Tércia Montenegro
Os múltiplos estilos de Agualusa
A escritora
Tércia Montenegro analisa a narrativa do escritor angolano José
Eduardo Agualusa no livro Estação das Chuvas, da
editora Gryffus
No início de
Estação das chuvas, José Eduardo Agualusa adota uma
atmosfera fantástica que traz a inevitável lembrança de um Cem
anos de Solidão, de Gabriel Garcia Màrquez. É o que se vê no
trecho a seguir, de uma poética eficaz e bela justamente pela
diluição no surreal:
"Logo que a
criança nasceu - era uma menina - Francisca deixou outra vez de se
alimentar, mergulhando num estado de completa apatia. Uma noite
encharcou um cambriquito em água, enrolou-se nele e dormiu. No dia
seguinte acordou com uma leve tosse e continuou a tossir, e a
suspirar mais do que a respirar, até que o seu corpo perdeu toda a
substância e tiveram de fechar as janelas e de a amarrar com um
cordel aos pés da cama, para que a não arrastasse a brisa vesperal.
Quando morreu, já estava tão desprovida de existência, que foi
necessário vestir-lhe as suas roupas mais concretas, perfumar-lhe o
corpo todo, pintar-lhe com cores aflitas o cabelo e as unhas das
mãos e dos pés para que se tomasse credível que em tempos fora
pertença deste mundo''.(pp.25-6)
Mas engana-se quem
pensa que o resto deste romance continua no mesmo teor. Agualusa
alternará a perspectiva de sonho com trechos de intensa crueza
realista, principalmente quando se trata de descrever o processo
histórico de libertação de Angola. Na segunda metade da história,
uma cena na prisão pode lembrar o Tahar Ben Jelloun de Sufrían por
la luz (obra em que este escritor marroquino apresenta a história de
prisioneiros que, acusados de atentar contra a vida do rei, passam
18 anos numa prisão escura). Compare-se este trecho com o anterior:
''Alta madrugada, assim que o sol se erguia, batendo de frente
contra as paredes da cadeia, a retrete começava a gorgolejar. Era
primeiro um suspiro profundo, uma espécie de lamento, mas depois
subia e transformava-se num riso surdo, num arroto, e subia mais e o
cheiro transbordava e trepava às paredes e agarrava-se à pele como
se fosse visgo''. (p.206) Aqui, o aspecto neonaturalista quase
agride o estilo sutil e etéreo da primeira citação.
Dessa maneira, sem
fronteira a dividir as sensações, o romance provoca um desconcerto
no leitor, que embarca na obra seguindo os passos de Lídia do Carmo
Ferreira, a protagonista, que, além de poetisa, é fundadora do MPLA
(Movimento Pela Libertação de Angola). Entretanto, ao longo dos
capítulos, encontramos dezenas de outras personagens que ganham
importância e se infiltram no assunto político. Sim, porque Estação
das chuvas é um livro político, e não apenas pelo tema, mas por ser
fragmentado e instável, cheio de oscilações - como a política o é.
Este manejo no
hibridismo estilístico parece ser uma marca de Agualusa, que em
O vendedor de passados (Rio de Janeiro: Gryphus, 2004)
inovou pela perspectiva narrativa de atribuir uma voz a uma osga
(lagartixa), pela poeticidade da linguagem e pela brincadeira entre
os limites da memória, do sonho e da realidade. Este último também é
um livro interessante como pano de fundo histórico e político de
Angola no século XX e como crítica universal aos governos e ao poder
da mídia de conduzir os fatos. Se percebemos marcas temáticas comuns
entre os livros deste escritor (que afinal não pode deixar de
perseguir os assuntos relativos à sua raiz angolana), também vemos
sua notável habilidade de diversificar o lingüístico. Assim,
constrói-se uma polifonia que, em última instância, abre espaço para
uma visão política irônica justamente por ser tão versátil.
[Tércia Montenegro é autora dos livros de contos O
Vendedor de Judas (Demócrito Rocha) e Linha Férrea (Lemos
Editorial).
Leia José Eduardo Agualusa
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