João Alexandre Barbosa
Até os limites da realidade
06.12.98
O Mais! publica a seguir a versão integral de um texto de João
Alexandre Barbosa que, devido a um erro técnico, foi publicado
incompleto no caderno de 18 de outubro.
JOÃO ALEXANDRE BARBOSA*
especial para a Folha
Vejo agora que
venho lendo a obra de José Saramago há muito
tempo. A prova está na mistura de edições em que tenho os seus
textos publicados por duas ou três editoras portuguesas e, a partir
de uma certa época, a brasileira Companhia das Letras, que, para
quem lê no Brasil, seguindo aquilo que é feito, do lado de Portugal,
pela Editorial Caminho, veio dar uma certa ordem no caos editorial
que costumam sofrer os escritores de língua portuguesa.
E por aí se vê
que, embora tenha começado como romancista
desde 1947 com "Terra do Pecado", publicado pela Editorial Minerva,
somente em 1977, com "Manual de Pintura e Caligrafia, da Edição
Moraes, assume a identidade de romancista que, para o público mais
amplo, atinge a sua plenitude com a publicação, em 1982 e já pela
Caminho, do "Memorial do Convento". Duas consequências para a
reflexão: durante 30 anos entregou-se ao jornalismo e à poesia (de
que dão notícias os livros "A Bagagem do Viajante", "Os
Apontamentos" e "Os Poemas Possíveis", "Provavelmente Alegria" e "O
Ano de 1993", respectivamente) e somente há 21 anos vem escrevendo
os romances que lhe conferem, sem qualquer sombra de dúvida, a
posição de um dos melhores prosadores de língua portuguesa deste
século que vamos terminando -e, para dizer a verdade, o plural só
está aí pela existência anterior de João Guimarães Rosa. São dez
romances: além dos já citados "Terra do Pecado", "Manual de Pintura
e Caligrafia" e "Memorial do Convento", "O Ano da Morte de Ricardo
Reis", "A Jangada de Pedra", "A História do Cerco de Lisboa", "O
Evangelho segundo Jesus Cristo", "Ensaio sobre a Cegueira" e "Todos
os Nomes". E não é muito difícil estabelecer, desde logo, uma marca
narrativa que, por assim dizer, articula a variedade ficcional de
cada um: a presença forte de um narrador, quase sempre no limiar da
dicção autobiográfica, que busca fixar, no patamar mais objetivo da
história e da realidade circunstancial, as dissonâncias das
experiências subjetivas de que a linguagem tem dificuldades em dar
conta.
Neste sentido,
o chamado romance histórico sofre, com Saramago, um desvio
fundamental: a história circunstancial não lhe
serve apenas para alimentar a imaginação, mas esta, por meio de
pequenos e substanciais erros de leitura, como vai estar explícito
naquele "não" introduzido pelo revisor de "A História do Cerco de
Lisboa", cria uma complexidade de maior realidade, pois inclui no
real histórico as dissonâncias da própria linguagem que é utilizada
para a sua apreensão. O que, por outro lado, permite ou mesmo imanta
a presença contínua de uma desconfiança de base para com os dados
históricos, freqüentemente embaralhados pelo imaginário da
linguagem. E como este, no caso de um romancista, está constituído,
sobretudo, pelas fontes próprias da tradição narrativa, o chamado
romance histórico, em Saramago, inclui necessariamente, e de modo
solidário, a história do próprio gênero. Por isso, é possível dizer
que, na esteira do que há de mais inovador na narrativa moderna e
pós-moderna, o romance de Saramago é uma prolongada discussão acerca
das relações possíveis entre a representação da realidade pela
linguagem da narrativa e as inserções operadas pela imaginação
ficcional.
Quando,
portanto, o próprio Saramago apontava Pessoa, Borges
e Kafka como, para ele, os mais importantes escritores do século,
estava sinalizando para aquilo de que a sua própria obra dá
testemunho, isto é, quer para a multiplicidade de vozes ficcionais
que está em Pessoa, quer para a realidade da ficção, como está em
Borges, quer para a precisão do sonho e do imaginário de Kafka,
tudo, no entanto, por assim dizer, sob a tensão de uma consciência
dilacerante da linguagem. Veja-se, por exemplo, o modo pelo qual, no
seu último romance, "Todos os Nomes", transmite ao leitor lugares e
tarefas que constituem o espaço da grande sala da Conservatória
Geral do Registro Civil e que serve de pórtico à narrativa:
"A disposição
dos lugares na sala acata naturalmente as precedências hierárquicas,
mas sendo, como se esperaria, harmoniosa deste ponto de vista,
também o é do ponto de vista geométrico, o que serve para provar que
não existe nenhuma insanável contradição entre estética e
autoridade. A primeira linha de mesas, paralela ao balcão, é ocupada
pelos oito auxiliares de escrita a quem compete atender ao público.
Atrás dela, igualmente centrada em relação ao eixo mediano que,
partindo da porta, se perde lá no fundo, nos confins escuros do
edifício, há uma linha de quatro mesas. Estas pertencem aos
oficiais. A seguir a eles vêem-se os subchefes, e estes são dois.
Finalmente, isolado, sozinho, como tinha de ser, o conservador, a
quem chamam chefe no trato cotidiano.
A distribuição
das tarefas pelo conjunto dos funcionários satisfaz
uma regra simples, a de que os elementos de cada categoria têm o
dever de executar todo o trabalho que lhes seja possível, de modo
a que só uma mínima parte dele tenha de passar à categoria seguinte.
Isto significa que os auxiliares de escrita são obrigados a
trabalhar sem parar de manhã à noite, enquanto os oficiais o fazem
de vez em quando, os subchefes só muito de longe em longe, o
conservador quase nunca. A contínua agitação dos oito da frente, que
tão depressa se sentam como se levantam, sempre às corridas da mesa
para o balcão, do balcão para os ficheiros, dos ficheiros para o
arquivo, repetindo sem descanso estas e outras sequências e
combinações perante a indiferença dos superiores, tanto imediatos
como afastados, é um factor indispensável para a compreensão de como
foram possíveis e lamentavelmente fáceis de cometer os abusos, as
irregularidades e as falsificações que constituem a matéria central
deste relato".
Eis, portanto,
um traço estilístico de Saramago em sua essência:
os dados da realidade objetiva são expostos até os seus últimos
limites, não obstante as interferências irônicas, para que então
possa surgir o elemento de dissonância que se introduz pela
movimentação final do trecho citado e que é sua decorrente: o erro,
o abuso, a irregularidade ou a falsificação que transformam a rasura
do nome num motivo de procura pelo nome que é o romance e que por aí
faz o leitor retornar, mesmo que não o saiba, às fontes primordiais
do gênero narrativo. Mas a busca pelo nome, que é também a da
identidade, tudo envolve, desde aquele que busca até o objeto que se
busca e, por isso, a história se confunde com as histórias
individuais, sejam as do personagem Sr. José, sejam as deste romance
que dialoga com as suas origens. Nascimento e morte, fichas
hierárquicas da Conservatória, diapasões pelos quais se mede o
pulsar da realidade, é o espaço e o tempo que são alterados e
renomeados pela presença do erro que somente o imaginário da ficção
foi capaz de provocar.
* João Alexandre Barbosa é professor aposentado de
teoria literária da USP. Autor, entre outros, de "A Biblioteca
Imaginária" (Ateliê Editorial).
Leia José Saramago
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