Edmilson Caminha
Cineas Santos e o ofício da
palavra
Em 1942, convidado para uma conferência pela Casa do
Estudante do Brasil, o escritor gaúcho Vianna Moog interpretou a
literatura brasileira como um arquipélago, “com muitas ilhas de
cultura mais ou menos autônomas e diferenciadas.” Contou sete:
Amazônia, Nordeste, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do
Sul e Rio de Janeiro. Tratou o palestrante da natureza e dos
elementos próprios de cada uma, sem discorrer sobre o absoluto
isolamento que as distanciava. Há sessenta anos, de fato, em Belém
não se dava notícia do que ocorrera em Salvador, aonde não chegavam
os livros de Fortaleza, em que ninguém lia escritores de Vitória,
ignorados pelos colegas do Recife... Hoje, a situação é menos pior:
construíram-se algumas pontes entre as ilhas, e o arquipélago, que
antes mal sabia de si mesmo, agora se conhece um pouco mais.
Se se comunicam melhor, há unidades ainda ignorantes
de si próprias. Tome-se, por exemplo, a ilha Nordeste, segundo a
classificação de Vianna Moog: quantos, no Rio Grande do Norte, são
os leitores do poeta cearense Francisco Carvalho? Em que livrarias
no Maranhão acham-se obras do paraibano Ascendino Leite? E qual o
nordestino, não piauiense, que comprou um livro de Cineas Santos?
Pois Cineas está entre os melhores e mais competentes cronistas da
literatura brasileira contemporânea, na linhagem nobre a que
pertencem Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Carlos
Drummond de Andrade e Rachel de Queiroz. Ocorre que Cineas Santos
vive, trabalha e escreve em Teresina — é, portanto, cronista
piauiense, um escritor nordestino, condenado à modéstia da praça e à
pequenez do público.
“Livro editado na província é pedra atirada no fundo
do poço...”, já dizia o cearense Moreira Campos, cujos contos são
iguarias que poucos provaram.
As despesas do envelhecer, de Cineas Santos, tem o
selo das Edições Corisco, de Teresina, onde foi lançado em 2001: é,
como se vê, livro publicado na província, e, conseqüentemente, pedra
arremessada no fundo do poço... Mas pedra que faz respingar água no
rosto de quem a joga, e água tão fresca e tão limpa e tão pura que
dá vontade de senti-la mais, de bebê-la toda. São assim as crônicas
d’As despesas do envelhecer, coletânea que nos seduz a começar pelo
título, criação do poeta H. Dobal (outro piauiense, “provinciano”
que o arquipélago se dá o luxo de desconhecer...).
Publicadas originalmente nos jornais O Dia e Meio
Norte, de Teresina, as crônicas de Cineas encantam pela
simplicidade, pela espontaneidade, pelo vigor e pelo lirismo com que
se apresentam. Somem-se, a esses méritos, a clareza, o apuro e a
correção da forma —pois o grande cronista é, também, admirável
professor de língua portuguesa e de literatura brasileira. “O texto
de Cineas brilha pelo asseio”, nota, com toda a razão, o contista
Genuíno Sales. Tome-se, à guisa de exemplo: “Ele chegou como chega a
noite: sem pressa, sem ruído. Nada trazia a não ser o sujo das
lonjuras grudado nas retinas. Impossível adivinhar-lhe a idade, mas
o algodão encardido da carapinha denunciava muitas luas.” Bem que
poderia ser um conto, não fosse a bela crônica em memória de Edisón
(assim mesmo se chamava), um desses maluquinhos despachados por Deus
para nos iluminar a vida.
Com o maior talento, o autor d’As despesas do
envelhecer desce ao fundo de si mesmo para resgatar o menino que
ficou, a infância pobre em São Raimundo Nonato, o baú de esperanças
e de sonhos que carregaria para sempre. Nesse retorno, prevalece a
figura dos pais, Dona Purcina e Seu Liberato, exemplos de grandeza e
de sabedoria humana.
Dos dois, Cineas recebeu a lição de dignidade que o
sustentou na luta, salvando-o da miséria e do analfabetismo a que se
condenava no sertão para se fazer intelectual de renome, escritor de
primeira. Aos olhos de quem não conhece, eis aí um testemunho do
autêntico milagre brasileiro...
Falando de si ou dos outros, Cineas sempre se mostra
de corpo inteiro, emitindo opiniões com a honestidade e o rigor que
certamente já lhe valeram muitos desafetos. Nesse ponto, é da
família de que são membros ilustres Monteiro Lobato e Graciliano
Ramos, escritores que primavam pela correção ética e pela inteireza
moral, pouco se lhes dando se satisfaziam ao público ou se agradavam
aos amigos. As crônicas discorrem sobre a Copa do Mundo e a
globalização econômica; a gravidez de Xuxa e o aniversário de
Pepezinha, a cadela da grã-fina Vera Loyola; as chantagens de ACM e
a violência urbana que angustia os brasileiros... Cineas vai, assim,
do importante ao trivial, do lírico ao grotesco, do substancioso ao
irrisório — com a competência de Rubem Braga, que, segundo Manuel
Bandeira, escrevia melhor quando sem assunto...
Honra, pois, a Cineas Santos, cavaleiro das nuvens,
guardião das auroras, cantor fidelíssimo da mulher desejada. As
despesas do envelhecer ficam por nossa conta: à mesa em que se
assenta a confraria dos leitores, mestres da literatura, como ele,
não pagam nada.
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