Fernando Pessoa
O MARINHEIRO
DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO
A Carlos Franco
Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto
vê-se que é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma essa,
um caixão com uma donzela, de branco. Quatro tochas aos cantos.
À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma
única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê,
entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar.
Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está
sentada em frente à janela, de costas contra a tocha de cima da
direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela.
É noite e há como que um resto vago de luar.
PRIMEIRA VELADORA - Ainda não deu hora nenhuma.
SEGUNDA - Não se pode ouvir. Não há relógio
aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia.
TERCEIRA - Não: o horizonte é negro.
PRIMEIRA - Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos
contando o que fomos? É belo e é sempre falso. ..
SEGUNDA - Não, não falemos nisso. De resto, fomos
nós alguma cousa?
PRIMEIRA - Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é
belo falar do passado... As horas têm caído e nós temos
guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela
vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes
empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas
sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer
cousa?...
(uma pausa)
A MESMA - Falar do passado - isso deve ser belo, porque é
inútil e faz tanta pena...
SEGUNDA - Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos
tido.
TERCEIRA - Não. Talvez o tivéssemos tido...
PRIMEIRA - Não dizeis senão palavras. E tão
triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos! ...
Se passeássemos?...
TERCEIRA - Onde?
PRIMEIRA - Aqui, de um lado para o outro. As vezes isso vai buscar
sonhos.
TERCEIRA - De quê?
PRIMEIRA - Não sei . Porque o havia eu de saber?
(uma pausa)
SEGUNDA - Todo este país é muito triste... Aquele onde
eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à
minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha
ao longe... Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me
de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a
ser aquilo que talvez eu nunca fosse...
PRIMEIRA - Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que
é a única de onde o mar se vê, vê-se tão
pouco!... O mar de outras terras é belo?
SEGUNDA - Só o mar das outras terras é que é
belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele
que não veremos nunca...
(uma pausa)
PRIMEIRA - Não dizíamos nós que íamos
contar o nosso passado?
SEGUNDA - Não, não dizíamos.
TERCEIRA - Por que não haverá relógio neste
quarto?
SEGUNDA - Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo
é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria...
Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos
a hora que é?
PRIMEIRA - Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo
Dezembros na alma... Estou procurando não olhar para a janela..
Sei que de lá se vêem, ao longe, montes... Eu fui feliz para
além de montes, outrora... Eu era pequenina. Colhia flores todo
o dia e antes de adormecer pedia que não mas tirassem... Não
sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de chorar...
Foi longe daqui que isto pôde ser... Quando virá o dia?...
TERCEIRA - Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira... sempre,
sempre, sempre...
(uma pausa)
SEGUNDA - Contemos contos umas às outras... Eu não
sei contos nenhuns, mas isso não faz mal... Só viver é
que faz mal... Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes...
Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto
interrompe um sonho... Neste momento eu não tinha sonho nenhum,
mas é-me suave pensar que o podia estar tendo... Mas o passado -
por que não falamos nós dele?
PRIMEIRA - Decidimos não o fazer... Breve raiará o
dia e arrepender-nos-emos... Com a luz os sonhos adormecem... O passado
não é senão um sonho... De resto, nem sei o que não
é sonho.
Se olho para o presente com muita atenção, parece-me
que ele já passou... O que é qualquer cousa? Como é
que ela passa? Como é por dentro o modo como ela passa?... Ah, falemos,
minhas irmãs falemos alto, falemos todas juntas... O silêncio
começa a tomar corpo, começa a ser cousa... Sinto-o envolver-me
como uma névoa... Ah, falai, falai!...
SEGUNDA - Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo
logo... Parece-me que entre nós se aumentaram abismos... Tenho que
cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos... Este
ar quente é frio por dentro, naquela parte que toca na alma... Eu
devia agora sentir mãos impossíveis passarem-me pelo cabelos
- é o gesto com que falam das sereias... (Cruza as mãos sobre
os joelhos. Pausa). Ainda há pouco, quando eu não pensava
em nada, estava pensando no meu passado.
PRIMEIRA - Eu também devia ter estado a pensar no meu...
TERCEIRA - Eu já não sabia em que pensava... No passado
dos outros talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu...
Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho... Por que é
que correria, e por que é que não correria mais longe, ou
mais perto?... Há alguma razão para qualquer cousa ser o
que é? Há para isso qualquer razão verdadeira e real
como as minhas mãos?...
SEGUNDA - As mãos não são verdadeiras nem reais...
São mistérios que habitam na nossa vida... às vezes,
quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus... Não há
vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se... Para onde
se inclinam elas?... Que pena se alguém pudesse responder!... Sinto-me
desejosa de ouvir músicas bárbaras que devem agora estar
tocando em palácios de outros continentes... É sempre longe
na minha alma... Talvez porque, quando criança, corri atrás
das ondas à beira-mar. Levei a vida pela mão entre rochedos,
maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos sobre
o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo para que nunca
mais ninguém olhasse...
TERCEIRA - As vossas frases lembram-me a minha alma...
SEGUNDA - É talvez por não serem verdadeiras... Mal
sei que as digo... Repito-as seguindo uma voz que não ouço
que mas está segredando... Mas eu devo ter vivido realmente à
beira-mar... Sempre que uma cousa ondeia, eu amo-a... Há ondas na
minha alma... Quando ando embalo-me... Agora eu gostaria de andar... Não
o faço porque não vale nunca a pena fazer nada, sobretudo
o que se quer fazer... Dos montes é que eu tenho medo... É
impossível que eles sejam tão parados e grandes... Devem
ter um segredo de pedra que se recusam a saber que têm... Se desta
janela, debruçando-me, eu pudesse deixar de ver montes, debruçar-se-ia
um momento da minha alma alguém em quem eu me sentisse feliz...
PRIMEIRA - Por mim, amo os montes... Do lado de cá de todos
os montes é que a vida é sempre feia... Do lado de lá,
onde mora minha mãe, costumávamos sentarmo-nos à sombra
dos tamarindos e falar de ir ver outras terras... Tudo ali era longo e
feliz como o canto de duas aves, uma de cada lado do caminho... A floresta
não tinha outras clareiras senão os nossos pensamentos...
E os nossos sonhos eram de que as árvores projectassem no chão
outra calma que não as suas sombras... Foi decerto assim que ali
vivemos, eu e não sei se mais alguém... Dizei-me que isto
foi verdade para que eu não tenha de chorar...
SEGUNDA - Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla da
minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas... Eu era
pequena e bárbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente parece-me
que durmo... Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ninguém...
O mar era grande de mais para fazer pensar nelas... Na vida aquece ser
pequeno... Éreis feliz, minha irmã?
PRIMEIRA - Começo neste momento a tê-lo sido outrora...
De resto, tudo aquilo se passou na sombra... As árvores viveram
-no mais do que eu... Nunca chegou nem eu mal esperava... E vós
irmã, por que não falais?
TERCEIRA - Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito
o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão
logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas
e fatais... Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras
parecem-me gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão,
não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um
amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si
próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta
escura, através do mistério de falar... E, afinal, quem sabe
se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?...
PRIMEIRA - Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em
nós!... Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por
isso... Falai, portanto, sem reparardes que existis... Não nos íeis
dizer quem éreis?
TERCEIRA - O que eu era outrora já não se lembra de
quem sou... Pobre da feliz que eu fui !... Eu vivi entre as sombras dos
ramos, e tudo na minha alma é folhas que estremecem. Quando ando
ao sol a minha sombra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado
de fontes, onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranquilas
dos meus dedos... Às vezes, à beira dos lagos, debruçava-me
e fitava-me... Quando eu sorria, os meus dentes eram misteriosos na água...
Tinham um sorriso só deles, independente do meu... Era sempre sem
razão que eu sorria... Falai-me da morte, do fim de tudo, para que
eu sinta uma razão para recordar...
PRIMEIRA - Não falemos de nada, de nada... Está mais
frio, mas por que é que está mais frio? Não há
razão para estar mais frio. Não é bem mais frio que
está... Para que é que havemos de falar?... É melhor
cantar, não sei porquê... O canto, quando a gente canta de
noite, é uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no quarto
e o aquece a consolar-nos... Eu podia cantar-vos uma canção
que cantávamos em casa de meu passado. Por que é que não
quereis que vo-la cante?
TERCEIRA - Não vale a pena, minha irmã... quando alguém
canta, eu não posso estar comigo. Tenho que não poder recordar-me.
E depois todo o meu passado torna-se outro e eu choro uma vida morta que
trago comigo e que não vivi nunca. É sempre tarde de mais
para cantar, assim como é sempre tarde de mais para não cantar...
(uma pausa)
PRIMEIRA - Breve será dia... Guardemos silêncio... A
vida assim o quer. Ao pé da minha casa natal havia um lago. Eu ia
lá e assentava-me à beira dele, sobre um tronco de árvore
que caíra quase dentro de água... Sentava-me na ponta e molhava
na água os pés, esticando para baixo os dedos. Depois olhava
excessivamente para as pontas dos pés, mas não era para os
ver. Não sei porquê, mas parece-me deste lago que ele nunca
existiu... Lembrar-me dele é como não me poder lembrar de
nada... Quem sabe por que é que eu digo isto e se fui eu que vivi
o que recordo?...
SEGUNDA - À beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não
podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre
ter sido no passado... Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece
que há mil vozes mínimas a falar. A espuma só parece
ser fresca a quem a julga uma... Tudo é muito e nós não
sabemos nada... Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar?
PRIMEIRA - Podeis contá-lo, minha irmã; mas nada em
nós tem necessidade de que no-lo conteis... Se é belo, tenho
já pena de vir a tê-lo ouvido. E se não é belo,
esperai..., contai-o só depois de o alterardes...
SEGUNDA - Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso,
porque sem dúvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido
assim... Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo,
e que eu tinha esquecido que tinha pai e mãe e que houvera em mim
infância e outros dias - nesse dia vi ao longe, como uma coisa que
eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Depois ela cessou...
Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho... Não
sei onde ele teve princípio.. . E nunca tornei a ver outra vela...
Nenhuma das velas dos navios que saem aqui de um porto se parece com aquela,
mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar...
PRIMEIRA - Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele
que vistes...
SEGUNDA - Não, minha irmã; esse que vedes busca sem
dúvida um porto qualquer... Não podia ser que aquele que
eu vi buscasse qualquer porto...
PRIMEIRA - Por que é que me respondestes?... Pode ser. .
Eu não vi navio nenhum pela janela... Desejava ver um e falei-vos
dele para não ter pena... Contai-nos agora o que foi que sonhastes
à beira-mar...
SEGUNDA - Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa
ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves
vagas passavam por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde
que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não
tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava
dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse
tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra
espécie de país com outras espécies de paisagens,
e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem
das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria,
e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes
palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e
quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando
nas estrelas.
PRIMEIRA - Não ter havido uma árvore que mosqueasse
sobre as minhas mãos estendidas a sombra de um sonho como esse!...
TERCEIRA - Deixai-a falar... Não a interrompais... Ela conhece
palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar...
Dizei, minha irmã, dizei... Meu coração dói-me
de não ter sido vós quando sonháveis à beira-mar...
SEGUNDA - Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num
sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma
pedra de sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia
tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares
de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas.
Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía
do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no
murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul
onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta...
(uma pausa)
PRIMEIRA - Minha irmã, por que é que vos calais?
SEGUNDA - Não se deve falar demasiado... A vida espreita-nos
sempre... Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso
não o saber... Quando falo de mais começo a separar-me de
mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me compadeça de mim própria
e sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma
vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como
a um filho... Vede: o horizonte empalideceu... O dia não pode já
tardar... Será preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho?
PRIMEIRA - Contai sempre, minha irmã, contai sempre... Não
pareis de contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca raia para
quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não torçais
as mãos. Isso faz um ruído como o de uma serpente furtiva...
Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro
que não tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca
música na alma...
SEGUNDA -- Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo
contar. À medida que o vou contando, é a mim também
que o conto... São três a escutar... (De repente, olhando
para o caixão, e estremecendo). Três não... Não
sei... Não sei quantas...
TERCEIRA - Não faleis assim... Contai depressa, contai outra
vez... Não faleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos
quantas coisas realmente vivem e vêem e escutam... Voltai ao vosso
sonho... O marinheiro. O que sonhava o marinheiro?
SEGUNDA (mais baixo, numa voz muito lenta) - Ao princípio
ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e
as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma -
uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais
de onde ele criou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que
as percorria e que olhava sobre elas das janelas... Passou a conhecer certa
gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas
e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai
vendo... Depois viajava, recordando, através do país que
criara... E assim foi construindo o seu passado... Breve tinha uma outra
vida anterior... Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde
nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara...
Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos
da sua idade viril... Tudo era diferente de como ele o tivera - nem o país,
nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam
sido... Exigis que eu continue?... Causa-me tanta pena falar disto!...
Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros
sonhos...
TERCEIRA - Continuai, ainda que não saibais porquê...
Quanto mais vos ouço, mais me não pertenço...
PRIMEIRA - Será bom realmente que continueis? Deve qualquer
história ter fim? Em todo o caso falai... Importa tão pouco
o que dizemos ou não dizemos... Velamos as horas que passam... O
nosso mister é inútil como a Vida...
SEGUNDA - Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto,
o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria
verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ela não
existia para ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria
de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara...
Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não
podia ser que outra vida tivesse existido... Se ele nem de uma rua, nem
de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vida que lhe
parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer podia sonhar
outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento,
podem crer... Ó minhas irmãs, minhas irmãs... Há
qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse...
Qualquer coisa que explicaria isto tudo... A minha alma esfria-me... Mal
sei se tenho estado a falar... Falai-me, gritai-me, para que eu acorde,
para que eu saiba que estou aqui ante vós e que há coisas
que são apenas sonhos...
PRIMEIRA (numa voz muito baixa) - Não sei que vos diga...
Não ouso olhar para as cousas... Esse sonho como continua?...
SEGUNDA - Não sei como era o resto.... Mal sei como era o
resto... Por que haverá mais?...
PRIMEIRA - E o que aconteceu depois?
SEGUNDA - Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?...
Veio um dia um barco... Veio um dia um barco... - Sim sim... só
podia ter sido assim... - Veio um dia um barco, e passou por essa ilha,
e não estava lá o marinheiro
TERCEIRA - Talvez tivesse regressado à pátria... Mas
a qual?
PRIMEIRA - Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia
alguém?
SEGUNDA - Por que é que mo perguntais? Há resposta
para alguma coisa?
(uma pausa)
TERCEIRA - Será absolutamente necessário, mesmo dentro
do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?
SEGUNDA - Não, minha irmã; nada é absolutamente
necessário.
PRIMEIRA - Ao menos, como acabou o sonho?
SEGUNDA - Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba...
Sei eu ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho
sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a
que eu chamo a minha vida?.. Não me faleis mais... Principio a estar
certa de qualquer coisa, que não sei o que é... Avançam
para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror
que desconheço... Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que
vos contei?... Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu
sonho... Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite...
Não estejais silenciosas... Dizei-me ao menos que a noite vai passando,
embora eu o saiba... Vede, começa a ir ser dia.. Vede: vai haver
o dia real... Paremos... Não pensemos mais... Não tentemos
seguir nesta aventura interior... Quem sabe o que está no fim dela?....
Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite... Não falemos
mais disto, nem a nós próprios... É humano e conveniente
que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.
TERCEIRA - Foi-me tão belo escutar-vos... Não digais
que não... Bem sei que não valeu a pena... É por isso
que o achei belo... Não foi por isso, mas deixai que eu o diga...
De resto, a música da vossa voz, que escutei ainda mais que as vossas
palavras, deixa-me, talvez só por ser música, descontente...
SEGUNDA - Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens
que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no,
porque mudam com tudo... De eterno e belo há apenas o sonho... Por
que estamos nós falando ainda?...
PRIMEIRA - Não sei... (olhando para o caixão, em voz
mais baixa) - Por que é que se morre?
SEGUNDA - Talvez por não se sonhar bastante...
PRIMEIRA - É possível... Não valeria então
a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?...
SEGUNDA - Não, minha irmã, nada vale a pena...
TERCEIRA - Minhas irmãs, é já dia... Vede,
a linha dos montes maravilha-se... Por que não choramos nós?...
Aquela que finge estar ali era bela, e nova como nós, e sonhava
também... Estou certa que o sonho dela era o mais belo de todos...
Ela de que sonharia?...
PRIMEIRA - Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já
sabe para que servem os sonhos...
(uma pausa)
SEGUNDA - Talvez nada disto seja verdade... Todo este silêncio,
e esta morta, e este dia que começa não são talvez
senão um sonho... Olhai bem para tudo isto... Parece-vos que pertence
à vida?...
PRIMEIRA - Não sei. Não sei como se é da vida...
Ah, como vós estais parada! E os vossos olhos tão tristes,
parece que o estão inutilmente...
SEGUNDA - Não vale a pena estar triste de outra maneira...
Não desejais que nos calemos? É tão estranho estar
a viver... Tudo o que acontece é inacreditável, tanto na
ilha do marinheiro como neste mundo... Vede, o céu é já
verde... O horizonte sorri ouro... Sinto que me ardem os olhos, de eu ter
pensado em chorar...
PRIMEIRA - Chorastes, com efeito, minha irmã.
SEGUNDA - Talvez... Não importa... Que frio é isto?...
Ah, é agora... é agora!... Dizei-me isto... Dizei-me uma
coisa ainda... Por que não será a única coisa real
nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho
dele?...
PRIMEIRA - Não faleis mais, não faleis mais... Isso
é tão estranho que deve ser verdade. Não continueis...
O que íeis dizer não sei o que é, mas deve ser de
mais para a alma o poder ouvir... Tenho medo do que não chegastes
a dizer... Vede, vede, é dia já... Vede o dia... Fazei tudo
por reparardes só no dia, no dia real, ali fora... Vede-o, vede-o...
Ele consola.. Não penseis, não olheis para o que pensais...
Vede-o a vir, o dia... Ele brilha como ouro numa terra de prata. As leves
nuvens arredondam-se à medida que se coloram.. Se nada existisse,
minhas irmãs?... Se tudo fosse, qualquer modo, absolutamente coisa
nenhuma?... Porque olhastes assim?...
(Não lhe respondem. E ninguém olhara de nenhuma maneira.)
A MESMA - Que foi que dissestes e que me apavorou?... Senti-o tanto
que mal vi o que era... Dizei-me o que foi, para que eu, ouvindo-o segunda
vez, já não tenha tanto medo como dantes... Não, não...
Não digais nada... Não vos pergunto isto para que me respondais,
mas para falar apenas, para me não deixar pensar... Tenho medo de
me poder lembrar do que foi... Mas foi qualquer coisa de grande e pavoroso
como o haver Deus... Devíamos já ter acabado de falar...
Há tempo já que a nossa conversa perdeu o sentido... O que
é entre nós que nos faz falar prolonga-se demasiadamente...
Há mais presenças aqui do que as nossas almas.. O dia devia
ter já raiado.. Deviam já ter acordado... Tarda qualquer
coisa... Tarda tudo... O que é que se está dando nas coisas
de acordo com o nosso horror?... Ah, não me abandoneis... Falai
comigo, falai comigo... Falai ao mesmo tempo do que eu para não
deixardes sozinha a minha voz... Tenho menos medo à minha voz do
que à ideia da minha voz, dentro de mim, se for reparar que estou
falando...
TERCEIRA - Que voz é essa com que falais?... É de
outra... Vem de uma espécie de longe...
PRIMEIRA - Não sei... Não me lembreis isso... Eu devia
estar falando com a voz aguda e tremida do medo... Mas já não
sei como é que se fala... Entre mim e a minha voz abriu-se um abismo...
Tudo isto, toda esta conversa e esta noite, e este medo - tudo isto devia
ter acabado, devia ter acabado de repente, depois do horror que nos dissestes...
Começo a sentir que o esqueço, a isso que dissestes, e que
me fez pensar que eu devia gritar de uma maneira nova para exprimir um
horror de aqueles...
TERCEIRA (para a SEGUNDA) - Minha irmã, não nos devíeis
ter contado essa história. Agora estranho-me viva com mais horror.
Contáveis e eu tanto me distraía que ouvia o sentido das
vossas palavras e o seu som separadamente. E parecia-me que vós,
e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes
diferentes, como três criaturas que falam e andam.
SEGUNDA - São realmente três entes diferentes, com
vida própria e real. Deus talvez saiba porquê... Ah, mas por
que é que falamos? Quem é que nos faz continuar falando?
Por que falo eu sem querer falar? Por que é que já não
reparamos que é dia?...
PRIMEIRA - Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me
a gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha
vontade para a minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter medo
de que alguém possa bater àquela porta. Por que não
bate alguém à porta? Seria impossível e eu tenho necessidade
de ter medo disso, de saber de que é que tenho medo... Que estranha
que me sinto!... Parece-me já não ter a minha voz... Parte
de mim adormeceu e ficou a ver... O meu pavor cresceu mas eu já
não sei senti-lo... Já não sei em que parte da alma
é que se sente... Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha
de chumbo... Para que foi que nos contastes a vossa história?
SEGUNDA - Já não me lembro... Já mal me lembro
que a contei... Parece ter sido já há tanto tempo!... Que
sono, que sono absorve o meu modo de olhar para as coisas!... O que é
que nós queremos fazer? o que é que nós temos ideia
de fazer? - já não sei se é falar ou não falar...
PRIMEIRA - Não falemos mais. Por mim, cansa-me o esforço
que fazeis para falar... Dói-me o intervalo que há entre
o que pensais e o que dizeis... A minha consciência bóia à
tona da sonolência apavorada dos meus sentidos pela minha pele...
Não sei o que é isto, mas é o que sinto... Preciso
de dizer frases confusas um pouco longas, que custem a dizer... Não
sentis tudo isto como uma aranha enorme que nos tece de alma a alma uma
teia negra que nos prende?
SEGUNDA - Não sinto nada... Sinto as minhas sensações
como uma coisa que se sente... Quem é que eu estou sendo?... Quem
é que está falando com a minha voz?... Ah, escutai,..
PRIMEIRA e TERCEIRA - Quem foi?
SEGUNDA - Nada. Não ouvi nada... Quis fingir que ouvia para
que vós supusésseis que ouvíeis e eu pudesse crer
que havia alguma coisa a ouvir... Oh, que horror, que horror íntimo
nos desata a voz da alma, e as sensações dos pensamentos,
e nos faz falar e sentir e pensar quando tudo em nós pede silêncio
e o dia e a inconsciência da vida... Quem é a quinta pessoa
neste quarto que estende o braço e nos interrompe sempre que vamos
a sentir?
PRIMEIRA - Para quê tentar apavorar-me? Não cabe mais
terror dentro de mim... Peso excessivamente ao colo de me sentir. Afundei-me
toda no lodo morno do que suponho que sinto. Entra-me por todos os sentidos
qualquer coisa que nos pega e nos vela. Pesam as pálpebras a todas
as minhas sensações. Prende-se a língua a todos os
meus sentimentos. Um sono fundo cola umas às outras as ideias de
todos as meus gestos. Por que foi que olhastes assim?...
TERCEIRA (numa voz muito lenta e apagada) - Ah, é agora,
é agora... Sim, acordou alguém... Há gente que acorda...
Quando entrar alguém tudo isto acabará... Até lá
façamos crer que todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo...
É dia já. Vai acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irmã,
que só vós sois feliz, porque acreditais no sonho...
SEGUNDA - Por que é que mo perguntais? Porque eu o disse?
Não, não acredito ..
Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As três
veladoras quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras.
Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.
Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa.
|