Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Carlos Augusto Lima


 

Tempo de fúria e mancha

 

Jornal do Brasil

10.12.2005

 

 

Obra completa de Roberto Piva começa a ser editada

Um estrangeiro na legião
Roberto Piva
Globo
200 págs,
R$ 38


 

É pobre, sim, eu sei. Mas, na poesia brasileira de hoje, que se quer dizer contemporânea, ainda pensamos a poesia, de onde venha, pra que lado for, ainda a pensamos por categorias muito limitadas (vanguarda, não-vanguarda, construtiva, formalista, neo-barroca etc), estanques, viciadas ao engessamento e dureza. Molduras que dizem hoje pouco, muitas vezes quase nada, não ampliam ou problematizam novas discussões sobre aquilo que se lê e vê, e está sendo feito. E cansam. Sem contar, é claro, a luta obsessiva pela etiquetação geracional, como se a facilidade, a simplicidade reinasse nesse dizer ao que pertence o quê, ou, quem sabe, tudo isso estivesse a serviço de uma certeza, como nos dando a urgente e necessária segurança. No entanto, poesia nunca foi dada a certezas. Muito, mas muito menos a seguranças.

Pensar e escrever sobre poesia é pincelar, marcar, carimbar a poesia de fulano ou sicrano com as manchas parcas dessas categorias que tanto nos agradam e nos consolam. É setorizar, é agregar a tal família literária e perceber que aquilo se conecta ao estilo tal. E como estamos viciados a isso! E como é confortável, confortante! Volto a falar em certa pobreza e dificuldade de ir além disso. De imprimir algumas questões de diálogos, interseções e possibilidades não de engessamento, mas do que é maleável, do que se mistura e abre brechas, do que se pensa. E o que mais impressiona é perceber o quanto é tão caro a muitos e novos poetas a necessidade dessas manchas, das marcas de ferro e fogo. Como um suporte, algo que dê um sentido, valor e norte a quem se mete nesse ofício torto da poesia.

Entre essas e outras coisas que me escapam agora é que me deparo e penso na dificuldade de se ler, de se pensar um pouco na trajetória de um poeta tão afeito a essas ''manchas'' que me referi a pouco, e estar isento delas. Falo de Roberto Piva, que tem agora sua obra completa como projeto de publicação pela Editora Globo, que acaba de lançar o primeiro volume, Um estrangeiro na legião, abarcando a fase inicial de Piva, a partir dos primórdios dos anos 60. Piva já foi sinônimo de tudo e algo mais. Falar dele, ou da poesia dele, é cair no risco, escorregar nas manchas suaves que adoramos adornar o corpo da obra alheia. Piva já foi (é) sinônimo de tudo: beat tupiniquim, visionário, pessoano, maldito, místico, transgressor, neo-romântico, poeta da cidade de São Paulo etc. Como escapar a não citá-lo como tal? O que dizer dos poemas de Piva?

Na verdade o que me restaria, e o que muito me agradaria, era poder propor uma brecha de silêncios, uma vez que a poesia desse primeiro Piva (como querem que haja outros) fala por si, num ruído como uma escala em ascese até o grito: ''Eu te ouço rugir para os documentos e as multidões/ denunciando tua agonia às enfermeiras desarticuladas/ A noite vibrava o rosto sobrenatural nos telhados manchados/ Tua boca engolia o azul'' (''Poemas de ninar para mim e Bruegel''). E segue, e segue, agora sim, o grito: ''Teu sopro no corrimão anatômico sobre meus olhos/ aquela serpente com escamas de cicuta sacudida entre/ tuas coxas de megatons//...// TEUS OLHOS SÃO GRITOS DEMASIADO REDONDOS'' (''O jardim das delícias'').

Interrompo aqui meu silêncio diante dessa passagem histriônica de versos. Sim, tudo em Piva de seus primeiros livros reunidos agora, tudo aqui grita, tende ao hiperbólico. O gosto do excesso reina, irrompe nas páginas, mina os versos com um teor juvenil, ou pelo menos com a idéia do que seria furor e energia juvenil. A regra é a fúria. Uma subjetividade latente, incontida, que encontra no espaço do poema o espaço cósmico de se fazer ouvir. E gritar. Uma poética egótica, de viés e filiações malditas, de uma ingenuidade enganadora. Engana, pois, o sopro intempestivo, aparentemente ''lisérgico'' que está, na verdade, amparado numa grossa camada de referências: de Mário de Andrade a Murilo Mendes; de Blake a Isaac Asimov, passando por Nietzsche e Artaud. A marginalidade e a transgressão que presenteiam a Piva são, sem sombra de dúvidas (ou com todas elas, as dúvidas), literárias. Essas referências são o suporte da fúria.

E esse grito furioso era a forma do poeta se colocar diante do seu tempo. O tempo da ânsia transformadora, da rebeldia que prenunciava outros tempos sombrios, coercivos e esmagadores que viriam década afora. Contra as formas de aprisionamento do corpo, da alma, da poesia. Ingênua ou não, datada ou permanente, seja lá qual tipo de mancha você propor ou achar na poesia de Piva, uma coisa é certa: ela está repleta da mais pulsante e irrequieta vida. E o que é a vida se não essa troca de socos, com o que nos engana, e o que nos devora?

 

*Carlos Augusto Lima é autor de Objetos (Alpharrábio Edições) e Eu me satisfaço com a minha casa e o deserto (no prelo).

 

Roberto Piva

Leia Roberto Piva

 

 

 

 

 

 

04.04.2006