode-se encontrar o embrião poético de Ana Cristina Cesar. "A
terceira noite'', por exemplo, tem a linguagem dos nove anos da
escritora. Tem a brincadeira (pois, criança) com redundâncias, a
vontade de experimentar, aqui e acolá, um verso mais gaiato - ou, no
mínimo, mais sonoro.
Livros seus foram
traduzidos na Alemanha, França, Inglaterra, Colômbia, Venezuela,
Argentina e nos Estados Unidos. Entre os autores preferidos de Ana
Cristina, Drummond, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Clarice
Lispector. Katherine Mansfield, Sylvia Plath, T.S. Eliot, Virgínia
Wolf. Antônio Cândido, Walter Benjamim. Literatura e metaliteratura.
O uso da fala
diária, simples e direta, era um pretexto para inserir Ana Cristina
num grupo de poetas da década de 1970, ditos ``marginais''. Paulo
Leminski e Francisco Alvim também são dessa turma. Gente que bebeu
do Tropicalismo de Caetano e Gil, embriagando-se de liberdade. Era
preciso despir a linguagem artística de seus trapos acadêmicos,
vesti-la num jeans desbotado, sem acessórios. Linguagem duma
juventude que fala o que quer e é entendida por quem faz parte da
tribo.
Os versos ligeiros,
cortados (e cortantes), secos (e certeiros) colaboram para criar um
discurso, aparentemente, sem sentido. Um discurso que fala sobre si
próprio. ``As palavras escorrem como líquidos/ lubrificando
passagens ressentidas.'' Um discurso que fala dela própria. ``O
resultado que daí advém é o de um texto quase sempre na priemira
pessoa, confessional, que está próximo do formado do `querido
diário' adolescente'', escreve Armando Freitas Filho, amigo e poeta,
no prefácio de A Teus Pés. Uma poesia que precisa de
uma certa convivência. Precisa-se tomar mais vezes o chá das cinco
com Ana. Sentar-se com ela e deixá-la mostrar como rasurou a
paisagem, como apreendeu a palavra líquida, escorregadia, e
lubrificou a poesia brasileira contemporânea.
A Teus Pés
(Ana Cristina Cesar, Instituto Moreira Salles/Ática. 152 páginas) e
Inéditos e Dispersos (Ana Cristina Cesar, Instituto Moreira
Salles/Ática. 240 páginas). Preço de cada exemplar: R$ 24,90.
Queda pela literatura
Ela era uma moça
de família culta, classe média e protestante. Tinha pai, mãe e dois
irmãos. E uma queda precoce pela literatura. Com a voz ainda
vacilante, recitava poemas imaginados aos quatro anos de idade. Não
demorou muito para, aos sete, imprimir a imaginação no "Suplemento
Literário'' do jornal Tribuna da Imprensa. A
literatura é que custou um pouco a descobrir a moça.
Ana Cristina Cruz
Cesar nasceu no dia 2 de junho de 1952, no Rio de Janeiro. As
décadas de 60 e 70, correndo em paralelo à adolescência de Ana, eram
um convite ao oba-oba político e social. Mas ela preferiu o
movimento poético ao estudantil. Juntou-se a uma turma de escritores
``marginais'' (porque diferentes); uma gente que escrevia certo por
linhas tortas, desviando caminho ao que já estava sacramentado nas
letras.
Fora isso, a filha
de seu Waldo Aranha e dona Maria Luiza teve uma juventude típica da
classe média a que pertencia. Ou quase. Aproveitou o programa de
intercâmbio na Inglaterra (1969-1970) para escrever poemas noutra
língua e traduzir outros tantos (Emily Dickinson, Sylvia Plath e
Katherine Mansfield são autores que trouxe na bagagem). Aos 19 anos,
ingressa no curso de Letras da Pontíficia Universidade Católica
(PUC) do Rio de Janeiro.
Simples pretexto
para continuar ao lado da literatura. Aproveitando o material de
trabalho - a palavra - meteu-se também com o jornalismo. Entre 1975
e 1977, não parou quieta: foi consultora do Conselho Editorial da
Editora Labor; colaboradora da seção cultural do semanário
Opinião, do suplemento Livro (Jornal do Brasil)
e do jornal Beijo, além de, aqui e acolá, escrever
para o Correio Brasiliense e as revistas
Malazartes, Almanaque, Alguma Poesia,
Veja, Isto É e Leia Livros.
Em 1976, após
concluir o curso universitário, Ana Cristina teve alguns textos
(prosa e poesia) publicados na antologia 26 Poetas Hoje
(organizada por Heloísa Buarque de Holanda). Simples pretexto para
outros que vieram: Cenas de Abril (poesia) e
Correspondência Completa (prosa), ambos saídos em 1979, por
conta própria. Durante a segunda viagem que fez à Inglaterra
(1979-1981), Ana fez mestrado em Artes na Universidade de Essex. Por
lá, imprime Luvas de Pelica.
Ana era (mais ou menos) assim: uma
moça de família culta, classe média e protestante. Protestante numa
poesia diferente, que não falava de flores vencendo o canhão. Na
biografia escrita pelo amigo Ítalo Moriconi (Ana Cristina
Cesar - o Sangue de uma Poeta, Relume Dumará, 1966), uma
garota intempestiva, dessas de levantar e sair da festa. Na memória
do pai, uma menina reservada, que não gostava de muita badalação.
Talvez por isso tenha saído de mansinho da vida, em 29 de outubro de
1983, quando se suicidou. ("Estou vivendo de hora em hora, com muito
temor. Um dia me safarei - aos poucos me safarei, começarei um
safari''). E entrado, de mansinho, na literatura, onde permanece.
Viva e intempestiva.
TRECHOS DE POEMAS DO LIVRO
INÉDITOS E DISPERSOS:
Esvoaça... Esvoaça...
"É como a vela que se apaga, E a fumaça sobe e se atenua. É o amor
fraco que se apaga, Não adiantam poemas para a lua.
Sofre o homem, o amor acaba E a doce influência esvoaça Como o fio
adelgaçado De fina e translúcida fumaça
Esvoaça, esvoaça... Atenua o amor, Atenua a fumaça.
Para que tanta dor? E o amor que vai sumindo, Adelgaça, esvoaça,
esvoaça... (maio/1963)
Primeiras Notícias da Inglaterra
Espremendo cravos (imundícies primeiras num rosto semi-infantil)
beberico os nevoeiros britânicos em mim e por fora (e o amor se
germanizando todo) (16/06/1969)
faz três semanas espero depois da novela sem falta um telefonema de
algum ponto perdido do país
a gente sempre acha que é Fernando Pessoa
Nada disfarça o apuro do amor. Um carro em ré. Memória da água em
movimento. Beijo. Gosto particular da tua boca. Último trem subindo
ao céu. Aguço o ouvido. Os aparelhos que só fazem som ocupam o lugar
clandestino da felicidade. Preciso me atar ao velame com as próprias
mãos. Sirgar. Daqui ao fundo do horto florestal ouço coisas que
nunca ouvi, pássaros que gemem.
TRECHOS DO LIVRO A TEUS PÉS
Lá fora
há um amor que entra de férias. Há um embaçamento de minhas agulhas
nítidas diante dessa boca bisca de mulher. Há um placar visível em
altas horas, pela persiana deste hotel, fatal, que diz: fiado, só
depois de amanhã e olhe lá onde a minha lâmina cortante, sofrendo de
súbita cegueira noturna, pendura a conta e não corta mais,
suspendendo seu pêndulo de Nietzsche ou Poe por um nada que pisca e
tira folga e sai afiado para a rua como um ato falho deixando as
chaves soltas em cima do balcão.
Queria falar da morte e sua juventude me afagava. Uma estabanada,
alvíssima, um palito. Entre dentes, não maldizia a distração
elétrica, beleza ossuda al mare. Afogava-me.
Recuperação da adolescência
é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço
olho muito tempo o corpo de um poema até perder de vista o que não
seja corpo e sentir separado entre os dentes um filete de sangue nas
gengivas
Leia Ana Cristina
Cesar
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