Ariadne Araújo
Os novent'anos
de Patativa do Assaré
Conversa
de passarinho
Lúcido, crítico, filósofo. O mais importante poeta popular do
Nordeste, Patativa do Assaré, carrega uma produção e lucidez
invejáveis em um corpo já trêmulo, cego da vista, perna mecânica e
surdez parcial.
Ariadne Araújo
Enviada a Assaré
A passarada canta. O poeta escuta. Ali
um galo-de-campina. Pelo meio, um corrupião. Além, o piado do sabiá.
Mas o ouvido mouco de Antônio Gonçalves da Silva presta atenção:
quer ouvir o preferido, o lamento do bem-te-vi. Conversa de
passarinho, uma vez que o solitário escutador é também uma ave
cantante do sertão, seja no apelido, seja na profissão. Patativa do
Assaré ajusta o aparelho de audição, acende um cigarro Derby, alisa
o pêlo de um gato aninhado no colo e esquece de bater as cinzas,
outra vez. Na serra de Assaré, onde vai uma vez por semana, ele ouve
a natureza e volta no tempo.
Patativa menino era calmo, mas nem por
isso escapou de umas lapadas do pai. Mesmo com o perigo da surra,
aprendeu a fumar aos 10 anos. Um fumo forte, plantado no monturo das
casas, diferente do maço que ele traz hoje no bolso e que devora em
um dia. A velha casa dos pais, três vãos com piso de cimento liso,
onde morou até casar, ainda está de pé. Mas agora leva a cal nas
paredes escuras e abriga o irmão caçula, Pedro Gonçalves da Silva,
82, poeta também. Ora, Patativa não sabe se a poesia é coisa de
família, mas pra mostrar respeito e consideração, recita de cor os
versos do irmão.
Serrana também, Belarmina Paes Cidrão,
a Belinha, a mulher com quem se casou e teve cinco filhos. Mas
Patativa do Assaré vai logo explicando que nunca foi rapaz
namorador. Era a poesia e as cantorias que atraiam as moças da
região, mas todas só amigas. Belinha, no entanto, entendia sua vida
de poeta e achava bom tanta amizade. Por causa disso, foram bons
também os 58 anos de casamento. Para Patativa, tempo bem empregado.
Com a morte da mulher, dividiu o bem querer em três partes iguais
para as três filhas mulheres. Todas santas e formosas nas rimas dos
versos de amor que fez para elas.
Além do cigarro, inseparável também um
chapéu de feltro preto, que ele não tira nem pro bispo. A desculpa é
que a cabeça dói. A bengala de pau branco ajuda no andar vacilante
do nonagenário. Menos pela velhice e um tanto mais pela perna
mecânica por conta de um atropelamento, em Fortaleza. Já os óculos
escuros guardam os olhos cegos de Patativa. Um deles no escuro desde
os três anos de idade por causa de um dor-d'olhos mal curado. O
outro olho enxerga só um vulto, mas que, por algum tempo, permitiu
ao poeta a visão distante, do alto da serra de Assaré, até a serra
de Quincuncá, no município de Farias Brito.
Ô Inês! Ô Inês! A filha mais velha,
Inês Gonçalves de Alencar, deixa a panela no fogo e ensaia uma
carreira até o alpendre. Patativa quer o livro, Brasil bom de bola,
pra mostrar pras visitas um poema seu, de encomenda, sobre uma
paixão ocasional - o futebol. A visita lê em voz bem alta para o
anfitrião, devolve a gentileza do café fresco e de outros versos que
ele faz questão de recitar. Um festival de poesia, uma atrás da
outra. E lá estão os bem-te-vis, a roça, o sertão. E lá estão a
política, a economia, a situação social do País. Depois ele explica:
sou cego, mas tenho minha visão penetrante para ver a vida como
realmente ela é.
Sertão, roça e poesia
O encontro de Patativa do Assaré com
os bem-te-vis da serra de Santana é sagrado. No meio da semana ele
deixa a casa de Assaré, pega um carro fretado - 18 quilômetros de
estrada carroçável - até receber no rosto um friozinho de serra, um
cheiro de mato molhado, de roça plantada. O poeta vai feliz. É lá
que ele sente mais o sertão tão falado em seus poemas. Afinal,
muitos versos foram montados de memória, durante a lida com a terra.
Cabeça trabalhando na rima, na métrica. Mãos trabalhando com a
enxada, no plantio da semente. Um agricultor que produzia milho,
feijão, algodão, mandioca e poesia.
Depois o sertão chamou, pediu mais. Ou
terá sido a lira? Patativa do Assaré pegou a viola, um cavalo
trotador e um discípulo para excursões no interior do Nordeste.
Anacleto Dias de Oliveira, 75, tinha apenas 15 anos quando começou a
viajar com Patativa. De pouso em pouso, fazenda em fazenda, em
tratos de cantoria, a despesa era por conta de quem fazia o convite.
Em cima de mesas de madeira, eles improvisavam um palco, numa festa
que misturava cantoria e forró. O aluno aprendeu o ofício, virou
profissional. O mestre encontrou coisa melhor: captou a alma do
sertão.
Das andanças, o poeta pouco fala. Mas
diz que a poesia cabocla retrata o sertão, o Brasil de baixo e o
Brasil de cima. O de baixo, pobre, abandonado. O de cima, festa,
uísque, cerveja. Patativa suspira e, numa poesia curtinha, fala da
sua dor: a de ver os votos de um país inteiro a eleger um mau
presidente. ``Agora, eu não tô dizendo com ninguém. Essa aqui é a
minha dor. Cada um tem a sua''. Brasileiros, mas não mais donos do
Brasil. Patativa balança a cabeça. Está triste com o que vê. ``Eu
não sou nada. Sou um caboclo analfabeto. Não mexi com escola,
colégio, faculdade, essas besteiras... Tudo meu é natural. Mas tenho
visão para ver as coisas assim''.
Tapioca de amendoim, ovo morno e
fígado de capão. Se for peixe, melhor curimatã. Traíra, presta não.
O cardápio de preferência de Patativa do Assaré pode ser temperado
com uns goles, poucos, de cerveja. Mas, pela manhã melhor um angu de
leite. Na serra, ele acorda cedo. Senta na calçada, sol da manhã ou
meio da tarde, sempre fraco, na opinião dele. Senta no alpendre
disposto a uma palestra com visitas ocasionais. Vez por outra, um
gole de café pelas mãos da filha Inês. E, mesmo em casa, roupa mais
de artista que de agricultor: chapéu, óculos, bengala, camisa de
mangas cumpridas, calças de tergal e um sapato preto, sem meia.
Codinome Patativa
Ela hoje está ameaçada de extinção,
mas até a segunda metade da década de 60, a Patativa era animalzinho
fácil no comércio de pássaros brasileiros para o exterior. A beleza,
o porte, a maneira de pousar e, principalmente, o canto fizeram da
Patativa objeto de desejo.
Famosa como cantora, o pássaro é
originário da fauna nacional, mas encontrado também no Paraguai e
Argentina. Está na música de Vicente Celestino (Acorda Patativa) no
romance de José de Alencar (Ubirajara), na poesia de Casimiro de
Abreu (As Primaveras). Patativa também já batizou vários cantadores
nordestinos e até o mais famoso poeta popular nacional.
Aos 20 anos, quando foi para Belém, o
nosso Patativa foi batizado pelo escritor cearense José Carvalho de
Brito, colaborador do jornal Correio do Ceará, que comparou a poesia
do poeta cearense ao canto sonoro da Patativa do Nordeste. Se o
escritor deu o apelido, o povo cuidou de não deixar dúvidas. Como
havia vários patativas, as pessoas logo sacramentaram: que Patativa?
Do Assaré?. "E com muito direito, porque Assaré é a minha terra, a
minha cidade'', escreveu o poeta
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