Felipe Araújo
Os Anos da Razão
da Editoria do Sábado - 26.09.1998
Aos 88 anos, Rachel de Queiroz é
escolhida a patronesse da III Feira do Livro, lança livro de
memórias em parceria com a irmã, mas diz que não gosta de homenagens
e nem mesmo de escrever.
E diz que nem bem tinha onze anos, Rachel de Queiroz foi matriculada
pelo pai no Colégio Imaculada Conceição. Logo de cara, uma certa
irmã Pauline escolheu Geografia para lhe testar os conhecimentos e
perguntou-lhe como deveria fazer para dar uma volta ao mundo. Pra
quê? "A senhora quer ir pelo Estreito de Magalhães ou pelo Canal do
Panamá?", esnobou a pequena e fiel leitora de Júlio Verne.
O espanto que deve ter se abatido sobre a freira francesa,
entretanto, nem de longe se comparou ao assombro que dali a alguns
anos iria desconcertar muita gente no cenário literário nacional.
"É homem", conclui, por exemplo, um atônito Graciliano Ramos
depois de ler O Quinze, lá pelos idos de 1930. Pois bem, era mulher.
E de parcos 19 anos, como teria que engolir o velho Graça. Um
fenômeno ao melhor estilo rimbaudiano.
Do assombro geral veio, então, a glória: entre outras, elogios de
Augusto Frederico Schmidt e Mário de Andrade. No entanto, passado o
alvoroço que causou entre 1930 e 1960, a escritora sofreu um boicote
por parte da melhor crítica devido a um controvertido apoio ao golpe
de 1964 - ou melhor, a seu primo Humberto Castello Branco. Contudo,
primeira mulher a vestir o fardão, foi reconquistando seu prestígio
e em seu último livro (Memorial de Maria Moura), dizem, conseguiu
atingir o melhor de sua forma.
Prestes a lançar um livro de memórias -
Tantos anos, que sai em
breve pela Siciliano - Rachel de Queiroz mais uma vez surpreende e
decide não falar sobre a escritora. Ao lado da irmã, Maria Luíza,
foi reconstituindo apenas as reminiscências que marcaram a infância
e a mocidade das duas. "A romancista Rachel de Queiroz nunca estará
retratada num livro de memórias", afirma.
Em rápida passagem por Fortaleza, onde foi escolhida como patronesse
da III Feira do Livro, Rachel recebeu a reportagem do Sábado num
modesto apartamento na Praia do Futuro. Simpática e vaidosa - "Nunca se tira a foto de uma senhora de mais de 50 anos de perfil,
viu? Não fica bem'', avisou ao fotógrafo -, falou sobre as
homenagens que está recebendo, sobre suas memórias e sobre por que,
pasmem, não gosta de escrever.
Sábado - A senhora estava entre os escritores brasileiros que foram
convidados ao Salão do Livro de Paris...
Rachel - Mas eu não fui a Paris. Fui convidada, mas não fui porque
não gosto mais de fazer essas viagens. Acho cansativo, já viajei
muito. Agora quero ficar quieta, só gosto de ir para o sertão. É a
única viagem que faço de boa vontade. Aquela viagem em que todo
mundo foi a Paris, eu não fui, não pude ir.
Sábado - Certo, mas agora foi escolhida a patronesse da Feira do
Livro...
Rachel - Sou eu, é? Como é que é? O que é que eu sou?
Sábado - A patronesse da Feira do Livro.
Rachel - Ah, eu não sabia dessa, não. O Tasso (Jereissati)
telefonava, o povo telefonava, mas essa história de patronesse não
me disseram, não. Vá lá, tá bom (risos).
Sábado - Essas coisas ainda comovem a senhora?
Rachel - Olha, eu não me sinto nada porque essas coisas têm que ter
um objetivo, então de vez em quando cai em cima de um. Mas não acho
que a gente tenha mérito nisso, é uma questão mais de acaso. Como
adoro o Ceará, nunca me divorciei daqui, o pessoal do Ceará também é
muito ligado a mim, essas coisas. Não é uma coisa de mérito, é uma
coisa de amor. Ninguém ama mais o Ceará do que eu. Saí daqui há mais
de 50 anos e nunca me despeguei.
Sábado - O Memorial de Maria Moura foi festejado por parte dos
críticos como o seu melhor livro. A senhora acha que vem mesmo se
depurando? Escrevendo melhor?
Rachel - Olha, você sabe que escrever é uma arte, quanto mais você
pratica aquela arte você vai apurando. O escritor tem uma espécie de
fórmula a que ele quer chegar, então está sempre se aproximando
daquela fórmula de expressão e de temas, etc.
Sábado - A senhora acha que já atingiu essa fórmula em algum de seus
livros?
Rachel - Não, o escritor nunca se satisfaz.
Sábado - Mas se tivesse que escolher um, por qual livro a senhora
gostaria de ser lembrada?
Rachel - Dos meus? Por nenhum. Não gosto de nenhum. Eu nunca releio
os meus livros porque fico muito encabulada, não gosto. Acho que não
escolheria nenhum.
Sábado - Por que a senhora fica encabulada com seus livros?
Rachel - Porque você sabe que a gente tem um ideal de perfeição e
que a gente não chega a ele, não chega a ele e fica danada da vida
porque não chegou àquilo que você queria fazer.
Sábado - Pelo que eu estou percebendo, a senhora é uma pessoa
modesta.
Rachel - Mas é isso mesmo, a pessoa que faz uma idéia muito grande
de si mesma, desconfie dela. É bom ficar sempre com um pé atrás.
Sábado - A senhora sempre teve certeza de que queria ser escritora?
Rachel - Não foi uma vocação propriamente. Lá em casa, mamãe lia
muito, papai lia muito, minhas tias, meus tios. Mamãe tinha uma
biblioteca muito boa, de forma que ler foi uma coisa normal. Eu
aprendi a ler sozinha com cinco anos de idade. Comecei a ler e
desembestei toda a vida, lendo muito, lendo à noite, toda hora.
Mamãe às vezes chegava de madrugada e vinha apagar a luz e me mandar
dormir. Eu lia tudo que pegava, mamãe tinha uma biblioteca muito
boa. Ela ia me dando os livros para ler, mas o que eu pegasse eu
lia. Ainda hoje sou assim. Mas comecei a escrever fazendo uma carta
sobre a eleição da rainha dos estudantes.
Sábado - Isso quando?
Rachel - Devia ter o que, uns dezoito pra dezenove anos. Eu escrevi
uma carta brincando, assinada Rita de Queluz, e mandei para o jornal
O Ceará, que promovia o concurso. A carta fez sucesso e o diretor do
jornal ficou querendo saber quem eu era. Ele achava que eu era um
homem, que quem tinha escrito aquilo era um homem. Jáder de
Carvalho, que era meu amigo, já me conhecia, disse `não, isso é a
Rachelzinha, filha do Daniel. Isso é coisa da Rachelzinha'. O
diretor do jornal me mandou chamar e me convidou para colaborar no
jornal. E passei a colaborar semanalmente, coisa que faço até os
dias de hoje.
Sábado - Foi assim que a senhora começou a escrever?
Rachel - Quase que por um acaso. Se não fosse o convite do Ibiapina,
teria provavelmente saído porque a gente tem mais ou menos uma
vocação. Mas saiu por esse convite, e comecei a trabalhar em jornal,
o que foi bom porque o jornal é uma disciplina. O Quinze, eu só pude
escrever depois de estar escrevendo para jornal por mais de dois
anos. Até hoje, o meu principal ofício é o de jornal, há sessenta e
tantos anos que não passo uma semana sem escrever um artigo.
Sábado - A senhora se considera uma jornalista?
Rachel - É o que eu sou, é a minha profissão. Tenho carteirinha de
jornalista.
Sábado - De que maneira jornalismo, especialmente a crônica, e
literatura foram se influenciando na carreira da senhora?
Rachel - Eu sempre fiz as duas coisas, então acho que uma influi
sobre a outra. O romance é um gênero mais pesado, mais sério, você
elabora mais. A crônica você escreve e tem que mandar correndo para
o jornal. Já o romance você elabora, reescreve, corta, é um texto
muito trabalhado. É difícil dizer até onde vai, mas a verdade é que
a prática do jornal te dá muito mais familiaridade com a linguagem
impressa. O jornal ajuda muito: moderação, laconismo, tudo isso você
aprende com o jornal.
Sábado - A senhora já escreveu crônica, romance e até teatro. Qual
desses gêneros prefere?
Rachel - Eu não gosto de escrever. Escrevo porque esse é o meu
ganha-pão.
Sábado - Se a senhora pudesse, então, ganhar a vida fazendo uma
coisa de que realmente gostasse, o que faria?
Rachel - É, escrever é a única profissão que tenho. Não sei. Eu já
pensei em ser atriz, mas nunca deu. Cheguei a escrever alguns textos
para teatro, mas prudentemente fiquei nesses. Acho que não tenho
vocação para nada mesmo, não. Quis ter uma porção de filhos e uma
porção de netos, mas nunca tive. Tenho que me contentar com os
filhos da Maria Luiza (risos).
Sábado - Por falar em Maria Luiza, a senhora está lançando um livro
de memórias junto com ela, não é isso? Como surgiu a idéia desse
livro?
Rachel - Eu escrevi esse livro numa parceria com minha irmã Maria
Luíza. No prefácio, ela começa assim: ``Sangue, suor e lágrimas foi
o que me custou obrigar Rachel a escrever este livro'' (risos). De
modo que resisto muito, sou muito preguiçosa para escrever, mas nós
duas juntas, eu ditando e ela escrevendo, fizemos o livro. Vai sair
agora no final do mês.
Sábado - Então foi uma idéia da sua irmã?
Rachel - Bom, foi idéia dela, claro. Eu não tenho idéias para
escrever livros. Em toda a minha longa vida literária, tenho poucos
livros. Comecei em 30. Quantos anos são para 98?
Sábado - 68 anos.
Rachel - Pois é, e eu só tenho cinco, seis livros.
Sábado - E como é que mesmo esses livros foram surgindo, uma vez que
a senhora é uma pessoa que não tem idéias literárias nesse sentido?
Rachel - De repente cai um assunto na tua cabeça. Em geral, custo
muito a dormir, sofro muito de insônia. Então quando estou deitada
de noite, no escuro, começo a pensar coisas. Às vezes tenho que
acender a luz e escrever algumas notas para não perder. Quando
aquela coisa está mais ou menos estruturada na minha cabeça, o
enredo da história, então começo a escrever sistematicamente, do
primeiro capítulo até o final. Foi assim, por exemplo, com a Maria
Moura. Eu levei dois anos escrevendo a Maria Moura.
Sábado - Esse livro de memórias é uma revisão de sua trajetória?
Rachel - Não. Minha carreira literária não entra, minha vida pessoal
não entra, são mais memórias de infância, mocidade, memórias comuns,
quando a gente vivia aqui no Pici, a fazenda. São as coisas que a
gente amava. Não é propriamente memórias, não conta episódio quase
nenhum da nossa vida.
Sábado - Quer dizer que não é a Rachel de Queiroz escritora que está
retratada nesse livro?
Rachel - Não, nem estará nunca. Porque pra que é que a gente escreve
um romance senão para botar as coisas que você não quer botar no
papel pessoalmente?
Sábado - Então, que Rachel de Queiroz está retratada nesse livro de
memórias?
Rachel - Bom, são memórias, mas não são memórias temáticas, digamos
assim. São recordações de infância entre mim e Maria Luiza. Por
exemplo, eu digo `olha, naquela vez que nós fomos a tal parte' e ela
diz `não, não foi pra lá, segundo eu me lembro, foi pra outro
canto'. É uma espécie de diálogo entre nós duas.
Sábado - De que momentos e de que episódios a senhora lembra com
mais força nessas memórias?
Rachel - Não há nada muito especial, não. É só a rotina da vida, as
coisas, as pessoas. O livro não ficou pesado, não ficou difícil de
ler, mas eu não conto nada de excepcional, não.
Sábado - Quem fez o que no livro?
Rachel - Nós duas escrevemos juntas. Em geral, ela batendo,
escrevendo, tomando nota. Aqui no sertão, nós escrevemos uma boa
parte, ela veio passar um período aí no sertão comigo. Lá no Rio
mesmo ela ia lá em casa e a gente escrevia, discutia, brigava.
Acabamos fazendo. Levamos quase quatro anos fazendo. Sempre que
estou prestes a lançar um livro, fico com um pé atrás. De forma que
enquanto o livro não sai e a crítica não aprova, fico meio
desconfiada (risos).
Sábado - Sério? A senhora sempre espera para ver o que a crítica vai
dizer sobre seus livros?
Rachel - Não, porque o livro já saiu e não tem mais o que fazer.
Agora, em geral, quando o sujeito mete o pau, acho que ele tem toda
razão, fico convencida daquilo. A Maria Luiza é que diz, `não seja
idiota, deixe de ter espírito fraco, o sujeito mete o pau e você
fica achando que ele tem toda razão'.
Sábado - Mas quando alguém elogia?
Rachel - Aí, não. Aí tenho senso crítico também e não vou tanto
pelos elogios. Não tenho muitas ilusões sobre o que faço.
Sábado - Esse ano completam-se 83 anos da seca que inspirou seu
primeiro romance. Como a senhora observa hoje a questão da falta d'água
no sertão cearense?
Rachel - Eu tinha quatro anos quando a seca do quinze aconteceu. A
situação hoje ainda é muito dramática, mas é muito mais tolerável do
que foi. As secas de 1915 e 1919 foram secas em que o povo morria
literalmente de fome.
Sábado - O que é que está faltando para que se resolva esse
problema?
Rachel - Falta é que Deus mande uns invernos direitinho. Tá com ele,
se ele não mandar chuva, que é que a gente faz?
Sábado - A senhora não acha que a falta de decisão política não é um
fator determinante para que esse problema continue?
Rachel - Não, eu acho que o governo tem pouco a fazer porque os
recursos do Estado são limitados. E principalmente no período de
seca ficam mais limitados porque o Estado vive de impostos e nesse
período os impostos ficam menores.
Sábado - Como é que a senhora observa o processo eleitoral que o
Brasil está vivendo hoje?
Rachel - Não sou uma estudiosa de política. Mas acho que o Brasil
tem a política que merece. Ele está muito inseguro, muito pouco
adiantado em política. Mas no que diz respeito às eleições, gosto do
Fernado Henrique. Acho que dos governos que tenho acompanhado desde
menina, este é um dos mais toleráveis em termos ideológicos,
políticos. O Fernando é um homem que eu gosto, conheço pessoalmente,
que faz o que ele pode.
Sábado - Concluído esse livro de memórias, a senhora já está
envolvida com outro projeto?
Rachel - Por hora não, mas é possível que a gente ainda faça alguma
coisa por aí. Mas eu já estou muito velha, já é hora de descansar.
Leia Rachel de Queiroz
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