Carlos Augusto Lima
15.9.2003
Atentado da
impessoalidade
Semana passada, a Internet divulgou e muita gente saiu por aí para marcar o 11 de setembro com um atentado poético. Mais uma atitude antes de tudo impessoal, fria, onde o ser humano se recusa a conhecer seu semelhante.
Em terra de cego, quem tem um olho é gênio, mesmo sem ser. E muito esperto. Maninho desocupado, iluminou com algo pra se divertir; o outro, segue alegre como nunca, acha bárbaro, maneiro, só falta alguém muito sabido pra teorizar em cima do grande achado, um nada, sem além, nem profundidade. Mas valeu, em época de vazio, quem chega primeiro é rei.
Me apego no ditado só pra exemplificar que, na mesma proporção que
ergue coisas belas, institui alguma facilidade e constrói, a rede
mundial de computadores tem servido para propagar aos quatro ventos
uma pecha de bobagens das mais variadas e inúteis. Antes era uma
corrente, de santo ou de grana, uma estatística maluca ou pesquisa
de alguma universidade escusa sobre coisas do dia-a-dia, que quase
sempre nos alerta, mas óbvio, nunca seguimos. Tudo muito tranqüilo e
inofensivo, na medida em que se esgarçava na indiferença, soçobrando
com o gesto implacável do polegar sobre a tecla DEL. Agora
a nova onda é tomar as ruas de assalto, na atitude, na rebeldia, é
encontrar os outros anônimos em bando, nas ruas, poses e gestos
estranhos em poucos segundos, assustar, impressionar os desavisados, a massa mecânica e alienada da cidade e bater em retirada, assim como chegou, anônimo, em silêncio, quase sem olhar para o outro. E só. E só? É claro, não tem mais por quê, e nem pode, nem precisa. Só há uma constatação: o vazio. A rebeldia do vazio, a contestação do nada. Sintoma mesmo, deste tempo, o nosso, onde as coisas pensadas na dimensão do instantâneo são engolidas por ele, absorvidas pelo esquecimento ou pela chegada de outra grande novidade, e ir atrás de outra rápida idéia brilhante, outra grande bobagem. Quem tem um olho... é verdade.
Semana que passou deixou o registro de um outro desses ''atentados'', dessas tentativas inócuas de rebeldia, se é este o caso. Pela rede, a mensagem ordena: largue algum bom livro, desses que te encantaram, ou mudaram sua vida, nalgum lugar público (banco de praça, cesto de lixo, assento do ônibus) para ser achado por outro, por um anônimo. Protesto pacífico para lembrar o fatídico 11 de setembro de 2001. Daí que, puxando cá para o meu lado, já que se tratava de livros e leituras, ou possibilidades delas, topei nesse caso, e não propriamente sobre o tal atentado, mas a partir da idéia, com algumas possíveis questões, quem sabe, sobre perder livros por aí. Da fronteira disso, olhando para cá, nosso umbigo, dos limites que o gesto coloca sobre o ato de ler, de ofertar leitura, e das fronteiras entre uma ótima idéia e uma grande tolice.
O motor do ''atentado poético'', reconheço, tem méritos. Resposta à barbárie com uma delicadeza. No entanto, penso, e isso de maneira muito particular, nas distâncias deste país, não só geográficas, mas materiais, espirituais, para se tomar esse ''atentado'' com algum peso, solidez, como algo de importância, por que a leitura mesmo, de muito não tem importância num país como este. País de uma massa iletrada e, de outra massa maior de letrados que não toleram sequer a idéia de gastar alguns tostões com essa inutilidade chamada livro. País de abismos tecnológicos, só lembrando a ridícula quantia de pessoas que dispõem de internet em casa. Mundinho pequeno esse nosso.
Fora esses velhos problemas de ordem prática, conhecidos, vizinhos, me vem a idéia também de como a literatura se desloca dessas atitudes, uma vez que, ao objeto a ser largado, coloca-se a função de ter mudado a vida de alguém. Pois, acredito, que a literatura não se move, nunca teve como propósito, com a incumbência de modificar a vida de seu ninguém. A literatura é, na verdade, um embate duro e certeiro com a nossa humanidade, ou com o que resta dela aqui por dentro. As conseqüências desse embate são as mais imprevisíveis, os efeitos colaterais são variados. Tudo para o bem, o mesmo tanto para o mal. Fiquei curioso com o tipo de leitura que circulou. Algum manual para salvar a nossa pele?
Pois bem, o leitor já foi encontrado e a ele o livro se oferta, se derrama na entrega, sem evento, sem alarde, de maneira discreta e íntima. O atentado da leitura já se realiza em você mesmo, antes de se imaginar em largar o livro por aí numa esquina, o que, aliás, me faz lembrar mais uma vez certa obsessão em se reforçar o culto do anônimo, do desconhecido, do vazio. Triste constatação de um mundinho, este, incivilizado e arrogante, mergulhado num enclausuramento de cabina do automóvel, apavorado, nervoso, fustigando o outro que se aproxima. Aquilo é um aceno, ou socorro?
Veja como é cômodo eu não me identificar. Não entro em contato, não me aproximo, não vejo para quem eu oferto meu objeto, não aproveito para conhecer alguém. Daí que fiquei com a impressão de que o ''atentado poético'' pareceu carregado de uma gentileza incompleta, traduzida numa dedicatória a um alguém distante e impessoal. Ora, se o grande barato de ofertar o livro a alguém é olhar seu olhar curioso, surpreso ou emocionado. É poder rabiscar palavras bonitas pra quem você quer bem e ver no outro, perceber, uma vermelhidão, umidadezinha que seja, mesmo na aparente dureza do olhar amigo. Também comentar o livro que leu, discutir, trocar idéias, questões, por mais vagas e absurdas. Que sejam.
De boas idéias a lixeira do meu computador está cheia. Espero a nova grande sacada genial, moderna e contemporânea. Não precisa
ser ousada, basta ser simples. O melhor e mais poético dos atentados pode estar na simplicidade do olhar e do abraço. Não precisa soltar livros por aí, até por que esses objetos merecem respeito, são delicados, uma tecnologia ainda hoje sofisticada e eficiente. Não precisa ser ato datado, pode ser cotidiano, diário, uma gentileza, um cuidado. Pode começar seu atentado com alguém de casa, na mesa do café da manhã ou do jantar.
Difícil, não? Eu sabia, foi de propósito.
Carlos Augusto Lima é mestrando em Letras/UFC
carlosaugustolima@hotmail.com
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