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Tércia Montenegro




Casulo literário


[in Jornal OPOVO, 09.06.2005]




A escritora Tércia Montenegro é a palestrante convidada da segunda edição do projeto Encontros V&A, voltado para debates com pesquisadores da cultura e artistas. O Encontros V&A está pautado para o próximo dia 14, no Centro Cultural Banco do Nordeste

 

Confessa misantropia. A filha de professores sempre preferiu livros e bichos a pessoas. ''O ser humano sempre me interessou muito como 'material de estudo', mas no sentido bem pessimista. Apesar de que às vezes me surpreendo com uma bondade inesperada de alguém, na maioria dos casos, percebo o inverso, a capacidade inata do ser humano para a maldade, a vingança e a sordidez - e escrevo sobre isso'', dispara a escritora Tércia Montenegro, uma confessa 'criatura solitária' . Autora de dois livros de contos - O Vendedor de Judas e Linha Férrea, este premiado pela Revista Cult e Biblioteca Nacional -, a palestrante convidada do projeto Encontros Vida & Arte, marcado para o próximo dia 14, às 16 horas, no Centro Cultural Banco do Nordeste, vem tratar sobre a relação entre cotidiano e literatura.

''O tempo é o pior vilão. Gostaria de ter pelo menos três vidas mas acabo me dedicando ao trabalho, estudo e escrita de modo quase integral. Até meu lazer envolve uma dessas atividades. E como busco sempre silêncio e disciplina para produzir, acabo me enfiando mesmo num casulo. Isso às vezes me prejudica na hora de escrever, pois acho que a literatura tem de nascer antes da observação do que da imaginação. Se vejo pouco o mundo, tenho poucas experiências 'reais', escrevo pouco. Então, de vez em quando me forço a fazer uma viagem, algo do tipo, para alargar os horizontes'', segreda, colocando o próprio processo de criação na berlinda. Ao escrever, a memória surge involuntária. ''No dia-a-dia sou esquecida: tenho de anotar tudo, cada obrigação diária. Mas na hora em que uma história está nascendo, de repente, sem planejamento algum, recordo uma imagem, um rosto, uma frase que me impressionou, sem que eu tivesse feito anotações ou coisa parecida para 'aproveitar' na escrita. É uma espécie de milagre que o processo criador nos dê exatamente aquilo de que precisamos, para compor um texto, e na hora exata'', ilustra.

Mestra em Literatura aos 25 anos, Tércia encontra no ambiente acadêmico o prazer do estudo. ''Ainda hoje, acho que fazer pesquisa às vezes me dá mais prazer do que produzir ficção. Mas é engraçado como consigo separar as coisas. Antigamente eu achava que, se eu adquirisse um conhecimento muito técnico sobre o texto literário, perderia o encanto da leitura pela leitura: só conseguiria ler com olhos de analista. Isso jamais aconteceu. Quando tenho de fazer uma pesquisa, faço várias leituras, mas a primeira sempre é um momento de descobertas, descompromissado e inocente. Depois é que entra a teoria, a parte mais 'fria' do processo'', revela. Para ela, a escrita literária é pura catarse. ''Como toda arte, a literatura assume desde a inocente função do entretenimento até o importante papel da reflexão capaz de mudar as mentes. Uma das coisas que mais me deixa chocada é quando percebo que para muitas pessoas a arte é uma coisa dispensável, ou ainda pior, desconhecida'', diz.

Contista por excelência, mas com um romance guardado na gaveta, além de alguns 'renegados poemas' e uma história para adolescentes a caminho. ''Escrevi mais contos porque sempre li mais contos: é uma questão de absorção. Quase todos os meus contos surgiram de situações ou de personagens que vi nas ruas desta cidade, então existe até um pouco de gratidão nessa história, quer dizer, já pensei em fazer uma pós-graduação em outro estado ou mesmo para batalhar um espaço literário nacional -, mas embora não queira me prender a nenhum filão regionalista, acho que a cultura de nossa terra é riquíssima, e tenho principalmente um apego muito grande por Fortaleza, sua paisagem, seus contrastes, inclusive'', confessa. Antes da palestra de Tércia, o grupo de teatro Cabauêba encena a adaptação para palco dos contos de seu mais novo livro, O resto do teu corpo no aquário, ainda no prelo e com publicação revista para junho. ''Vendo os ensaios e a interpretação, a nova linguagem que deram, as novas histórias que fizeram, cheguei a criar outros contos. É uma sensação única, a de ver seu personagem criar vida num ator'', endossa.


Livros publicados:

O Vendedor de Judas (contos). Fortaleza: Programa Editorial Casa José de Alencar / Coleção Alagadiço Novo, 1998; 2a ed. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2003.

Linha Férrea (contos). São Paulo: Lemos Editorial, 2001.

Oliveira Paiva (ensaio biográfico). Fortaleza: Demócrito Rocha, Coleção Terra Bárbara, 2003.

 

 

 

 

01/07/2005