Alencar e Silva
Notícia
e itinerário do poeta Jorge Tufic
18.04.1998
Neste memorial da moderna poesia
amazonense move-nos, claramente, como vimos observando, o objetivo
de focalizar de perto, além da obra, as circunstâncias históricas,
ou fatuais, que cercaram a vida de cada uma de suas figuras e
serviram de fundo ao seu aparecimento na paisagem, de modo a
reconstituir, através de um variado mosaico, a ambiência em que os
fatos relatados se desenrolaram. Não será excessivo frisar que se
trata, neste passo, de matéria de memória - esforço de trazer à luz
informações que, de outro modo, por serem únicas, ficariam perdidas
para sempre. Este, realmente, o motor da ação.
Ao deter-me ante a figura de Jorte
Tufic, ocorre-me de pronto que nos conhecemos sem que ninguém nos
apresentasse um ao outro. Isto se deu na Biblioteca do Estado.
Devíamos andar pelos nossos 18 ou 19 anos de idade e freqüentávamos
aquela sala de leitura pelas horas da tarde. De posse do livro
desejado, afundava-me numa das poltronas, sob as janelas que olham
para a Rua Henrique Martins, e dali só me afastava ao cair da tarde,
quando o grande salão começava a tocar-se de penumbras. Era quando
eu suspendia a leitura e passeava os olhos em redor. Despertara-me a
atenção a quantidade de livros consultados de ordinário pelo
ocupante habitual de uma das mesas próximas — jovem de ampla fronte
e traços levantinos, que ao retirar-se deixava sobre a mesa grossos
volumes. Um dia fui ver que obras eram aquelas. Tratava-se de livros
de filósofos e poetas gregos, em sua maioria: Platão, Homero,
Anacreonte e do Childe Harold, de Byron. Noutro dia, dei-me a
conhecer. Disse-lhe já haver lido alguns daqueles livros e de minha
inclinação para a poesia, do grêmio literário de que participava e
das reuniões no polivalente “porão” de Anísio Mello. Por seu turno,
disse-me ele ser poeta e jornalista e co-proprietário de um pequeno
jornal — O Tempo — de formato tablóide e freqüência mais ou menos
regular. Para sintetizar: em breve, ele passava a freqüentar o
“porão” e fazia o seu ingresso na SAEL — Sociedade Amazonense de
Estudos Literários, criada a partir de uma cisão no Grêmio Cultural
Álvares de Azevedo, um dos tantos em que se reunia a mocidade
estudiosa de Manaus, aos ares benfazejos da sonhada democratização
do País e numa hora de intensa inquietação, prenunciadora das
transformações por que se ansiava e para cujo advento — como agentes
ativos — os jovens de então se preparavam. Ao ser-lhe dada a
palavra, para dizer a que vinha, o poeta levanta-se e diz, com voz
cava: “Senhor Presidente, declino da honra de falar-vos, pois
levaram-me a lira”... A lira a que o poeta aludia era, em verdade,
um volumoso calhamaço de poemas, que um dos colegas, por pândega,
escondera...
Foi, pois, num tal quadro que Jorge
Tufic viu-se integrado à mais jovem intelectualidade da capital
amazonense, onde chegara por volta dos doze anos de idade, vindo de
Sena Madureira, Acre, cidade em que nascera e para a qual os seus
ascendentes libaneses haviam emigrado na primeira década do século.
O poeta já morava, com os pais e o irmão, na Avenida Joaquim Nabuco,
329, casa acolhedora em que passamos também a reunir-nos, e que,
depois, seria por ele reconstituída e fixada nas páginas do volume
de memórias “A Casa do Tempo”. (Como não evocar aqui a figura gentil
e generosa de sua veneranda Emme — dona Faride — a desdobrar-se em
providências para obsequiar-nos o paladar com os milagres que
brotavam de suas mãos? Jamais comi quibes mais saborosos nem feijões
como os seus).
Há algo mais a referir, antes de
ocuparmo-nos da obra realizada pelo poeta de “Varanda de Pássaros”
em quase meio século de beneditino labor, de indesviável entrega ao
seu ofício, e que se desdobra por variados e harmoniosos caminhos de
poesia. De fato, cada livro seu é uma estação diferente no
itinerário bordado de signos em que vem caminhando e iluminando o
seu tempo.Houve tempo, naqueles idos, em que acreditei que os que
vinham de longe para um País jovem como o nosso eram sempre
portadores de algo novo e tinham por certo algum ceitil a
acrescentar à herança dos séculos. Foi o que me ocorreu dizer um dia
— vai longe — ao Jorge, ao discretearmos sobre as então reduzidas
possibilidades do nosso grupo.
Dizíamos então ao sutil babilônio,
como se nos fosse dado devassar os véus do futuro, ser ele, entre
nós, em razão da herança genética e da longa tradição cultural que
lhe servira de berço, o que mais provavelmente viria a acrescentar
aquele ceitil ao patrimônio espiritual da nossa comunidade, ainda
quando outros mais o fizessem, como tributo da nossa geração.
Vemos hoje que aquele vaticínio não
se situava longe da verdade, então apenas intuída e que o tempo se
encarregaria de confirmar.
Jorge Tufic trouxe, efetivamente,
para o meio cultural em que foi transplantado uma contribuição
genuína de semente caída em terra fértil.
Essa lhe foi, por certo, a
circunstância decisiva. Não houvesse uma espécie de determinismo
cósmico que, somado ao estado de ebulição e inquietação da
juventude, move as gerações contra as extratificações e a ordem
estabelecida, fazendo-as avançar sempre mais — é certo que esse
estado de coisas se prolongaria e, no caso, o poeta ficaria a ver
navios... Mas, não. No primeiro a passar ele embarcou. Como bom
fenício. Como bom marinheiro. Como descobridor de novas terras.
Foi assim também que, movido pela
sede de desconhecido, ele empreendeu as suas primeiras viagens de
adulto — eis que, quando infante, já viajara pelo Acre e rios da
região e experimentara, de algum modo, o pânico e os dissabores de
um naufrágio em que a família perdera tudo.
Foi em 1951 e 1953 que se realizaram
aquelas viagens — ou caravanas, como as denomináramos — em que
demandamos os brasis sulinos, no afã de superar as angustiosas
contingências locais, que a ausência de universidade superlativa,
encurralando a juventude entre a debandada e a aceitação pacífica do
status quo.
Num texto antigo, do qual não guardo
talvez senão o título (Jorge Tufic: um itinerário do signo à
linguagem), dizíamos que o poeta de “Chão sem Mácula” era senhor de
uma poesia que não se entregava facilmente ao leitor nem se lhe
desnudava ao primeiro olhar, em decorrência do que há de contido na
sua expressão, jamais lhe permitindo qualquer
transbordamento.Efetivamente, quantos lhe têm estudado a obra são
acordes em reconhecer-lhe não só as excelências da linguagem, a
densidade do verso e a mestria da técnica, mas, ainda, aquele mais
que, de repente, na instantaneidade de um relâmpago, nos põe diante
dos olhos o mestre consumado que sola em todos os tons e pulsa com
todas as notas do espírito e do coração.
Isso patenteia-se, uma vez mais, e
definitivamente, no desempenho perfeito alcançado em sua mais
recente obra (“Agendário de Sombras”), publicada em separatas do
jornal “O Pão”, de Fortaleza, números de março e agosto/96 e
abril/97.
São sessenta e um sonetos lapidares,
em que o poeta evoca e celebra os eventos do cotidiano da infância,
da juventude e da maturidade e as sombras iluminadas dos vultos que
com ele cruzaram pelos caminhos da vida ou que o acompanharam de
algum modo ao longo do itinerário poético. Dir-se-á que às virtudes
já proclamadas veio somar-se a mais excelente entre todas: a
simplicidade.
Dizíamos que seu saber-fazer se
desdobra por variados e harmoniosos caminhos de poesia. Isso vem
desde a auspiciosa estréia com “Varanda de Pássaros” (1956),
passando por “Chão sem Mácula” (1966), “Faturação do Ócio” (1974),
“Cordelim de Alfarrábios” (1979), “Os Mitos da Criação e Outros
Poemas” (1980), “Sagapanema” (1981), “Oficina de Textos” (1982) e
“Poesia Reunida” (1987), até chegar a “Boléka, a Onça Invisível do
Universo” (1995) e ao “Agendário de Sombras”.
Autor também de numerosa e boa prosa
(conto, crônica, memória e ensaio), Jorge Tufic está hoje com o seu
barco fenício fundeado em Fortaleza, território sagrado onde armou a
sua tenda para unir seu canto aos dos melhores da terra, numa hora
de intenso brilho da poesia cearense (da mais alta que se pratica e
cultua no País) e na qual, só para mencionar uns poucos, além de um
Gerardo Mello Mourão, destacam-se figuras do porte de José Alcides
Pinto, Francisco Carvalho, Luciano Maia e Virgílio Maia e toda uma
brilhante corte de poetas empenhados no resgate da dignidade da
poesia, neste fim de século. E bom é sabê-lo integrado ao tom e ao
som do que se faz, ali, de melhor. Sempre a acrescentar-se. E a
abrir novos caminhos e novas frentes no dilatado panorama de sua
obra poética.
Com efeito, ao revisitar os mitos da
criação e trazê-los para a intimidade da sua poesia, já vinha Jorge
Tufic, de há muito, perlustrando as terras do sem-fim e integrando
em seu universo poético o riquíssimo lendário amazônico. No caso,
porém, de “Boléka” — que o guinda a uma posição de eminência na
abordagem desse mundo mítico —, o próprio poema foi incitá-lo dentro
de um sonho. Isto mesmo: o poema ou seu arquétipo, sob a figura de
um índio, foi falar-lhe em sonho (ao sonhar, o poeta, que lia os
textos de Barbosa Rodrigues e Brandão de Amorim) e transmitir-lhe a
força “para uma terceira versão do mistério”.
Concebida desta forma e na mesma
fonte em que Raul Bopp bebera a plasmara “Cobra Norato” (só que
servida agora de águas mais abundantes e provindas da região do Rio
Negro), é dentro dessa ordem de idéias que o autor nos revela a
gênese de “Boléka, a Onça Invisível do Universo”. Esse livro, de
grande beleza plástica, ao retomar os caminhos abertos pela boiúna
antropomórfica do mestre Bopp, incorpora-se (como continuação) e
entra a fazer parte da tradição boppiana, à qual, de fato, só têm
acesso verdadeiros continuadores.
Que nos resta dizer? Em verdade, bem
mais, sobre as muitas faces da sua poesia, a começar por alguns
aspectos formais da sua experiência concretista e sua concepção da
Poesia de Muro. Na área do concretismo, por exemplo, depois de levar
seus experimentos aos limites extremos da palavra, “pintando”, por
assim dizer, uma paisagem bucólica com apenas três vocábulos —
Ode
campo
bode.
Jorge Tufic leva tais experimentos
ainda mais longe, mediante a inclusão de elementos extraverbais no
texto poemático.
E no que toca à Poesia de Muro,
experiência de que participaram também outros poetas do Clube da
Madrugada, foi ele figura de primeira plana, pela primazia que lhe
coube no desbravamento do terreno, como seu primeiro teórico e
praticante. (Mas essa é outra história. Melhor contada noutro
capítulo).
Por agora, e para compensar a pobreza
do nosso texto, já que deixamos de iluminá-lo e enriquecê-lo com as
inumeráveis pedras de toque que se disseminam por seus livros, nada
mais nos resta senão encaminhar o leitor, sem mais tardança, aos
textos do poeta, a seguir transcritos, a fim que por si mesmo possa
constatar os seus altos méritos, ao ficar frente a frente com a
beleza da palavra escrita: aquela que, ao mostrar-se aos nossos
olhos e soar aos nossos ouvidos, fulgura e ressoa com o prestígio da
lenda e a reminiscência de tempos imemoriais.
Alencar e Silva
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