Marco Lucchesi
O sistema Jorge de Lima
"O fogo celeste queima-te o paladar"
(Mira-Celi)
A obra de Jorge de Lima permanece
robusta e poderosa como um penhasco na solidão incomparável de seu
gênio. Pura altitude, como os céus de Goethe e os abismos de Dante,
desafiando nossa condição de leitores borgianos, tocados pela sua
poesia escandalosamente bela, tal como a considerou Mário de
Andrade, que percebia em Jorge de Lima uma escassa invenção,
infinitamente compensada por uma vasta imaginação, e que fazia dele
"o caso mais apaixonante da poesia contemporânea do Brasil".
Passados sessenta anos — Mário escreve
em 1939 —, podemos insistir na perplexidade provocada por Invenção
de Orfeu, tal como Os Lusíadas, de Camões, ou o Ulysses, de Joyce
costumam provocar em sucessivas gerações de leitores, enquanto obras
fortes, como diria Bloom. O incômodo confessado por Jung, diante de
Ulysses, e o espanto de Murillo, diante de Invenção de Orfeu,
permanecem na ordem do dia, embora saibamos hoje algumas coisas
(somente duas ou três) que escaparam aos críticos de então, pois a
contemporaneidade de uma obra está além da força contemporânea de
seus leitores.
Sabemos hoje algo a respeito da
influência e do intertexto, do deslocamento e da polifonia,
praticada, muito embora, há séculos, pela Poesia Ocidental. Sabemos
hoje algo a respeito dos bastidores de Invenção de Orfeu, como se
opera a montagem e como se distribuem os níveis de significado.
Sabemos algo a respeito da metáfora pura rimbaldiana e de seu espaço
radical e simultâneo. Todavia, o resultado é ainda bastante limitado
diante de uma obra inquietante como a de Jorge de Lima. O penhasco
permanece acima de nós, com toda a sua força, poderosa e enigmática.
Entretanto, a poesia limiana não é
feita apenas de montanhas e penhascos, mas também de ilhas e
arquipélagos. Donde a unidade da obra de Jorge de Lima ter sido
insistentemente discutida e reavaliada, como se daquele vasto oceano
de símbolos, emergissem dois sistemas opostos de interpretação. De
um lado, a tendência de se ressaltar negativamente a descontinuidade
do processo criativo e da poesia de Jorge de Lima (embora os
críticos deixem claro que de cada fase o poeta legou uma pequena
obra-prima para as antologias), acusando-o sutilmente de seguir de
perto as correntes que estavam em moda, para abandoná-las, tão-logo
deixassem o cenário. Jorge de Lima, segundo essa tendência,
ter-se-ia encontrado a si próprio, como poeta e criador, apenas em
Invenção de Orfeu, considerada a acmé de sua expressão. Algo
semelhante, pesadas as diferenças, ao que se repetia ad nauseam
quando se comparava teologicamente a Vida nova com a Divina comédia,
os Poemas, de Milton, com o Paraíso perdido, onde as linhas de força
convergiam exclusivamente para o grande epos, em detrimento das
obras consideradas menores. Dentre todos, Camões formava exceção.
Por outro lado, assistimos a uma outra
tendência, que tenta demonstrar que o aparente descontínuo da
superfície guarda uma surpreendente unidade temático-formal entre as
partes, atrelando-as dentre as cogitações de sua ragion poetica, e
que podia culminar (embora não necessariamente), em Invenção de
Orfeu, coincidentia oppositorum, cujo centro seria habitado tanto
por Poemas negros, quanto por Tempo e eternidade, pelo Mundo do
menino impossível e por Anunciação e encontro de Mira-Celi. Como que
todas as etapas se consolidassem no grande épico, de que todas
seriam passagens brilhantes, ou momentos felizes, que poderiam
resolver-se de modo generoso em Invenção de Orfeu.
No primeiro caso, poder-se-iam
incluir, como os melhores representantes dessa corrente, ou seja, de
que a poesia de Jorge de Lima fosse uma itinerância marcada por
estações diversas e incomunicáveis entre si, Antônio Rangel
Bandeira, para quem Jorge de Lima "passou a vida estreando", ou,
então, Massaud Moisés, que distingue o nosso autor, "no conjunto de
sua geração, pela ciclotimia", e o que mais estranha em sua obra
"não é esse percurso, senão o abraçar novo tema sem estabelecer
com anterior um nexo de continuidade; parece recomeçar a cada passo,
à procura de seu autêntico rosto".
A argumentação de Massaud Moisés
parece-nos bastante delicada (como demonstrou ser delicado o modelo
dos ciclos na história do Brasil, como se nada ocorresse entre dois
ciclos, por exemplo, entre a cana-de-açúcar e a mineração, entre
esta e o café, gerando um vazio epocal abstrato), parece-nos
delicada, íamos dizendo, a argumentação de Massaud Moisés, pois não
compreendemos como um poeta da altitude de Jorge de Lima, fosse
incapaz de promover um diálogo interno como o seu mundo, não
elaborando um processo de vasocomunicação entre as partes.
Vejamos, por exemplo, o belo e injustamente esquecido estudo de
Manuel Anselmo, ao sublinhar com inteligência, no primeiro terceto
de "O acendedor de lampiões",
"uma atitude de solidariedade humana que não destoa daqueloutra
que consta em seus poemas negros, por exemplo ‘Pai João’, e se
continua, com intensidade, nas páginas do seu romance Calunga".
Nessa mesma direção, não dissociando a
obra poética da romanesca, Luís Santa Cruz foi quem mais insistiu em
compreender que as etapas de Jorge de Lima dependiam de uma poderosa
unidade, como soube demonstrar com argumentos decisivos:
"tanto na obra poética de Jorge de Lima, como em toda a sua
criação literária, a palavra-chave que nos permite com ela devassar
o segredo e o elo misterioso de sua cadeia criadora, é a mesma da
obra de Georges Bernanos: a palavra ‘Infância’."
Para Santa Cruz, Jorge de Lima foi "um
convertido de sua infância", e buscou tais elementos, onde,
aparentemente, desapareciam, como em Anunciação e encontro de
Mira-Celi, ou no Livro de sonetos. As considerações de Santa Cruz a
tal respeito parecem-nos definitivas, especialmente quando pensamos
naquela fase horizontal limiana, descrita por Alfredo Bosi, como
arraigada em seu catolicismo sincrético, sertanejo e santeiro, que
havia de se tornar, mais tarde, generosamente metafísico. Ou, então,
como bem disse Roger Bastide, em página antológica, os poemas de
Jorge de Lima acusam a herança clara e aberta das tradições cristã e
africana, num grau superior de combinação.
Mas foi, sem dúvida, Alfredo Bosi, em
sua História concisa da literatura brasileira, quem melhor enfrentou
a dimensão da unidade da obra de Jorge de Lima, ao afirmar que o
sentimento do poeta,
"embora organicamente lírico, isto é, enraizado na própria
afetividade, mesmo quando aparente dispersar-se em notações
pitorescas, em ritmos folclóricos, em glosas dos grandes clássicos.
É importante ressalvar esse ponto, porque sem a sua inteligência
poderiam soar gratuitas as mutações de tema e de forma que marcam a
linguagem de Jorge de Lima, poeta sucessivamente regional, negro,
bíblico e hermético".
Pois é exatamente sob essa perspectiva
que devemos absorver o impacto da obra de Jorge de Lima, tentando
discutir, em outro lugar, a qualificação de hermetismo — considerada
provisória pelo próprio Bosi. Interessa-nos agora tão-somente na
questão da unidade, que nos parece a mais adequada e justa para
compreender alguns aspectos que tocam sobretudo a epopéia limiana.
Invenção de Orfeu é o penhasco alto e
profundo do sistema Jorge de Lima. Diante disso, permanece válida a
observação de Murillo Mendes acerca da necessidade de uma equipe de
exegetas para estudar e comentar Invenção de Orfeu.
Tal esforço vem ocorrendo, como não
poderia deixar de ser, através de escassas e bem-sucedidas incursões
monográficas, como as de Gilberto de Mendonça Telles, no livro
Camões e a poesia brasileira, onde Jorge de Lima aparece nas
variantes épica e lírica; ou, então, como o estudo réussi de César
Leal, "Universalidade de Jorge de Lima", em que são indicadas
inúmeras cogitações dantescas, de ordem formal: quando analisa, por
exemplo, o verso "Alguém em flor, Alguém em dor, Alguém" onde a
santíssima trindade comparece nesse decassílabo perfeito, além das
rimas em al, or, em e guém, a demonstrar a igualdade das pessoas,
como ocorre no "Paraíso" 33, de Dante.
Contudo, livro que marcou época foi,
sem dúvida, Montagem em Invenção de Orfeu, de Luís Busatto, onde,
partindo da sugestão de Murillo Mendes, sob a abordagem de
Eisenstein e Kristeva, Busatto elaborou uma rede clássica de
remissões e alusões, deslocamentos e descentramentos fundamentais em
Invenção de Orfeu, a partir da Eneida e da Divina comédia (através
de Odorico Mendes e Xavier Pinheiro) e sobretudo de Camões, emblema
fulcral da nova epopéia. Outras abordagens poderiam mostrar mais de
perto novos credores como Rimbaud e Mallarmé, quanto à dimensão do
intertexto e das formas plurais do significante. Mesmo assim, Luís
Busatto deu-nos diversas incursões palimpsésticas, demarcando
signos, rimas e anáforas, deslocados para um novo endereço
literário, cada um dos quais em forma de ruínas ou de corpos
inteiros, como demonstrou, em outra esfera, Cláudio Murillo Leal, em
recente dissertação na Letras da UFRJ.
O próprio Cláudio Murillo e Luís
Busatto disseram coisas essenciais e bem fundamentadas sobre
Invenção de Orfeu, ao mesmo tempo em que parecem eliminar
indiretamente dois excessos do brilhante João Gaspar Simões: o
barroquismo limiano e o hermetismo destinado aos críticos, que se
mostram insustentáveis, se tomados de forma absoluta. Todavia, os
esforços apontados, por precisos e inovadores, ainda se restringem
ao pé-de-página de uma futura edição comentada, pois resta
compreender a direção multifária e polifônica, de tal modo que a
crítica deixe de habitar apenas o caminho dedutivo e admita
igualmente o indutivo, apostando numa compreensão macroscópica do
processo, para libertar-se da arqueologia do particular para o salto
do universal. Ou, então, como diria Vico, que abandonasse a
filologia e se decidisse pela filosofia. Mas a hora ainda não é
chegada, e Murillo Mendes tinha razão.
O sentimento-idéia que nos leva de
modo incompleto e breve a tratar de Invenção de Orfeu começaria
inicialmente em rastrear as chaves apontadas por Jorge de Lima, como
ele próprio nos incita a fazer (segundo Dante: dottrina sotto ‘l
velame), no canto VII:
A linguagem
parece outra
mas é a mesma
tradução.
Mesma viagem
presa e fluente,
e a ansiedade
da canção.
Lede além
do que existe
na impressão.
E daquilo
que está aquém
da expressão.
Esse espaço que representa algo que
Dante já dissera no "Inferno": "Lede além do que existe na
impressão", ou seja, a elaboração de uma hermenêutica da suspeita,
de quanto permanece amorado no texto, para que se possa lograr a
significação profunda, tudo isso comparece, dentre outros momentos,
no canto IV (como em Dante: perdendo me, rimarreste smarriti),
Um monstro flui nesse poema
feito de úmido sal-gema.
.............................................
Se vós não tendes sal-gema,
não entreis nesse poema.
Eis outra chave: o sal-gema, dentre as
tantas e variadas chaves que parecem, numa primeira instância
renovarem-se, em todas as portas a que se destinam, como soía
acontecer nos textos de espessura cristã, como demonstramos em
Dante, justamente quando afirmamos que o iter dantesco, como o de
Jorge de Lima, espraia-se num universo textual bem mais equívoco do
que o dos Argonautas, ou da Odisséia, pois é feito de desvãos,
abismos, onde os conectores lógicos implicam na descontinuidade da
phýsis. O próprio Jorge de Lima inicia Invenção de Orfeu com um
barão sem chaves na mão. Ou seja, inicia a epopéia com chaves
multissignificantes.
Auerbach indicou em sua Mimesis, os
aspectos fundamentais das portas e das chaves do texto cristão:
"realce de certas partes e escurecimento de outras, falta de
conexão, efeito sugestivo do tácito, multiplicidade de planos,
multivocidade e necessidade de interpretação..."
Tais aspectos trespassam a Invenção de
Orfeu tanto quanto a Divina comédia, sendo que o estranhamento de
sua poesia resulta de um manejo característico, que o diferencia,
por exemplo, da obra de Homero, ou de Apolônio, fruto de um longo
processo figural, que alicerça o "Paraíso" e Invenção de Orfeu,
perfazendo outras conexões, além daquelas apontadas por Auerbach. A
pluralidade nutre e configura as velas hipersignificantes da viagem
a Deus. Os mares dantescos e limianos, por serem cristãos, guardam
mais riscos, pois contam com os abismos da teologia, que se agregam
dramaticamente à novíssima paisagem, da Comédia e de Orfeu.
O exemplo seminal e mais complexo
dessa criação remonta ao "Apocalipse", que surpreende a estrutura
cristã quando incide sobre a paidéia clássica, ampliando o espaço
entre os signos, multiplicando-lhe os valores, alegorizando imagens,
traço de união da poética dantesca e limiana, quando o apóstolo
afirma ter visto
"um céu novo e uma terra nova. Porque o primeiro céu e a primeira
terra se formam, e o mar jão não é... vi a cidade santa, a Jerusalém
nova, que da parte de Deus descia do Céu".
Novo céu. Terra. Cidade. Plano sobre
plano. Toda imagem remete a outra imagem. Abre-se a distância entre
os signos. A alegoria alarga a mobilidade dos substantivos. Os
sintagmas absorvem subparadigmas. Os mares cristãos encerram uma
latência que não cessa (sal-gema, passar ogni costrutto). E dizemos,
em A paixão do infinito, que o Empíreo, muito além de Patmos,
celebra os limites da mais alta poesia. E embora permaneça
infinitamente distante da verdade (aquém da expressão, millesmo del
vero), o triunfo da poesia consiste na afirmação desse limite
intangível. Suas águas tornam-se plurais. Jazem em seus mares
incontáveis tesouros.
Eis o quadro que nos parece urgente e
superlativo para não se perder de vista o sistema Jorge de Lima,
ampliado e amadurecido em Invenção de Orfeu; isto é, as camadas
plurais do texto cristão, capazes de abranger a metafísica e a
hiperfísica, a biografia e a história, numa sede poderosa de
unidade, onde as águas de Camões e Dante se acomodam aos textos do
Brasil Colônia, como os de Gândavo e Caminha, Thevet e Cardim,
marcando a grandiosa fábrica de imagens que constitui a Invenção, de
tróias e venezas, tamoios e timbiras, enquanto aguardamos, não um
Champollion, como disse Murillo, não a Resposta aportes filológicos
e filosóficos, sondagens micro- e macroscópicas, da Weltliteratur e
da brasileira, e que Orfeu nos auxilie a descobrir melhor os nossos
mares, a nossa Paidéia, enquanto aguardamos em Mira Celi:
Estai alerta: de súbito ela se tornará visível.
Estai alerta, portanto, desde o amanhecer do dia.
É Mira-Celi que vem para viver conosco!
Navegantes julgarão estar vendo um navio fantasma,
enquanto as donzelas sonharão com seus gêmeos futuros,
e os pastores com seu cordeiro desaparecido.
Mas é apenas Mira-Celi que se torna visível.
Se tendes mãos azinhavradas, não a vereis jamais.
Se vossa mente possui alguma sinistra idéia,
não a vereis jamais.
Se vosso dorso se curvou a um tirano qualquer,
ficareis cegos de nascença.
Porque Mira-Celi nunca se mostrará,
enquanto divisar manchas em nossa terra.
Quando ouvirdes então um rumor desusado, vindo do fim do mundo
sabereis que os falsos deuses começam a tremer.
Mira-Celi vem vindo sobre as águas, no ar.
Os lábios de Mira-Celi tocarão vossos lábios.
Ficareis em eclipse entre Mira-Celi e o mar!
Tal a nossa força de leitores e
críticos sobre penhascos e abismos de que depende nossa humana
condição.
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