Edmilson Caminha
Lya, a louca admirável
Amiga de Guimarães Rosa, passou quatro horas ao
telefone ouvindo-o contar as histórias de “Miguilim” e de
“Manuelzão”, que acabara de escrever. À moça que lhe dissera estar
namorando, perguntou curiosa: “Ele sabe usar a crase?” No Serviço
Latino-Americano da BBC de Londres, em que trabalhou durante a
Segunda Guerra, reagia sem medo às sirenas do alarme antiaéreo:
enquanto os companheiros procuravam o abrigo subterrâneo, subia ao
teto para ver a noite riscada de luz... Espontânea e surpreendente,
assim era Lya Cavalcanti, a jornalista, tradutora e funcionária
pública que a escritora Elvia Bezerra dá a conhecer no “Meu Diário
de Lya”.
Entre a confissão íntima e a narração biográfica, o
livro é um bem dosado composto dessas duas espécies de prosa: o
texto referente a Lya, em caracteres redondos, cede espaço, aqui e
ali, às memórias da autora, em itálico. Recordações da amiga, com
quem conviveu por dez anos, e da rica experiência literária que
interessa ao leitor, como a viagem à Holanda para conhecer Joanita
Blank, que a presenteia com valiosos manuscritos de Manuel Bandeira.
Ao poeta de Pasárgada somam-se, no “Meu Diário de Lya”, Carlos
Drummond de Andrade, Ribeiro Couto, Paschoal Carlos Magno, Nise da
Silveira, Antonio Callado e José J. Veiga. Nenhum, porém, com a
originalidade e a força de Lya Cavalcanti, a provar que devem
sobreviver ao esquecimento não só as estrelas da literatura, os
gênios da arte, mas os homens e mulheres cuja grande obra é a
intensa e emocionante vida que sabem viver.
Com um estilo saboroso, Elvia Bezerra narra a
história comovente de Lya Cavalcanti. No Rio de Janeiro, após a
temporada londrina, o amor que sempre tivera pelos cães —
principalmente os vira-latas soltos nas ruas — transformou-se em
verdadeira obsessão. Costumava dizer-se ocupante de uma vaga de
canil, pois os trinta cachorros de que era dona quase a expulsam do
apartamento onde morava, no Cosme Velho. Os bichos emporcalhavam
tudo, da dedicatória com que Guimarães Rosa lhe ofereceu o “Corpo de
Baile” aos documentos que traduzia para empresas como a Petrobrás.
Por duas vezes, os condôminos foram à justiça para despejá-la do
prédio, alegando a sujeira e o barulho da cachorrada. Com o tempo, a
outrora simpática jornalista passou a exalar o cheiro dos seus
hóspedes, daí a maneira por que, certa ocasião, Antonio Callado a
apresentou em uma roda: “Aqui está Lya, que era muito interessante.”
Com essa “louca admirável” — segundo Carlos Drummond
de Andrade, na bela crônica que sobre ela escreveu —, o autor de
“Sentimento do Mundo” editou, em 1970, “A Voz dos que não Falam”,
jornalzinho mimeografado de oito páginas, tamanho ofício, quando a
defesa pública dos animais era coisa de excêntricos, longe da
militância que depois viraria moda. Lya Cavalcanti morreu em 1998,
com 91 anos, cercada pelos bichos que amou e pelos quais lutou
bravamente. Ninguém a entendeu melhor do que Elvia Bezerra, no “Meu
Diário de Lya”: “Foi o ser mais incompreensível que conheci até
hoje. Não foi modelo de nada. Nem quis. Mas permanece como símbolo
do que há de mais humano, no sentido da precariedade, da nobreza, do
excesso, e por isso da escassez, tudo junto. Encerrou a velhice e a
juventude: a velhice no desgaste do corpo cansado, que ela
incorporou com bravura, e a juventude no entusiasmo, no frescor, na
agilidade de suas idéias. Lya foi absurda.”
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