Gilda Santos
A beleza e os
riscos da antologia
in Jornal de
Brasil,
Idéias,
05.05.1999
Reunião de poesia
contemporânea portuguesa feita por brasileiros mostra cuidado nas
escolhas e confirma a qualidade além-mar
ANTOLOGIA DA POESIA PORTUGUESA
CONTEMPORÂNEA
Org. Alberto da Costa e
Silva e Alexei Bueno
Lacerda Editores, 467 páginas
R$ 40
Como as próprias antologias,
também os comentários sobre elas costumam começar
pela tópica do "sem-saída". Já se sabe que o ideal
é lerem-se os autores em seus livros e não em textos pinçados
segundo critérios que, apesar de exaustivamente justificados, serão
sempre discutíveis. Mas, ao mesmo tempo, que outra alternativa haverá
para se conhecerem aqueles autores cujas obras, pelos mais diversos motivos,
não freqüentam nossas livrarias? Do impasse, têm surgido
corajosas tentativas de arriscar caminhos. Recordo o nosso Manuel Bandeira
e a sua celebrada Poesia do Brasil, de 1963, que, na pequena nota preliminar,
singelamente sintetiza os riscos assumidos: "Naturalmente esta antologia
terá os consabidos defeitos de todas as antologias. Não é
nada fácil escolher os autores e, nos autores, os melhores poemas.
A verdade é que nenhuma antologia pode por si só representar
a poesia de um país: para isso são necessárias algumas
antologias. A nossa pretende apenas ser uma dessas algumas".
A evocação
destas palavras de Bandeira (que, na referida obra, contou com a colaboração
de José Guilherme Merquior na escolha dos textos posteriores a 1922)
foi-me sugerida pelas palavras introdutórias da Antologia da Poesia
Portuguesa Contemporânea - um panorama, organizada pelos poetas Alberto
da Costa e Silva e Alexei Bueno, e recém-publicada sob a chancela
da dinâmica Lacerda Editora. Aí também os dois autores,
de duas distintas gerações, que uniram suas diferentes experiências
de leitura para apresentar o que consideram uma seleção poética
significativa da contemporaneidade portuguesa, não se eximem de
advertir os leitores sobre as "omissões ou falhas possíveis",
sobre as hesitações no "corta, substitui, acrescenta", sobre
os eventuais "desacertos, parcialidades e injustiças" que os levam
a afirmar que "a antologia fica sempre, para quem a fez, inacabada".
Mas nem só de escusas
ou advertências metodológicas se faz esta singular e viva
introdução, construída em forma de diálogo
testemunhal entre os dois organizadores. Abordam eles, sem as preocupações
didáticas que envolveriam cronologias, fixação de
grupos e denominadores comuns, questões importantes que permeiam
os textos selecionados, tais como algumas heranças e filiações,
a emergência do Surrealismo e da Poesia Experimental nos tempos salazaristas,
as marcas visíveis da censura, da guerra colonial e da euforia do
25 de abril, a grande variedade de temas, tons, dicções.
Traçam também algumas comparações entre as
literaturas portuguesa e brasileira deste século, sem esquecer as
glosadas diferenças prosódicas capazes de causar uns poucos
estranhamentos ao desavisado leitor brasileiro. Em suma, o público-alvo
da obra será o leitor afeito à poesia e curioso pelo que
Portugal, depois do unânime e onipresente Fernando Pessoa, possa
ter produzido.
Proposta como um "panorama"
recenseador das "muito variadas correntes da poesia portuguesa da segunda
metade deste século", ainda que "um panorama necessariamente incompleto",
a nova coletânea toma como "marco inicial" o livro pioneiro de Cecília
Meireles (Poetas Novos de Portugal) publicado no Rio de Janeiro em 1944.
Portanto, é a obra de Cecília uma primeira grande referência,
a que os organizadores não hesitam em prestar reverência ao
tomá-la como peça basilar desta empreitada. Tanto que, dos
36 poetas que Cecília agencia em dois grandes blocos cronológicos
- "Camilo Pessanha e o Grupo de Orpheu" e "Da presença aos poetas
mais novos" - apenas quatro agora retornam, no livro de 1999, sob a justificativa
de lá "estarem mal representados, com a obra ainda incipiente":
Pedro Homem de Melo, Ruy Cinatti, Tomaz Kim e Jorge de Sena.
Esta exceção,
que evidentemente abre a senda das valorações pessoais, permite
perguntar: por que retomar esses poetas e não (mais) outros que
também depois de 1944 publicaram o que de melhor escreveram? Estranhável,
por exemplo, a ausência aqui de um Adolfo Casais Monteiro, pois se
é verdade que claramente esteve vinculado à datada revista
Presença, é verdade também que empreendeu uma carreira
"solo" bem mais larga, cuja importância será difícil
negar.
Mas, ao longo das quatrocentas
e muitas páginas do livro, acolhidas na bela capa de Victor Burton
e bem executadas graficamente, desfilam 72 poetas dessa terra de poetas
que Portugal não só diz ser como tem procurado projetar numa
dimensão literária européia. São poetas nascidos
de 1900 a 1965, que, na saudável diversidade de vozes, apesar da
dificuldade que uma seleção assim dilatada acarreta, atestam
respeitável produção (listada ao fim do volume), capaz
de revelar ao leitor o quanto a poesia portuguesa da atualidade comporta
não somente o pensar a cultura portuguesa como o pensar a cultura
em língua portuguesa. E o lamentável é que, na quase
totalidade, esses autores, que transformam o fazer poético em fenômeno
cultural incontornável do nosso tempo, são desconhecidos
do leitor brasileiro.
Entramos aqui numa séria
questão, evocada nesta antologia e trazida agudamente à baila
pela recente Bienal do Livro do Rio de Janeiro, onde Portugal foi o país
homenageado: a inexplicável falta de convívio do público
brasileiro com os escritores portugueses contemporâneos e dos leitores
portugueses com os autores brasileiros de nosso tempo. Distanciamento tal
que levou o crítico Wilson Martins a declarar, não há
muito, numa entrevista: "Nos nossos dias, a literatura portuguesa é
para nós uma literatura estrangeira".
Sabemos todos que o tema
é complexo, envolvendo interesses de comércio que superam
as boas-intenções de muitos acordos bilaterais voltados para
o diálogo cultural, e, por isso mesmo, não há soluções
imediatas. No entanto, como afirmou a professora Cleonice Berardinelli,
há três semanas, aqui no Idéias, começa a haver
esperanças, que se originam do crescente número de edições
brasileiras de textos portugueses, onde figuram - já com sucesso
- alguns autores contemporâneos. Ora, a antologia organizada por
Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno, dentro deste quadro, assume papel
de imenso relevo. Por ser uma antologia poética, em tempos onde
impera o fascínio pela ficção. Por ousar ser tão
extensa. Por buscar suprir um vazio tão longo que o público
brasileiro não merecia.
Assim, os compiladores merecem
ver realizada a sua confessada aspiração quanto aos efeitos
do livro: "a de que, ao acabar de lê-lo, alguém se apresse
até a uma livraria e nela encomende alguma obra de um, dois ou três
dos poetas que dele constam". Posto isto, a antologia - até então
"para quem a fez, inacabada" - achará, com a cumplicidade do (bom)
leitor, os meios para completar-se.
Gilda Santos
é professora de Literatura Portuguesa na UFRJ e organizadora da
antologia Quarenta Poemas de Jorge de Sena
POESIAS
Auto-retrato
(Alexandre O’Neill - 1924-1986)
O’Neill (Alexandre), moreno
português,
cabelo asa de corvo; da
angústia da cara,
nariguete que sobrepuja
de través
a ferida desdenhosa e não
cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito
é o que vês
(omita-se o olho triste
e a testa iluminada)
o retrato moral também
tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase
censurada ...)
No amor? No amor crê
(ou não fosse ele O’Neill!)
e tem a veleidade de o saber
fazer
(pois amor não há
feito) das maneiras mil
que são a semovente
estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe
de mais e ri-se
do que neste soneto sobre
si mesmo disse ....
A menstruação
quando na cidade passava
(Herberto Helder
- 1930)
A menstruação
quando na cidade passava
o ar. As raparigas respirando,
comendo figos - e a menstruação
quando na cidade
corria o tempo pelo ar.
Eram cravos na neve. As
raparigas
riam, gritavam - e as figueiras
soprando de dentro
os figos, com seus pulmões
de esponja
branca. E as raparigas
comiam cravos pelo ar.
E elas riam na neve e gritavam:
era
o tempo da menstruação.
As maçãs resvalavam
na casa.
Alguém falava: neve.
A noite vinha
partir a cabeça das
estátuas, e as maçãs
resvalavam no telhado -
alguém
falava: sangue.
Na casa, elas riam - e a
menstruação corria pelas cavernas brancas das esponjas,
e partiam-se as cabeças
das estátuas.
Cravos - era alguém
que falava assim.
E as raparigas respirando,
comendo figos na neve.
Alguém falava: maçãs.
E era o tempo.
O sangue escorria nos pescoços
de granito,
a criança abatia
a boca negra
sobre a neve nos figos -
e elas gritavam
na sombra da casa.
Alguém falava: sangue,
tempo.
As figueiras sopravam no
ar que
corria, as máquinas
amavam. E um peixe
percorrendo, como uma antiga
palavra
sensível, a página
desse amor.
E alguém falava:
é a neve.
As raparigas riam dentro
da menstruação,
comendo neve. As cabeças
das
estátuas estavam
cheias de cravos,
e as crianças abatiam
a boca negra sobre
os gritos. A noite vinha
pelo ar,
na sombra resvalavam as
maçãs.
E era o tempo.
E elas riam no ar, comendo
a noite,
alimentando-se de figos
e de neve.
E alguém falava:
crianças.
E a menstruação
escorria em silêncio -
na noite, na neve -
espremida das esponjas brancas,
lá na noite
das raparigas
que riam na sombra da casa,
resvalando,
comendo cravos. E alguém
falava:
é um peixe percorrendo
a página de um amor
antigo. E as raparigas
gritavam.
As vacas estão espreitando,
e nos focinhos consumia-se
o lume em silêncio.
Pelas janelas os violinos
passavam pelo ar. E a menstruação
nas raparigas
escorria pela sombra, e
elas
gritavam e comiam areia.
Alguém falava:
fogo. E as vacas passavam
pelos violinos.
E as janelas em silêncio
escorriam
o seu fogo. E as admiráveis
raparigas cantavam a sua
canção, como
uma palavra antiga escorrendo
numa página pela
neve,
coroada de figos. E no fogo
as crianças
eram tocadas pelo tempo
da menstruação.
Alimentavam-se apenas de
figos e de areia.
E pelo tempo fora,
riam - e a neve cobria a
sua página de tempo,
e as vacas resvalavam na
sombra.
Em seu silêncio o
seu lume escorria das esponjas.
Partiam-se as cabeças
dos violinos.
As raparigas, cantando as
suas crianças,
comiam figos.
A noite comia areia.
E eram cravos nas cavernas
brancas.
Menstruação
- falava alguém. O ar passava -
e pela noite, em silêncio,
a menstruação
escorria pela neve.
Vigílias
(Al Berto - 1948-1997)
quando aqui não estás
o que nos rodeou põe-se
a morrer
a janela que abre para o
mar
continua fechada só
nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força
da manhã
escorrerem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade
das ondas
um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa
ausência
uma voz
quero morrer
com uma overdose de beleza
e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta o coração
esse
solitário caçador
Mensagens
(Fernando Pinto do Amaral
- 1960)
Invisíveis regressam
as palavras
na penumbra que desce e
que me abraça
quase em silêncio.
As ruas da cidade
revelam cada rosto do passado,
cada perfil ou cada olhar
- sorrisos
que setembro segreda e vou
sentindo
como se fossem teus, como
se ainda
por milagre viesses ter
comigo
a mais um bar deserto, a
mais um sonho
filho da meia-noite, nado-morto
talvez como este amor. O
frio do outono
vai diluindo as margens
do meu corpo
numa estranha neblina que
submerge
a casa onde viveste, agora
imersa
no mar das minhas lágrimas,
eternas
como esse teu jardim - ó
atmosfera
envolta em doces mágoas,
entre os muros
de séculos e séculos!
As escuras
refluem as palavras, as
nocturnas
mensagens do passado ou
do futuro.
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