Fernando Pessoa
Se eu me sentir sono
Se eu, ainda que ninguém
NA FLORESTA DO ALHEAMENTO
Se eu me sentir sono, (20-4-1934)
Se eu me sentir sono,
E quiser dormir,
Naquele abandono
Que é o não sentir,
Quero que aconteça
Quando eu estiver
Pousando a cabeça,
Não num chão qualquer,
Mas onde sob ramos
Uma árvore faz
A sombra em que bebamos,
A sombra da paz.
Se eu, ainda que ninguém, (16-9-1933)
Se eu, ainda que ninguém,
Pudesse ter sobre a face
Aquele clarão fugace
Que aquelas árvores têm,
Teria aquela alegria
Que as coisas têm de fora,
Porque a alegria é da hora;
Vai com o sol quando esfria.
Qualquer coisa me valera
Melhor que a vida que tenho -
Ter esta vida de estranho
Que só do sol me viera!
NA FLORESTA DO ALHEAMENTO
Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído
de eu viver diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de
longe. Peso-me, não sei porquê...
Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre
o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar.
Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente
a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas
interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que
sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre
o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho
morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a
alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.
Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora
é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão
quieta... Para que há-de um dia raiar?... Custa-me o saber que ele
raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer
aparecer.
Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Bóio
no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge,
e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este...
Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida, essa
de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada
as duas realidades, como dois fumos que se misturam.
Que nítida de outra e de ela essa trémula paisagem transparente!
...
E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta
alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem
sei querê-lo saber...
A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente
dele, vejo essa paisagem..., e a essa paisagem conheço-a há
muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro,
outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos
de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios
e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar que o
saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver...
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento
lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida
e escura da alcova em que sou actual, destes vagos móveis e reposteiros
e do seu torpor de nocturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda
só ela a paisagem daquele outro mundo...
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma
no horizonte dessa terra diversa... E há momentos em que o chão
que ali pisamos é esta alcova visível...
Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um grande cansaço
é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia passiva
é a vida falsa que me estreita...
Ó felicidade baça!... O eterno estar no bifurcar dos
caminhos!... Eu sonho e por detrás da minha atenção
sonha comigo alguém. E talvez eu não seja senão um
sonho desse Alguém que não existe...
Lá fora a antemanhã tão longínqua! A floresta
tão aqui ante outros olhos meus!
E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao
tê-la que tenho saudades dela, é ao percorrê-la que
a choro e a ela aspiro.
As árvores! As flores! O esconder-se copado dos caminhos!...
Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros
e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos
um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos
as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual
e o querer realizar em carne a ilusão do amor...
No nosso jardim havia flores de todas as belezas... - rosas de contornos
enrolados, lírios de um branco amarelecendo-se, papoilas que seriam
ocultas se o seu rubro lhes não espreitasse presença, violetas
pouco na margem tufada dos canteiros, miosótis mínimos, camélias
estéreis de perfume... E, pasmados por cima de ervas altas, olhos,
os girassóis isolados fitavam-nos grandemente.
Nós roçávamos a alma toda vista pelo fresco visível
dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras, a intuição
esguia de outras terras... E subia-nos o choro à lembrança,
porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos...
Carvalhos cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os
nossos pés nos tentáculos mortos das suas raízes...
Plátanos estacavam... E ao longe, entre árvore e árvore
de perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das
uvas...
O nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós
tínhamos para ele um sorriso igual e alheio, combinado nas almas,
sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença
apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro
braço que o sentia.
A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros.
Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos aparecido às
nossas almas depois de uma viagem através de sonhos...
Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos
na atenção. Fora daquelas árvores próximas,
daquelas latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte
haveria alguma coisa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá
às coisas que existem?...
Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de
sonho marcavam horas irreais... Nada vale a pena, ó meu amor longínquo,
senão o saber como é suave saber que nada vale a pena...
O movimento parado das árvores: o sossego inquieto das fontes;
o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o
entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos
de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo
à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas,
compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se
nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria
recordada - tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.
Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço
para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora
do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade
do espaço... Que horas, ó companheira inútil do meu
tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!...
Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos
interiores de paisagem externa... E nós não nos perguntávamos
para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não
era para nada.
Nós sabíamos ali, por uma intuição que
por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos
dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas
são hálitos de formas, e para além dessa não
havia nada. E era por causa da contradição de saber isto
que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos,
e o nosso senti-la ela estranho como um perfil da cidade mourisca contra
um céu de crepúsculo outonal...
Orlas de mares desconhecidos tocavam no horizonte de ouvirmos, praias
que nunca poderíamos ver, e era-nos a felicidade escutar, até
vê-lo em nós, esse mar onde sem dúvida singravam caravelas
com outros fins em percorrê-lo que não os fins úteis
e comandados da Terra.
Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar
estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins,
o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós do
que a consciência de o ouvirmos.
E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo
monótono e esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada
uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados
dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças,
de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios.
Julgávamo-nos imortais...
Ali vivemos horas cheias de um outro sentimo-las, horas de uma imperfeição
vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza
rectângula da vida. Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura
gasta, horas caídas nesse mundo de um outro mundo mais cheio do
orgulho de ter mais desmanteladas angústias...
E doía-nos gozar aquilo, doía-nos... Porque, apesar do
que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos
deste mundo, toda ela era húmida da pompa de um vago tédio,
triste e enorme e perverso como a decadência de um império
ignoto...
Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de
luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem
um ao outro a não quererem ter vida.
O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa
atenção sonolenta ao mistério de tudo isto é
mole como uma cauda de vestido arrastado num cerimonial no crepúsculo.
Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção
é um absurdo consentido pela nossa inércia alada.
Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa ideia do
nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço.
Vem-nos de muito longe, como a nossa ideia de haver a nossa vida...
Nenhum de nós tem nome ou existência plausível.
Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo riríamos
sem dúvida de nos julgarmos vivos. O frescor aquecido do lençol
acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um
ao outro, nus.
Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos
nós... Não tiremos do dedo o anel mágico que chama,
mexendo-se-lhe, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e
pelos gnomos do esquecimento...
E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra
vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação
e mais triste da nossa tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro
que se esfolha, a nossa ideia do mundo real, e eu possuo-me outra vez no
meu sonho errante, que essa floresta misteriosa enquadra...
As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vista traduzia para
seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas
mas na melodia dos seus nomes... Flores cujos nomes eram, repetidos em
sequência, orquestras de perfumes sonoros... Árvores cuja
volúpia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas... Frutos
cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa... Sombras que eram
relíquias de outroras felizes... Clareiras, clareiras claras, que
eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava em próxima...
Ó horas multicolores!... Instantes-flores, minutos-árvores,
ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço
e coberto de flores, e do perfume de flores, e do perfume de nomes de flores!...
Loucura de sonho naquele silêncio alheio!...
A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor...
Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós...
E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não
éramos uma realidade...
Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer...
Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria...
E assim como ela era duas - de realidade que era, a ilusão - assim
éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo
bem se o outro não ele próprio, se o incerto outro viveria...
Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos
a querer soluçar...
Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados,
cheios do tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio
de ser, de ter de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão - e esse
tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio
dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia
ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto
de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto...
E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém!
Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque
nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos
coisa alguma... Não tínhamos vida que a Morte precisasse
para matar. Éramos tão ténues e rasteirinhos que o
vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós
acariciando-nos como uma brisa pelo cimo duma palmeira.
Não tínhamos época nem propósito. Toda
a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso
de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa
dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores,
a alma vergada dos frutos...
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente
a morrê-la que não reparámos que éramos um só,
que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro
de si, o mero eco do seu próprio ser...
Zumbe uma mosca, incerta e mínima...
Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos
e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência
do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho?
Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma
em que a minha incerteza sossobra e o meu compreender-me, embalado de ópios,
adormece...
A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora...
Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos
nossos sonhos...
Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa,
da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque
traz mais do que se quer e menos do que se espera.
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio,
porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia
que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos...
Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o
perfil hirto e morto da nossa Imperfeição...
Livro do Desassossego por Bernardo Soares.
|