Gerana Damulakis
O Conselheiro na
crônica do bruxo
A crônica e a
história têm em comum a temática temporal e, talvez, por aí fique o
ponto convergente. A história carrega além da erudição a certeza
calcada nos dados precisos, que, a serviço do suporte documental,
trazem consistência aos seus textos. Já a crônica, no extremo
oposto, procura a acessibilidade de sua leitura, uma leitura para
todos entenderem, advinda de um discurso livre e leve, haja vista
seu primeiro veículo, o jornal ou a revista — bem diferente dos
alentados tomos que guardam a História. Claro que se deve lembrar a
existência cada vez maior de historiadores que procuram usar de
certas liberdades narrativas para criar uma maior aproximação da
obra com o leitor, realizando um saboroso passeio pelos tempos e
seus registros.
O cronista
Machado de Assis conceitua a crônica como “um confeito literário sem
horizontes vastos” ou “uma velha patusca” que “fareja todas as
coisas miúdas e grandes, e põe tudo em pratos limpos”, ao tempo em
que se refere à história como “uma castelã muito cheia de si” ou
“pessoa entrada em anos, gorda, pachorrenta, meditativa, tarda em
recolher documentos, mais tarda ainda em os recolher e decifrar”.
Enfim, se a aproximação ainda assim existe, o cronista pode ser
visto como um historiador vivencial, porque os fatos são contados
com o espírito do seu tempo. Vai, portanto, a crônica construindo a
memória, fazendo história como a prima pobre da “gorda pachorrenta”,
as duas parentes de Cronos.
No total, ambas
guardam relação e contraste e se a crônica vai tecendo a história do
seu tempo, caberá ao historiador usufruir da interpretação
microscópica desses textos para dar-lhes o caráter monumental da
História. Por tal atalho podemos recorrer ao historiador vivencial
Machado de Assis e verificar como ele comentou o episódio de
Canudos.
Selecionada
pelo próprio escritor para integrar Páginas recolhidas, a crônica
“Canção de piratas”, de julho de 1894, seguia o critério do autor ao
elaborar a variedade do volume contendo “retalhos de cinco anos de
crônica na Gazeta de Notícias que me pareceram não destoar do livro,
seja porque o objeto não passasse inteiramente, seja porque o
aspecto que lhe achei ainda agora me fale ao espírito. Tudo é
pretexto para recolher folhas amigas.” A crônica é iniciada assim:
Telegrama da
Bahia refere que o Conselheiro está em Canudos com 2.000 homens (dous
mil homens) perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro.
Não lhes ponha nome algum, que é sair da poesia e do mistério. É o
Conselheiro, um homem, dizem que fanático, levando consigo a toda
parte aqueles dous mil legionários. Pelas últimas notícias tinha já
mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros
lugares os seus assaltos...
Jornais e telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do
Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra pode sair de
cérebros alinhados, registrados, qualificados, cérebros eleitores e
contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol
que, através da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e
a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura
deste fim de século. Nos climas ásperos, a árvore que o inverno
despiu é novamente enfolhada pela primavera, essa eterna florista
que aprendeu não sei onde e não esquece o que lhe ensinaram. A arte
é a árvore despida: eis que lhe rebentam folhas novas e verdes.
Sim, meus amigos. Os dous mil homens do Conselheiro, que vão de vila
em vila, assim como os clavinoteiros de Belmonte, que se metem pelo
sertão, comendo o que arrebatam, acampando em vez de morar, levando
moças naturalmente, moças cativas, chorosas e belas, são os piratas
dos poetas de 1830. Poetas de 1894, aí tendes matéria nova e
fecunda. Recordai vossos pais; cantai, como Hugo, a canção dos
piratas...
Crede-me, esse
Conselheiro que está em Canudos com seus dous mil homens, não é o
dizem telegramas e papéis públicos. Imaginai uma legião de
aventureiros galantes, audazes, sem ofício nem benefício, que
detestam o calendário, os relógios, os impostos, as reverências,
tudo o que obriga, alinha a apruma... Os partidários do Conselheiro
lembraram-se dos piratas românticos, sacudiram as sandálias à porta
da civilização e saíram à vida livre.
E por aí
continua. Segundo Beatriz Resende, no seu estudo sobre a política
nas crônicas de Machado de Assis, a questão política e social fica
desprezada em função da fascinação poética que a figura messiânica
suscita no autor de Dom Casmurro. O tratamento dado ao Conselheiro é
o de um herói romântico, bandido-pirata, como diz a professora da
UFRJ. É uma figura idealizada que fatalmente se choca com a imagem
convencional do homem urbano, tornando-se, por isto mesmo, difícil
de ser compreendida e aceita, embora permaneça no imaginário
coletivo impregnada de grande poder de sedução. Ao pedir para que
“não lhes ponhas nome algum, que é sair da poesia e do mistério”,
Machado parece querer conservar a feição mítica de uma imagem já bem
longe da realidade. E, ao opor “artistas” aos “eleitores e
contribuintes”, sugere uma criação revolucionária e romântica
atribuída a um “guevárico conselheiro”, no dizer de Resende.
Em 13 de
setembro de 1896, dois meses antes de ser enviada a expedição
punitiva, comandada pelo tenente Pires Ferreira, que seria a
primeira das derrotas sucessivas dos militares, Machado de Assis
voltou a Antônio Maciel, o dito Conselheiro, citando-o em crônica
pela segunda vez. Sem levantar o aspecto romântico que ele
vislumbrou quase três anos antes na “Canção de piratas”, desta feita
o tom não trai exaltação, ao contrário, remete ao líder de Canudos
como se nunca tivesse escrito aquelas outras tão pungentes linhas.
Na verdade apenas o recorda em função de um telegrama que noticia
sobre um outro fanático baiano da época, Manuel Benta Hora.
Começa desta
maneira: “Dizem da Bahia que Jesus Cristo enviou um emissário à
terra, à própria terra da Bahia, lugar denominado Gameleira, termo
de Orobó Grande. Chama-se este emissário Manuel da Benta Hora, e tem
um séquito superior a cem pessoas.” Só linhas depois, como se de
passagem, é que ocorre a citação: “Quanto à doutrina em si mesma,
não diz o telegrama qual seja; limita-se a lembrar outro profeta por
nome Antônio Conselheiro. Sim, creio recordar-me que andou por ali
um oráculo de tal nome; mas não me ocorre mais nada. Ocupado em
aprender a minha vida, não tenho tempo de estudar a dos outros; mas,
ainda que esse Antônio Conselheiro fosse um salteador, por onde se
há de atribuir igual vocação a Benta Hora?”
Já em 27 de
dezembro de 1896, Conselheiro não mais é uma vaga lembrança. Chega
mesmo a ser citado com intimidade (“nosso grande Antônio
Conselheiro”), ainda que sem o entusiasmo de outrora e, incrível, o
mesmo Machado que pediu para não se colocar “nomes” à figura
mística, chama-o de taumaturgo: Tudo é possível. Já se vêem ossos
através da carne; dizem que Édison medita dar vista aos cegos. É o
que faz na Bahia, sem outro instrumento mais que a sugestão, o nosso
grande taumaturgo Antônio Conselheiro.
Em 14 de
fevereiro de 1897, ressurge o prestígio do Conselheiro, que volta a
ser motivo de início de mais uma crônica do Bruxo: “O homem que
briga lá fora”, de A Semana.
Conheci ontem o
que é celebridade. Estava comprando gazetas a um homem que as vende
na calçada da Rua de S. José, esquina do Largo da Carioca, quando vi
chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz descansada:
— Me dá uma folha que traz o retrato desse homem que briga lá fora.
— Quem?
— Me esqueceu o nome dele.
Leitor obtuso,
se não percebeste que “esse homem que briga lá fora” é nada menos
que o nosso Antônio Conselheiro, crê-me que és ainda mais obtuso do
que pareces. A mulher provavelmente não sabe ler, ouviu falar da
seita dos Canudos, com muito pormenor misterioso, muita auréola,
muita lenda, disseram-lhe que algum jornal dera o retrato do Messias
do sertão, e foi comprá-lo, ignorando que nas ruas só se vendem as
folhas do dia. Não sabe o nome do Messias; é “esse homem que briga
lá fora”. A celebridade, caro e tapado leitor, é isto mesmo. O nome
de Antônio Conselheiro acabará por entrar na memória desta mulher
anônima, e não sairá mais.... A ironia, tropo básico do discurso e
característica do modo de pensar do homem (desde Sócrates?), traz
uma forte carga crítica seja pela ambigüidade, seja pela via da
negação, o que, de resto, é utilizado na crônica brasileira quase
obrigatoriamente. Exemplo disso está no seguimento do texto: Esta é
a celebridade. Outra prova é o eco de Nova York e de Londres onde o
nome de Antônio Conselheiro fez baixar os nossos fundos. O efeito é
triste, mas vê se tu, leitor sem fanatismo, vê se és capaz de fazer
baixar o menor dos nossos títulos.
Como a crônica
gosta de parecer uma conversa fiada, um puxa-puxa de assuntos numa
prosa vária, Machado parte daí para fazer a análise de um livro de
Coelho Neto: Um dia, depois de extinta a seita e a gente dos
Canudos, Coelho Neto, contador de cousas do sertão, talvez nos dê
algum quadro daquela vida, fazendo-se cronista imaginoso e magnífico
deste episódio que não tem nada de fim-de-século. Profetizando, o
autor de A mão e a luva diz que a pena de um escritor dará fama à
história de Canudos, talvez Coelho Neto, mas foi um estrangeiro,
Mario Vargas Llosa, com mão de mestre, que, mesclando sua ficção à
pesquisa feita in loco, realizou a profecia de Machado com o romance
A guerra do fim do mundo publicado, em 1981, pela Francisco Alves
Editora.
Passando para
outra matéria, os tipos de chapéus, a crônica encerra com o motivo
que estimulou a entrada, quando a cartola vai dar vez para o remate
final: Chamam-lhe cartola, chaminé, e não tarda canudo, para
rebaixá-lo até a cabeleira hirsuta de Antônio Conselheiro. Mais
ironia. Assim é a nossa crônica, um gênero bem brasileiro.
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