Tércia Montenegro
O conto - Uma prática do caos?
Uma recente publicação (Caos Portátil
– um almanaque de contos) enseja, a partir do Ceará, certo
questionamento sobre as fronteiras dos gêneros – debate que, apesar
de envelhecido, continua produtivo. Não que se pretenda, com isso,
nada além da saudável provocação de idéias, que geralmente motiva a
criatividade. Assim, sem pensar em conceitos firmados ou arcaísmos
sobre o bem escrever, entramos em contato com o que se faz
contemporaneamente em narrativas breves.
A citada coletânea reúne textos de autores já bastante conhecidos ao
lado da produção de escritores inéditos em livro. No primeiro caso,
temos o exemplo de Caio Porfírio Carneiro, que, no poder de síntese
do conto “Ele”, estabelece um ritmo que sutilmente avança em
narrativa, sugerindo mais do que explicitando. Nilto Maciel, nessa
mesma linha dos veteranos, apresenta sua boa prosa de “Paisagem
celeste”, que traz uma linguagem sóbria, mas surpreendente pelo
final brusco e criativo. Airton Monte também é facilmente
reconhecido em “O guitarrista espanhol” por seus intertextos
característicos e por uma prosa que muda do lírico para o
escatológico vertiginosamente. Pedro Salgueiro mantém seu estilo
sucinto, mas, em “Mecanismo”, apela para um descritivismo mais
minucioso e cinematográfico. Este mesmo aspecto é desenvolvido por
Rodrigo Marques, jovem autor que, em “O Quarto”, constrói uma
perspectiva envolvente, que inclui o leitor e de fato impressiona.
Outros bons autores podem ser lidos com a grata sensação de
reencontrarmos temas e linguagens que os caracterizam. Assim
acontece com Cândido Rolim, em seu texto curto e monolítico como uma
inscrição tumular, mas profundo em ironia. Assim com Jorge Pieiro,
no seu clima de pesadelo e angústia concentrada; com o “flash” de
Dimas Carvalho, que é como uma rápida facada; com o surreal e mítico
de Joan Edesson. Carlos Emílio Corrêa Lima também se mantém fiel à
sua prosa inclassificável, aos lampejos de um ritmo que não se pode
comentar, mas apenas sentir, como em: “Vê, longe? Na altura, no
oriente da vidraça? Fecham as praças. Zonas interditas. Áreas
segregadas de chuvas demoradas. Ele passa. Eis que habita. Sabe-se
que: movem-se as louças, para as carruagens seguirem os rastros de
outras carruagens. Estamos quase nos exaurindo seguindo suas
marcas.”
Os escritores inéditos em livro surpreendem pela qualidade dos
contos. É de se ressaltar o movimento tenso do “Pedrada”, de Luís
Marcus da Silva, e a excelente história de Carmélia Aragão, assim
como o texto de Diana Melo, que, de tão bom, merecia ser mais
extenso, para dar uma vivência maior às personagens. Carlos Nóbrega,
talentosíssimo no verso, não faz feio na prosa, recuperando, em
alguns momentos do seu conto sobre desalento e solidão, a
poeticidade que é seu forte. Seria necessário ainda destacar Júlio
Lira, com seu lirismo (o que não é um trocadilho, mas uma presença
de estilo) e os inventivos contos de Aldir Brasil Jr., Luciano
Bonfim e Inez Figueredo.
Algumas histórias se destacam pela fronteira-limite com o gênero
conto, a começar com Nuno Gonçalves, outro ótimo escritor, que
assume um tom maravilhoso em sua narrativa. Pedro Henrique Saraiva
Leão constrói um texto quase anedótico pelo regionalismo
lingüístico, mas trágico pelo final. Sérgio Telles dá prioridade à
descrição, em seu “Mesa”, quase se abstendo da narratividade. Ruy
Vasconcelos tem seu texto disposto na forma de versos, e o conto do
excelente Ronaldo Correia de Brito pode muito bem ser lido como um
roteiro teatral, com o discurso direto assumindo a função de
apresentar as personagens e expor seu passado, e a voz do narrador
se apresentando como instrução de cena, à semelhança de didascálias.
Com tantos exemplos diversos de ficções que se tecem atualmente,
Caos Portátil é um veículo de extrema valia não apenas para a
divulgação literária, mas para a reflexão sobre as formas de (des)fazer
histórias e incursionar por gêneros. Com título inspirado por texto
de Cortázar e concepção gráfica adequada ao sentimento de múltiplas
tendências que se unem num volume que agrada a todos os gostos, esta
publicação confirma a fertilidade das letras cearenses. Esperamos,
porém, que não se restrinja a este círculo, que tenha outras muitas
edições, com espaço inclusive para autores de diversos lugares, para
que se intensifique o diálogo cada vez mais intenso com esse espaço
do caos que, afinal, é o espaço típico da criação.
* Autora dos livros de contos O Vendedor de Judas
(2a ed., Fortaleza: Demócrito Rocha), Linha Férrea (São
Paulo: Lemos Editorial) e O resto de teu corpo no aquário
(Fortaleza: Secult). E-mail: tercialemos@yahoo.com.br
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