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Wilson Martins


 


Dia a dia



Prosa e Verso, 09.03.2001
 

Lêem-se as memórias e os diários (espécies literárias que cobrem território comum) pelos mais variados motivos, o primeiro dos quais, bem entendido, é o prazer da leitura: o gênero memorialístico será literatura ou não será. Quem não gostar de ler pelo simples exercício da leitura não pertencerá à família de espírito em que se incluem os leitores de memórias e diários. Pensando bem, não pertencerá nem mesmo à família dos leitores, ponto.

Há, naturalmente, motivos colaterais, como o interesse pelo autor, pelo momento histórico, pelo jogo de idéias, pelo debate intelectual e… pela maledicência, pela curiosidade legítima ou doentia. Segundo Edmilson Caminha, "tratamos dos outros para falar de nós mesmos, assumimos o papel de observadores dos homens e do mundo quando, na verdade, queremos receber do mundo e dos homens a importância e a atenção a que nos julgamos com direito. Tudo, é claro, pela certeza de que a pessoa que somos, a vida que vivemos, os livros que temos e os amigos que temos se mostrarão suficientemente interessantes para conquistar o leitor…" (Lutar com palavras. Brasília: Thessurus, 2001).

Já se disse que o diário é espécie natural dos países protestantes, onde não se pratica a confissão auricular dos católicos, inventores do confessionário, forma primitiva do divã de análise. No caso brasileiro, o postulado confirma-se duplamente no monumento diarístico de Josué Montello, protestante pelas origens familiares, mas também no próprio e no figurado como testemunha da vida literária.

É nessa estante que devemos colocar o Diário de um crítico, de Temístocles Linhares, que ficará completo em seis volumes, dos quais acabam de aparecer o quarto e o quinto (Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001). Pode-se compará-lo aos clássicos paradigmáticos da espécie, no Brasil e no exterior. Gênero de moralistas, na acepção filosófica do vocábulo, interessa-se menos pelos homens que pelo Homem, quero dizer, pela condição humana, a exemplo do que deixaram Montaigne, num dos pólos, e André Gide no outro, para nos atermos ao domínio francês, pátria intelectual de Temístocles Linhares: "Há às vezes nestas páginas um tom moralista ou imoralista que nem sempre traduz o modo de ver as coisas do ponto de vista pessoal, eis a conclusão a que chego relendo uma ou outra destas páginas que, como já disse, não sendo preenchidas ao correr do lápis, em letra nem sempre muito segura. […] Por que é que se fala tanto em estado de espírito? A variabilidade é antes o seu clima, se bem que alguns pensamentos básicos possam ter sempre caráter dogmático. Aliás, nada me repugna mais do que a infalibilidade do dogma […]. Ser dogmático é ser teimoso, pertinaz, empedernido mesmo. E eu confesso gostar de variar, de mudar de opinião muitas vezes […]."

Percebe-se que o tom, a matéria e até o gabarito intelectual diferem dos de Edmilson Caminha, este, sim, mais interessado nos homens do que no Homem. Ele vai do anedotário secreto de personalidades conhecidas (de resto menos "creto" do que parece, porque, segundo o filósofo, "em sociedade tudo se sabe"), aos julgamentos críticos e aos intantâneos da vida literária. Assim, por exemplo: "Quem lê, hoje, Vianna Moog? Indague-se por ele, no último semestre do curso de Letras, e poucos saberão quem foi […]." Escrevendo em 1999 sobre Zélia Gattai, projetada de repente numa celebridade polêmica, Caminha refere-se aos seus livros mais recentes: "nenhum tão bom quanto Anarquistas, graças a Deus […]. No de agora (A casa do Rio Vermelho), Zélia declara de novo o amor pelo marido, o gosto de servi-lo, a disposição de protegê-lo para que pudesse escrever em paz os seus romances […]."

Zélia Gattai viu-se envolvida nos insondáveis desígnios da Providência, quero dizer, das eleições acadêmicas, sobre as quais, citado por Edmilson Caminha, diz o sábio Josué Montello, que as conhece melhor do que ninguém: "Cada eleição tem a sua peculiaridade. É preciso saber quem está competindo. O candidato é que faz a eleição […]." Jorge de Lima candidatou-se cinco vezes não conseguindo eleger-se, havendo escritores que, sem alcançar a glória literária, alcançaram a de candidatos perpétuos… Nessa história há, de resto, divórcios e reconciliações, além das rupturas irreparáveis: Rui Barbosa abandonou a Academia porque não lhe quiseram computar o voto enviado por telegrama. Assim como Edgar Allan Poe escreveu a história da carta roubada, Josué Montello narra a do voto roubado – o que teria assegurado a vitória de Juscelino Kubitschek, entretanto misteriosamente desaparecido da urna e jamais encontrado…

Como se vê, vale a pena ler os diários… Mas, para o autor, têm o valor incomum de ser um exame de consciência, como o qualifica Temístocles Linhares, mesmo sem nenhuma "confissão patética": "Em vez de dizer 'para frente', o seu lema talvez seja mesmo: 'para dentro'. […] Dentro do desalinho da improvisação, ou seja, do currente calamo, não vamos encontrar aqui atitudes heróicas, mas anti-heróicas, algumas anotações de sensibilidade, de matiz e de som que se incrustam num homem entre os homens apenas interessado em se entregar em sua pureza e desnudez. Sem outro disfarce que o da máscara da própria face, de resto pouco favorecida por Deus."

Nessas perspectivas, são pungentes os seus comentários sobre a dramática e quase inacreditável decadência da editora José Olympio, a que esteve tão ligada a sua própria carreira e lhe editou alguns dos livros mais importantes. É a lição final do moralista, de todos os moralistas: Sic transit…
 


Wilson Martins

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