Luiza Lobo
Satiricon sem profundidade
João Ubaldo
Ribeiro faz referências aos clássicos
da libertinagem, mas os esvazia de conteúdo
LITERATURA BRASILEIRA
A CASA DOS BUDAS DITOSOS
João Ubaldo Ribeiro
Objetiva, 163 páginas
R$ 19
in Jornal do Brasil,
Idéias, 19.06.1999
A epígrafe do novo romance de João
Ubaldo Ribeiro, A casa dos budas ditosos, talvez resuma a
grande questão que o livro encerra: "Tudo no mundo é mistério". O
primeiro destes apresenta-se logo nas páginas iniciais e diz
respeito à estranheza do título. O autor descarta qualquer motivação
mais séria para explicá-lo, ao afirmar: "É bom, até porque não quer
dizer nada, como todo bom título de qualidade literária". Uma vez
que a obra nada tem a ver com as sensuais esculturas das cavernas
indianas de Ajanta, seria possível encontrar alguma semelhança entre
A casa dos budas ditosos e o clássico Satiricon, de
Petrônio. Conforme a edição francesa Les belles lettres, de
1950, uma das versões da obra latina ficou conhecida como o
"Manuscrito de Buda". No entanto, a obra licenciosa de Petrônio
retrata muito mais detalhadamente sentimentos, religiosidade,
filosofia e política, usos e costumes que o livro do autor baiano.
João Ubaldo substitui as relações
basicamente homossexuais masculinas da obra de Petrônio pelas hetero
e homossexuais femininas da devassa Senhora CLB, que é estranhamente
despojada de dúvidas ou conflitos. Ao fim e ao cabo, o livro prevê
para nossa sociedade pós-freudiana e pós-reichiana um comportamento
pansexualista, onde tudo seria permitido, sendo a Senhora CLB,
alter-ego do autor, o profeta desta mudança.
Outro mistério diz respeito à gênese
da obra, pois João Ubaldo afirma no prefácio que esta se constitui
de um manuscrito de uma senhora de 68 anos assinado apenas pelas
iniciais CLB que foi deixado na portaria do prédio onde trabalha.
Coincidência altamente inverossímil, uma vez que no mesmo prefácio o
autor afirma ter-lhe sido o livro encomendado pela editora a
respeito de um dos sete pecados capitais, a luxúria (ou seria a
perversão?). Isto só vem aumentar o caráter cômico e parodístico da
obra.
Mais inverossímil ainda é imaginar
esta personagem-narradora de 68 anos, nascida, portanto, em 1931,
como autora dessas desabridas memórias. É sintomático que ela
também, como o próprio João Ubaldo, tenha nascido na Bahia e se
fixado no Rio de Janeiro.
O linguajar grosseiro e de baixo
calão, a liberalidade e a libertinagem deste "depoimento
pornográfico" buscam retratar uma realidade sexual e devassa que
caracterizaria o nosso tempo. Mas, aqui, a ousadia de Ubaldo
consiste em romper o pacto de empatia com o leitor, e, invectivando
com ira e revolta contra ele/ela, clamar reiteradamente contra sua
"burrice", "debilidade mental", "babaquice" e "boçalidade".
No que diz respeito à linguagem, o
livro coloca-se a favor da cultura popular e na contramão da "alta
literatura". As poucas referências a obras artísticas e literárias
eruditas - trechos de Shakespeare e alusões a autores eróticos, um
jarro do Museu Britânico ou uma peça de Mozart - são atribuídas
quase a uma idiossincrasia da narradora.
Apresentando-se ousadamente como um
manual de educação sexual feminino, este "depoimento pornográfico"
de uma mulher de invejável energia sexual raia pelo inverossímil,
porque a sensibilidade, forma de exposição e visão de mundo dela
aproximam-se mais de uma perspectiva masculina. O apelo ao recurso
do jogo entre um ele-ela, narrador-narradora, foi utilizado por
Clarice Lispector em A hora da estrela com o objetivo de
criticar a posição masculina patriarcal. Contudo, aqui, esta
alteridade introduzida não passa do alter-ego do autor.
Dirigido às mulheres e supostamente
escrito por uma mulher que nos faz suas confissões sexuais, o livro
propõe-se como um Cama (com c mesmo) Sutra brasileiro. Entretanto, a
personagem é tão despojada de emoções que aumenta o tom inverossímil
do romance, ao mesmo tempo em que um vazio existencial vai ocupando
esta "casa". O sexo torna-se puro automatismo de ações desprovidas
de motivação psicológica, quase que como um ato de violência por
parte desta "libertina pervertida e devassa" da alta classe, sem
preocupações profissionais ou financeiras.
O resultado é transformar-se numa
verdadeira via crucis do corpo, tão bem explorado por Clarice
Lispector a respeito do ato sexual sem amor nem comunicação. Este
libelo "socio-histórico-litero-pornô" centra-se muito mais na ação
do que na imaginação. Carente de aprofundamento emocional, o livro
perde em humanismo e falha ao não apresentar um retrato da
atualidade brasileira. A moralidade social da família crista
brasileira no entanto é preservada, pois a Senhora CLB não podia ter
filhos. Como Brás Cubas, poderia afirmar: "Não tive filhos, não
transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria".
Qual seria a função da troca de
gênero do narrador? Talvez interessasse a João Ubaldo a ambigüidade
da protagonista de seu romance, como ocorreu na novela Sarrazine,
de Balzac, com a figura do homem-mulher-castrado, já analisada por
Roland Barthes, em S/Z.
As trocas do gênero do narrador e do
autor-personagem oferecem ao imaginário do leitor mais
possibilidades de fantasia do que o fariam as memórias realistas do
próprio João Ubaldo; ao mesmo tempo, poupam-no de ter de nos revelar
suas próprias confissões sexuais, que poderiam levar o leitor à
incredulidade ou a uma atitude de revolta contra sua imoralidade.
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