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Dílson Lages




A razão e o delírio em O sabor dos Sentidos, de Dílson Lages Wanderson Lima


 

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche prestou relevante serviço à Estética quando em sua obra “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música” contrapôs o apolíneo e o dionisíaco, tomando por base os arquétipos dos deuses gregos Apolo (a Razão, o Equilíbrio) e Dionísio (a Imaginação, a Loucura).

Partindo desta distinção estabelecida por Nietzsche, podemos dizer que, na história da arte e da literatura, há períodos de franca inclinação apolínea, como o Classicismo e o Realismo e outros de tendência dionisíaca, como Romantismo e o Simbolismo. Haveria, também, períodos de síntese entre o espírito apolíneo e o dionisíaco, como o Modernismo.

Mas em que este paradigma nietzschiano nos servirá para compreender a poesia de Dílson Lages? É fácil responder: a refinada poética do autor de “O Sabor dos Sentidos” funde, paradoxal e magistralmente, o elemento apolíneo (isto é, a sobriedade, a harmonia e a ordem) com o elemento dionisíaco (a imaginação, a música e o delírio).

Dílson Lages é um poeta da linhagem de João Cabral e Paul Valéry: um “algebrista a serviço de um sonhador refinado”. Dílson não faz versos ao sabor de epiteliais devaneios líricos nem tão pouco é um daqueles poetas cerebrais, mero preenchedor de formas ou arquiteto de brinquedos mais ou menos engenhosos. Dílson inspira e transpira, trabalha e delira, ergue um altar ao deus Apolo e outro ao deus Dionísio:


ALMA(DES)ENCONTRADADA

Arranquei os espinhos do teu corpo
com os dentes
e lambi meus lábios
com os tentáculos de minhas mãos vazias.

Arranquei os dentes de teus espinhos
e pisei as tuas curvas de serpente
que me furaram a pele
e me deixaram surdo.

Arranquei o corpo dos teus espinhos
e a essência do teu perfume
cegou-me o ego.

Arranquei os espinhos do teu corpo
com os dentes
e tento sair do labirinto
de não ser mais eu.


Não nos é difícil aproximar o Dílson de “O sabor dos Sentidos” (e também o do livro anterior, “Os Olhos do Silêncio”) do João Cabral de Melo Neto de “Pedra do Sono” e de “O Engenheiro”: percebemos em ambos que a profusão de imagens desconcertantes não são “vomitadas” ao bel-prazer, como faria um surrealista típico, mas que, por espantoso que seja, são rigorosamente pensadas e construídas. Fazer com que Apolo e Dionísio andem de braços dados a serviço do desvelamento do ser – eis o milagre que a poesia de vates como Dílson Lages é capaz de obrar.

Não obstante a pouca idade, Dílson Lages é arguto e experimentado (além de poeta, é um notório professor-pesquisador) e já sabe o que muitos poetastros sentimentalóides ou pseudo-socialistas estão longe de saber: que a poesia empobrece à medida que se torna confissão ou lição de moral. O poeta de “O Sabor dos Sentidos” recusa-se ao tom didático, edificante e professoral: ele sabe que a poesia – como disse uma vez Manoel de Barros – é para “desexplicar”, isto é, ela tinge a realidade de mistério, revelando que nem tudo que existe entre o céu e a terra pode ser desvelado pela nossa vã filosofia.

Dílson Lages não explica: complica. Graças a Deus! À maneira dos poetas expressionistas, ele primeiro constrói a imagem, o sentido vem depois. A conseqüência disso é que sua poesia atinge um alto grau de ambiguidade, possibilitando várias leituras e exigindo um leitor ativo e corajoso, que se predisponha a viajar “por mares nunca dantes navegados”:


SINESTESIA

A minha face se refaz
nas pedras das tuas palavras
e o suor segue os trilhos
das nossas almas incertas.

No caminho
as trevas descortinam
as vestes do inconsciente
e liberta o medo que nos apavora.

Somos criatura da noite
devorando a dor
que nos alimenta.

E os defeitos
desfeitos de todos os sons
diluem-se na confusão
dos sentidos.


É claro que alguns espíritos pragmáticos, acomodados aos vôos rasos da imaginação burguesa, logo acusarão Dílson Lages de hermético. Mas o hermetismo em Dílson não é defeito. Nosso vate é senhor de seus recursos e escreve sempre em linguagem simples e concisa, evitando o uso de vocábulos eruditos. Seu hermetismo é conseqüência da originalidade de suas metáforas e da maneira sutil e inusitada como aborda velhos temas como o amor, o erotismo, os conflitos do eu, a memória da infância e o apego à paisagem da terra natal. O hermetismo na poética de Dílson é, enfim, o mesmo de Rainer Maria Rilke, Pablo Neruda, Eugênio Montale e Mário Faustino.

Dentro desta breve explanação, não poderia deixar de tocar em dois outros pontos da poesia de Dílson Lages em “O Sabor dos Sentidos”. O primeiro deles é a ”pansensualização” que se percebe ao longo de quase toda a obra, inclusive em poemas que se distanciam da temática amorosa. Eis um exemplo nesta estrofe de “Tal vez”:


“Um dia talvez
a tarde se deite
debaixo de meu lençol
e o corpo do tempo
seja o seio
que seguro
em minhas mãos”.


O segundo ponto relevante de que gostaria de tecer breve comentário é sobre a presença do sensacionismo da primeira à última página de “O Sabor dos sentidos”. Neste ponto, Dílson Lages é exímio continuador de uma tradição que em língua portuguesa encontrou no heterônimo pessoano Alberto Caeiro e em Almada Negreiros suas mais altas expressões. É Caeiro, aliás, que empresta epígrafe ao livro:


“Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca”


Esta epígrafe foi inteligentemente escolhida, porque prepara o leitor para o delírio sensorial que ele irá encontrar em todo o livro, como bem nos mostram estas estrofes de “Permanência”:


“Meu nariz não respira
o cair da tua presença
como sombra de meus passos
nem o olfato fala
teu cheiro de flores do campo.

Meus olhos não degustam
a grama da cama macia
e o paladar mastiga os lábios
sem engolir o gosto
dos beijos de açúcar.”


Com “O Sabor dos Sentidos”, Dílson Lages reafirma o título de maior poeta de sua geração, o Milenismo, como a chamou Herculano de Moraes.

Manoel de Barros diz, em um de seus célebres poemas, que “os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas”. Pois tenham certeza de que o mundo está bem maior agora, graças a esse suculento “O Sabor dos Sentidos”, fruto do labor apolíneo e do delírio dionisíaco do vate Dílson Lages.


Wanderson Lima é poeta, doutor em Literatura e professor da Universidade Estadual do Piauí.


 




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SB 16.12.2022