Cunha e Silva Filho
A estreia de Dílson Lages Monteiro na ficção
A história da literatura piauiense está a pedir uma história da ficção, se não com uma
obra de maior alcance, pelo menos com uma boa síntese.
O Piauí não tem muitos autores no campo ficcional, como não possui muitos filósofos
segundo, certa vez, afirmou em trabalho ensaístico o jurista Celso Barros Coelho e,
ao que me parece, no conto é bem mais aquinhoado, e, quantitativamente, mais ainda o
é na seara poética.
O primeiro ficcionista piauiense mais conhecido, registrado pela historiografia foi
Francisco Gil Castelo Branco (1848-1891), autor de Ataliba o vaqueiro (1878). Valendo-me
das principais fontes da historiografia das letras piauienses, a indispensável e pioneira
obra de João Pinheiro, Literatura piauiense – escorço histórico, aquela obra de
Francisco Gil é por esse historiador considerada uma coletânea de contos, saídos
a lume em folhetim do Diário de Noticias do Rio de Janeiro, no ano de 1875.1 Como
salientei atrás, a fortuna critica de ficcionistas piauienses é escassa e, num
cômputo geral, sobressaem alguns nomes mais conhecidos e poucos os mais festejados.
Dessa maneira, o surgimento de um novo autor no âmbito da prosa de ficção se reveste
de momento auspicioso.
O mais novo autor piauiense é, agora, Dílson Lages Monteiro, escritor muito jovem
ainda. Ele é de 1973, nascido em Barras, município do Piauí. É formado em Letras
pela UESPI.
Dílson, como escritor, estreou como poeta, com obras bem acolhidas pelos leitores e pela
critica. Contudo, sua atividade se estende à prática docente, desenvolvida em moldes
renovadores, tendo como centro de interesse os estudos mais recentes da comunicação
escrita, da análise do discurso, da linguística textual. Daí ter se tornado logo autor
de uma bem realizada obra para a área da Redação, que é seu livro Texto argumentativo –
teoria e prática (2007), publicado em Teresina. Quão longe estamos do Piauí dos anos
sessenta, em que os estudos de língua e literatura ainda se realizavam com tão
precários recursos teóricos nesses dois domínios dos estudos literários. O jovem
professor, que é também editor, mantém ainda dois encargos na área do conhecimento
da escrita: tem seu Laboratório de Redação, que leva o seu próprio nome e é diretor
do prestigiado PortalEntretextos, um verdadeiro fórum cultural com ênfase em assuntos
literários e dispondo de um bom número de competentes colaboradores.
Apesar da juventude, Dílson, dentre múltiplos afazeres, põe-se agora à prova de
escritor de ficção com o seu recém-lançado livro O morro da Casa-Grande.2
Propositalmente, usei, no parágrafo anterior, o termo “livro.” Sendo assim, me obrigo
a penetrar no terreno da narratividade e, dessa forma, me aproximar de uma classificação
que a minha experiência teórica melhor indicar, posto que, por ora,
provisoriamente.
Mais do que uma taxativa classificação genológica para a narrativa do livro do Dílson
Lages, seria melhor me ater, primeiro, a alguns aspectos envolvendo a capacidade do
autor em lidar com a criação ficcional, que para mim, em última instância, é o que
mais importa.
Comparando esquematicamente os instrumentos da linguagem do autor empregados na sua
produção poética, um dado favorável me vem à tona: a ideia propiciada pela leitura
da sua narrativa teria aquela mesma sensação da leitura de um texto poético, não
necessariamente da autoria de Dílson Lages, mas daquilo que a leitura de um poema
nos provoca, uma camada de natureza opaca, de natureza indefinida, que faria parte
do ato da própria criação literária. E essa sensação aqui referida que me passou
no momento da leitura aponta muito mais para a fruição de um texto bem pensado e
elaborado, tocando os sentidos mais do que o mero ato comunicativo, mais do que o
esforço despendido na análise da sua narrativa, através do trabalho exaustivo da
decomposição de seus elementos estruturantes.
Há um dado que muito conta a favor desse escritor: é que, ao lado da linguagem que,
por vezes, tangencia a poetização do seu tecido literário, ao mesmo tempo existe um
cuidado especial com a linguagem, com a sintaxe do discurso narrativo, e isso é bem
visível no espaço do enunciado, no qualas imagens poéticas e o lirismo potencialmente
forte se casam perfeitamente, numa harmonia de um discurso que trai um sabor -
diria - clássico, mas clássico sem ser arcaizante, clássico à maneira do que fez
Graciliano Ramos com o seu texto enxuto, comedido, sem arestas. Acompanha
Graciliano Ramos no uso do discurso indireto livre. Usa às vezes enunciados de
uma frase apenas, e nisso me lembra também Graciliano Ramos.
Dílson Lages, atento aos segredos e ao domínio da comunicação literária escrita, não
esquece esse recurso retórico, emprega os termos regionais referentes a objetos, a
expressões do vocabulário do mundo físico ou cultural típico piauiense que fazem
ressoar saborosamente aos nossos ouvidos relembranças do nosso tempo de memória da
terra. Prima pela correção sem os exageros do purismo anacrônico, usa da tmese,
trabalha a frase até o seu limite máximo de correção, sem, todavia, tornar o discurso
narrativo arrevesado. Não cria linguagem nos moldes de Guimarães Rosa, está mais para
os escritores sóbrios, de texto legível, claro, cristalino. Na obra houve poucos erros
gráficos.
O texto de Dílson nos empurra para a frente – li-o num dia -, nos força o intelecto e nos
propõe indagações de ordem vária. Além disso, do início da narrativa até o desfecho, o
comentarista dessa pequena narrativa não hesita em reconhecer estar diante de um narrador
consciente de seu papel de escritor, de sua pessoal visão da existência dentro dos
limites daquele recorte espacial e temporal - seu trabalho é com a memória imaginativa
e histórica -, reunindo seres, crianças, mulheres, homens, velhos, natureza, hábitos
rurais, costumes, ideologias implícitas, sentido religioso e formas de vida em
decadência inescapável. Sua ambiência se passa entre o campo e a cidade interiorana
dos anos cinquenta do século passado indo até aos inícios da década de sessenta
daquele século. A extensão física da narrativa, segundo já assinalei, é pequena,
nem dá pra nomeá-la de romance.
Entretanto, o que verticaliza as possibilidades positivas da história relatada fica
por conta do mundo interior de alguns personagens, com especial destaque para Marciano
– símbolo da “ idade de ouro” – a infância.
Marciano, quer me parecer, é personagem perfeito na sua composição. Tem vida
própria. Às vezes, durante a leitura de O morro da Casa-Grande, me veio à
lembrança a autenticidade e ternura do personagem Ulisses, de O. G. Rego de
Carvalho.3 Não que se tenha a mesma situação vivenciada pelo personagem-central
do romance do autor de Oeiras, mas pelo bom resultado da composição do
personagem Marciano – apenas uma menino, um adolescente de 13 anos, com uma
enorme carga emocional, bem como com seus questionamentos próprios da idade,
causando perplexidades aos adultos que o cercam. Inclusive Marciano é um
personagem que faz a travessia entre o campo e a cidade. Sua participação
na história não pode ser negligenciada sob vários enfoques, social, histórico,
ideológico, religioso etc. Não podemos negar ser Marciano uma das figuras
centrais da narrativa
A fabulação tem, porém, restrito número de peripécias (embora padeça de um grande
número de nomes de personagens apenas citados, mas sem correspondente desempenho na
história, ainda que como figuras secundárias) ou episódios mais relevantes à
totalidade da narrativa, sendo que as duas principais, que impulsionam o narrador
para a frente foram o acontecimento da morte trágica e misteriosa de Clemílson,
com a forma engenhosa de relato não apresentando explicitamente alguns dados adicionais
do incidente fatal, ou seja, deixando, a critério do leitor, algum espaço para
especulação do fato. A outra seria os antecedentes e as consequências da derrubada
da Igreja Matriz de Barras, em 1963, com toda a sequela de desdobramentos religiosos,
culturais, políticos e sociais aí implicados.
Os personagens outros que integram o plot, Genésio, coronel Custódio, coronel
Alberto Pires, Deusimar, a bisavó carola de Marciano, deixam lá suas marcas
pessoais e inconfundíveis.
Entretanto, o leitmotif da narrativa não deixa de ser a derrubada da igreja na sua
imbricação com a imagem fantasmagórica do morro da Casa-Grande. Dessas duas
circunstâncias podemos depreender toda a motivação do núcleo do relato. A
Igreja da Matriz de Barras reforça esse elemento temático-nuclear com a
chancela histórica de ilustrações inseridas no corpo do texto , assim como
de outras ilustrações e paisagens alusivas ao meio rural, a um antepassado
histórico, ao rio Marataoã, a ruas de Barras, a outros logradouros da cidade
e, finalmente, a ilustrações representativas daquela igreja. Esses dados da
realidade no campo e na cidade, por assim dizer, quebram a chamada ilusão
ficcional, predispondo o leitor a uma volta ao mundo empírico e a ver a ficção
como uma mera construção imaginativa, mas não desligada dos seus liames
histórico-culturais.
A Igreja da Matriz funciona como constante índice do desdobramento da intriga até o
epílogo. O morro da Casa-Grande e a Igreja da Matriz são os dois esteios centrais do
livro. Valem, portanto, como personagens-símbolos. Tudo no desenvolvimento da narrativa
serve para encontrar seu ponto de convergência, o morro e a igreja, cujo passo final
é a destruição da velha Matriz. A ausência dela explica a própria decadência da vida
e da época do coronelismo, exemplificado na frase inicial do capítulo 23: “Coronel
era gente que mandava.”4 Atente-se para a forma verbal pretérita “mandava”.
Não há como não pensar na ficção do “romance de 30”, com Fogo morto, de José Lins do
Rego, com Vidas secas, de Graciliano Ramos, por exemplo. Num, por retratar a
decadência rural, noutro, por linhas transversas, com personagens como Marciano e o
cachorro Tubarão, que palpitam de vida e de humanidade. Claro é que no Morro da
Casa-Grande a dramaticidade não voa tão alto nem tem a dimensão trágica das narrativas
mais densas. No entanto, na ficção inaugural de Dílson Lages há sinais palpáveis de
habilidade e criatividade. Nas descrições modelares da vida rural, da fauna e
flora nordestinas, piauiense, diga-se mais exatamente.
Tampouco se ressente a obra do Dílson Lages de uma linguagem que demonstre ausência de
recurso técnico-narrativos, visuais, de sondagem psicológica (aqui se afastando de
traço do gênero novela), de desenhos certeiros e objetivos na caracterização dos
personagens. Genésio, o agregado e capataz, por exemplo, é digno de nomeação pela
vida que tem como criação literária. Marciano, nem se fala.
Vejo que os comentários que acabo de tecer, num apanhado geral, estão longe de fazer
jus a outras camadas subjacentes que fazem dessa narrativa um deleite para a leitura
de uma ficção que se recomenda por si mesma e, por outro lado, coloca, sob os ombros
do autor, a responsabilidade de dar continuidade a uma carreira de prosador, já
promissora por todas as qualidades ou restrições que lhe possamos fazer.
Não quero concluir meus comentários sem, pelo menos, fazer um enquadramento
classificatório final. A narrativa de Dílson Lages se insere no gênero da novela.
Não obstante propiciar ensejos para uma visão da existência fragmentária, a obra
sinaliza, no seu conjunto de capítulos, para possíveis desdobramentos de “células
dramáticas” ( Massaud Moisés) próprias de uma novela e não de um romance, que é um
passo final para descortinar uma visão totalizadora (Lukács). Em outros temos, para
uma visão horizontal e vertical da complexidade da existência física,
humana e mental.
NOTAS:
1.PINHEIRO, João. Literatura piauiense – escorço histórico. Teresina: Fundação
Cultural Monsenhor Chaves, 1994. Posfácio de Francisco Miguel de Moura.
O leitor pode também consultar com proveito os historiadores Herculano
Moraes, Francisco Miguel de Moura e Adrião Neto.
2. LAGES MONTEIRO, Dílson. O morro da Casa-Grande. Teresina; Livraria Nova
Aliança Editora, 2009. Imagens da capa: Ângela Rêgo; Revisão: Luiz Filho de
Oliveira.
3. CARVALHO, O. G .Rego de. Ulisses entre o amor e a morte. 7. ed. Meridiano,
1989.
4. LAGES MONTEIRO, Dílson. Op.cit., p. 95.
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