Luiza Lobo
Prefácio ao livro Movimento Perpétuo
Travei contato com a poesia de
Márcio-André/márcio-andré numa exposição de fotos e poesia ocorrida
em 2001 na Faculdade de Letras da UFRJ. Descobri que, além de
graduando em Letras, com profundo conhecimento de poesia, era
violinista e lhe agradava interpretar as canções escocesas do tempo
de Robert Burns, que foi a ponte que o levou até mim, tradutora do
poeta escocês, embora não haja traço algum de romantismo,
pré-romantismo ou sentimentalismo no livro do jovem poeta, que ele
intitulou Movimento perpétuo. A emoção encontra-se na
engenhosa escolha das palavras e seu efeito sobre o leitor.
Para o Dicionário do Aurélio,
“moto-contínuo” é, na física, um sistema cujo funcionamento estaria
em contradição com o primeiro ou o segundo princípio da
termodinâmica, máquina capaz de funcionar indefinidamente sem
despender energia ou transformando em trabalho toda a energia
recebida. Uma espécie de Deus todo-poderoso e autônomo, portanto,
que prescindiria de qualquer força exterior para sobreviver,
gerando, produzindo, compondo e rimando. Esta noção contida no
título do livro, “Movimento perpétuo”, repete-se em todos os títulos
de suas densas 50 páginas. Inúmeras vezes eles se referem à música,
que se exerce num leque reduzido de notas, numa infinita repetição;
e à coda, que seria o bordão, que se relaciona com o refrão ou o
famoso mote do poema popular ou medieval. Essa idéia central de
repetição infinita do mesmo tema, de forma sempre criativa, mas
ad nauseam, dirige a poesia de Márcio-André para o alto, para
longe do cotidiano, num mundo cada vez mais espiritualizado. São
inúmeras as citações de nomes e trechos de poetas a que ele recorre,
intertextualidades, rimas interlingüísticas, metáforas estridentes,
fórmulas matemáticas e jogos de palavras. Ver o engenhoso “be-leaves
in lies e livros”, no qual no nível do significado “leaves” se
desdobra nas folhas dos livros e na sua aproximação significante com
“believe” – acreditar – opõe-se a “lies” – mentiras. As fontes
chinesas – quem sabe através das traduções que Pound fez ao herdar o
caderno de notas de Fenollosa – são outra linhagem. Chamam a atenção
as homenagens a Sousândrade e Cummings, ao lado de Bartók,
Stockhausen e Schönberg. Há muitas indicações para a interpretação
musical nestes poemas continuamente intitulados “Movimento
perpétuo”, com pequenas variações. Neste jogo sensorial entre a
poesia e a música, sempre combinando a coda com o mote, ou moto
perpétuo, é visível a linha-mestra que liga Márcio-André à noção
poundiana do “renovar” ( “MAKE IT NEW” / “MAKE IT NEW” / “MAKE IT
NEW”), tornando a idéia de invenção e modernização da linguagem a
mais radical possível. De Sousândrade, provavelmente retira a rima
com línguas estrangeiras; de Cummings retira a interferência na
língua, apresentando grandes linearidades alteradas com um rumor de
sons indistinto, que cria falas novas. Não sei se de Cummings ou de
Qorpo-Santo (este ele não cita) retira a idéia de reinventar
fonemas, sabe-se lá obedecendo a que critério interior e com que fim
em sua problemática vivencial (ou divina, de criador). Expressar o
indizível? Assim, o c e o q são intercambiados, e é preciso conviver
com “chestões” em lugar de “questões”, com “parches industriais”, em
lugar de “parques”, com “chintais” em lugar de “quintais”. Há, por
exemplo, “nachela colina” e ainda outros intercâmbios de sons e
letras, como em “alghidares de barro”. Pura invencionice para
impressionar, como em tantos poetas da década de 1970, que queriam
épater les bourgeois? Não me parece. Quando Márcio-André,
aliás, márcio-andré, no perfeito alinhamento de seu nome distribuído
em dois grupos de cinco letras, ambos com um acento agudo, propõe: a
“OBRA nunca morre / a Obra atemporal eternamente adiante e / a Obra
prostituta (...)”, ele busca a elevação, a superação da máquina da
escrita para além de seus próprios limites. O supremo desejo
expresso num de seus poemas (tipo que livro você escolheria para
levar para uma ilha deserta?) é obter um Laptop interligado à
Internet (trecho “dialética”, de “Movimento perpétuo: 8/4 + 1/5”).
Também nos propõe a terminação em md, significando mundo, em
substituição à sigla do país, nos sites internáuticos. Márcio-André
sonha nada mais nada menos que com o mundo novo, virtual e paralelo
da Internet, como uma grande máquina de sonhos em andamento através
da linguagem do poeta, talvez inspirado por Arthur C. Clarke (que
ele cita). Quem seria o criador, quem a criatura, ele ou a Internet,
não sei dizer. Projeto tão ambicioso quanto o de Mallarmé, que
deixou inacabado seu Livro que poderia ser lido em qualquer
direção, a partir de qualquer página. E não é este o processo que
ocorre na feitura de textos ou na consulta de páginas da Internet?
Essa nova épica desconcertante, para continuar no plano da música,
tão bem proposto pelo autor na sua conjunção com a musicalidade
poética, nos leva a passear por um espaço sideral descortinado por
sua geração: “a amanhã pré-histórica internet de hoje”; “satélites
strausseando e morrendo no espaço/ lixo livre acorrentado à/ vista
da terra” (poema “Movimento perpétuo: andamento 12/4 in fá minor com
interlúdio contrapontístico para 2 solistas”). Para além da grande
quantidade de autores citados e textos referidos ou reinventados,
não tenho dúvida de que seria necessário recorrer mais profundamente
à teoria musical e principalmente à física quântica, para
compreendê-lo: “todas as possibilidades cuânticas / do ser e do não
/ n.a.: cuatro sustenidos e / música / em andamento mais rápido
(...) / CODA / e achi / eIS-ME”. Por isso, a citação final de Isaías
torna-se menos fatal na sua didaticidade solene e empostada. Não se
trata de obra didática, mas paradidática, por assim dizer. O poeta
quer nos revelar um mundo paralelo a este, tão importante quanto
este, que apenas a poesia deixa entrever. Como os grandes
visionários, percorreu o mundo grego, as referências dantescas da
literatura ocidental que se oxidaram no tempo, foi aos pensadores
chineses, como Lao-Tsé e Confúcio, buscou uma resposta, e chegou ao
Isaías judaico-cristão. Cai vertiginosamente na última estrofe do
livro numa referência a Drummond. Não, Márcio-André, Drummond é
mineiro demais, carioca demais, mesmo com sua imensa máquina do
mundo, para alcançar o universo mallarmaico que você propõe. A
máquina do mundo drummondiana é um obstáculo do tempo anteposto numa
estrada mineira, trilhada no sonho e sem rota, radar ou bússola. Ao
contrário, para os tempos de Márcio-André, as rotas mallarmaicas
estendem-se para além do amplo mar dos naufrágios, rumo ao espaço
sem-fim, numa nova épica das grandes navegações (make it new)
– espaço paralelo ao da Internet, em que navegar é preciso, sem
limite, sem horizonte finito. Fica perdoado esta referência a
Drummond, pois, muito roseanamente o último verso do livro é deixado
inacabado. E, após citar Isaías, um texto reverberativo, que traz
uma resposta e uma lição, Márcio-André retoma o seu moto-contínuo e
coloca discretamente uma epígrafe final de Pound: “tentei escrever o
paraíso/ não se mova/ deixe falar o vento/ esse é o paraíso”. Assim,
na simplicidade de Bob Dylan ou nas canções escocesas e celtas, não
propôs nem mais uma palavra além das já dadas: movimento perpétuo da
poesia. Aliás, numa leitura de trás para frente, tão apropriada aos
textos iridiados e infinitamente desdobráveis de Márcio-André,
percebemos que seu livro não precisa de prefácio, pois o próprio
autor-deus já o escrevera, ao criar o mundo, no primeiro poema do
livro, “Perpetualismo”. Ali ele explica que, num dia de revelação,
como autor e seu próprio mestre, decidiu recusar-se a morrer,
afirmando: “make it new”. Em seguida, enunciou seus oito
princípios, todos ligados à linguagem, à teoria do acaso e ao
desdobramento infinito da linguagem a partir de uma Obra e do novo
universo virtual. Ao mesmo tempo, o próprio autor desfaz sua idéia
de Deus, na medida em que emprega para descrever sua criação a
linguagem html. Creio que esta Obra do misterioso márcio-andré é
digna dos espaços em branco previstos por Mallarmé em seu prefácio a
Um lance de dados jamais abolirá o acaso. Nela, o silêncio, a
parte mais significativa de uma poesia de fímbrias, bem anuncia a
épica e a física modernas. Obrigada por ter-me permitido palmilhar
estas páginas caóticas do acaso. Mas, agora, apertem os cintos, mas
sem medo de se perderem no espaço sideral-virtual. Num
moto-perpétuo, tudo volta ao princípio e se ren-ova. Meiche itt
niu.
Contista, tradutora, professora da UFRJ e pesquisadora 1 do CNPq
Leia Márcio-André
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