Tércia Montenegro
Uma história secreta
Agora que estamos envelhecendo,
Ismália, posso ter tua mão entre meus dedos enquanto penso que
talvez seja improvável que me abandones, porque afinal continuo
gordo e lento, mas fiquei velho e ninguém repara mais em mim, e tu
também – embora tenhas conservado as medidas de solteira – perdeste
o viço da pele; agora que provavelmente muitos homens já não te
olham com desejo, posso ficar mais tranqüilo. É verdade, Ismália,
que se torna difícil acostumar-me com o sossego, quando por vinte
anos sofri, esperando que cada dia fosse o último, que me dissesses
Estou farta, e batesses a porta sem mesmo levar tuas coisas. Nem
quando estiveste grávida fiquei certo da tua permanência em minha
casa; pelo contrário, a cada enjôo ou irritação sentia-me culpado e
te levava a passeios, e te achava aborrecida comigo, pensando no que
eu poderia ter feito de errado, e depois do parto, quando esperei
que ficasses mais gorda, recuperaste em pouco mais de um mês a
silhueta, apenas teus seios cresceram, e isso te fez ainda mais
bonita. Bonita, apesar do ódio que sentias ao acordar com o choro da
criança querendo mamar – muitas vezes temi que sufocasses o menino,
tão enraivecida acordavas, a camisola mostrando um seio, os cabelos
desalinhados. Quando teu filho se acidentou, aos quatro anos de
idade, e não voltou do hospital, tive certeza de que partirias. A
morte da criança era motivo suficiente para que dissesses que nada
mais te ligava a mim (e eu poderia responder que o menino nunca fora
uma ligação entre nós, pois não era meu filho), mas nem assim me
deixaste.
Vejo os casais andando pela calçada deste parque, e posso
identificar pelo brilho dos olhos os felizes: é algo que nunca
tivemos, Ismália, essa cintilação na vista, certo rubor nas faces,
um trejeito nos lábios que anuncia um sorriso sem realizá-lo. Entre
nós dois, tudo foi mais simples (esse é um modo de dizer): desde
quando nos conhecemos na escola, tu debochando de mim com tuas
colegas, e eu sempre parado em algum canto, estátua de flacidez e
camadas adiposas, tu adolescente me perguntando se eu era virgem, em
meio à risada das outras meninas, e teu cabelo preso em
rabo-de-cavalo, e tua saia azul pregueada, a mão cobrindo o riso,
enquanto eu me sentia inflamar, um fogo em cócegas pelo rosto.
Depois, na faculdade, quando as colegas já eram outras e meu peso
tinha aumentado em pelo menos dez quilos, tu voltaste a me procurar.
Nenhuma lembrança da investida passada, nenhum pedido de desculpas
atrasado: esqueceras completamente a piada, o gordo virgem que
sentava perto da cantina, com um sanduíche na mão. Na faculdade, eu
era um aluno de boas médias e óculos pesados, que poderia te ajudar
com a matéria. E foi assim que um dia ficamos em tua casa a tarde
inteira; eu disposto a te ensinar Kierkegaard, e tu me espiando
demoradamente, até que perguntaste se eu não queria ver-te nua.
Foi justamente aqui, neste parque onde passei tantos fins de semana
da infância, que nunca aprendi a andar de bicicleta. Aos primeiros
arranhões no joelho e quedas em laterais derrapagens, minha mãe me
proibiu o veículo, e também me interditou o labirinto – um brinquedo
que era feito uma marquise prolongada de canos que formavam
quadrados e retângulos de tamanhos diversos, e o divertido era subir
e balançar-se num dos canos mais altos (havia meninos que faziam
isto com os pés), mas como minha mãe me impediu de subir ali,
contentei-me com a gangorra, quando conseguia encontrar alguém
próximo do meu peso, e também buscava o gira-gira, mas os outros
garotos reclamavam quando eu aparecia, porque era preciso força nos
pés, e eu quase sempre parava de correr em poucos minutos, ocasião
em que o brinquedo estancava.
Não sabes quanta falta me fez não saber andar de bicicleta, Ismália;
digo-te isso enquanto fitamos as crianças em sinuosidades de roda
pelo calçamento. Talvez eu pudesse ter criado alguma destreza nas
pernas, e tu concordas: bicicleta é o esporte adequado para a
tonicidade muscular. Largaste-me os dedos, discretamente – usas
óculos escuros, e não posso identificar para onde tua visão se
estende, mas suponho que ainda fitas as crianças, é para aquela
direção que tua cabeça está voltada, e provavelmente recordas o
filho que hoje teria dezoito anos, que rapaz seria – um misto de
teus cabelos negros e ondeados, com boa altura, que tu também és
alta (tanto quanto eu, mas pareces mais, porque és magra), tórax
enxuto e sem pêlos, uma possível tatuagem no braço. Em nada este
jovem se pareceria comigo, Ismália, isso eu sei, mas nunca te disse,
e apesar disso chorei quando a criança morreu, esteja certa; perdi-o
como quem perde um filho, e pouco faltou para que fosse meu –
bastava que tivesse sido concebido uns meses antes, ou que não
estivesses viajando segundo o calendário da concepção, ou que o
parto tivesse sido mesmo prematuro. Mas eu te perdôo, Ismália, o meu
silêncio é uma prova desse perdão. Se quisesse te largar por isso,
teria desaparecido durante tua gravidez, mas pelo contrário, estava
era desesperado em minha apatia, apavorado de que quisesses ficar
com o verdadeiro pai do menino, aquele homem que encontraste nos
dois meses que durou tua viagem para Santa Fé, pouco antes de
concluíres a faculdade.
Hoje, já não me importam os esportes. Chega-se a uma certa idade, e
o melhor é aceitar o corpo com que se vai morrer. Serei isto até
quando durar: uma forma arredondada de barril, uma massa cheia e
marcada pelas sucessivas pregas no abdome, culotes na cintura,
peitos maiores que os das meninas de doze anos. Ismália, tu também
dificilmente mudarás; talvez algumas rugas te sejam acrescidas,
finos riscos ao lado dos olhos e no pescoço. Mas permanecerás com
esta postura reta, sentada com os músculos rígidos da perna direita
dobrada sobre a outra. Tomas uma água mineral; daqui a pouco dirás
que é tempo de voltarmos. Concordo, mas enquanto o sol não se põe
num borrão vermelho e laranja refletido nas lentes de espelho negro
dos teus óculos, deixa que te fale mais um pouco.
Havia outros brinquedos – gangorra, escorregador, pula-cordas – mas
eu preferia ficar observando as demais crianças se divertindo. De
certo modo, nunca me senti de fato igual a elas: era como se já
trouxesse em mim, desde a mais tenra idade, um ranço estranho de
madurez, certa desilusão precoce que meu peso reforçava. A vida não
era leve e divertida como os meninos pensam; havia esforço, cansaço
e monotonia no simples ato de andar, e os prazeres aconteciam
somente em poucos instantes, com um paladar adocicado e um estômago
cheio. Depois, Ismália, veio minha paixão pelos estudos, vieram-me
os livros em tomos grossos que eu escolhia nas tardes perdidas da
biblioteca, e lembro a dificuldade com que fitava, da calçada, os
lances de escada que me levariam ao setor de obras raras, e o
heroísmo com que me conformava pelo fato de o elevador estar sempre
pifado, pouco antes da disposição tomada com um só fôlego para o
primeiro dobrar de joelhos arquejante.
Ao tempo em que tu rias do aspecto caricatural de determinados
professores, e passavas de mão na boca sufocando o riso, ou puxando
pelos dedos a farda de uma colega, para apontar-lhe qualquer coisa
que imediatamente originava gargalhadas incontidas, eu preferia me
esconder por trás das mesas de leitura, copiando trechos
interessantes, preenchendo páginas e páginas de cadernos que foram
se empilhando na desordem de assuntos rabiscados: filosofia,
história das religiões, semântica, etnologia, crítica literária e
psicolingüística, dentre outros temas. Quando te mudaste para minha
casa, recolhi todo o material antigo, em que havia também várias
revistas sobre astronomia e genética, dentro de caixas lacradas e
etiquetadas por ano. Desde esse tempo, ficaram lá, empoeirando-se
periodicamente, até que de férias em férias me disponho a abrir o
quartinho de despejo e deparo com aquelas colunas de papelão.
Limito-me a passar-lhes o espanador, não sem uma secreta emoção de
limpar algo como sarcófagos que podem esconder múmias esfareladas ou
verdadeiros tesouros. Adio a tarde em que me disporei a abrir cada
caixa como quem desvenda diários de namoradas esquecidas, e suponho
que farei isso quando tu me deixares; será o meu antídoto contra a
solidão, ao menos por uns dias não pensarei que me abandonaste,
Ismália, enquanto revejo, com a surpresa de velhos que folheiam
álbuns, cada pedaço de minhas curiosidades intelectuais, artigos
renovados pela falta de memória, e isso me bastará como
entretenimento.
Mas se não me deixares, Ismália, se, como penso, agora a tendência
seja de que fiques mesmo comigo, então conservarei as caixas
intactas como um segredo oculto que outras pessoas depois de mim
verão como lixo, e pobres dos cadernos e artigos, terão o destino
incerto dos caminhões que passam sempre às onze da noite, com dois
ou três lixeiros pendurados na traseira; serão embaladas em sacos as
revistas de data remota, e suas palavras ganharão o vento, quem
sabe, em fragmentos dispersos de notícias. Por essa época, gostaria
de dizer que eu também viajaria pela brisa, jogado ao mar em cinzas,
e tu me espalharias os restos sobre as ondas, do alto do mirante da
ponte metálica, mas não posso incorrer nessa poeticidade, Ismália:
sabes que não suporto a idéia de ser cremado; não sei quanto tempo
demoraria essa aflição póstuma para que o fogo me dissolva todas as
gorduras; não posso admitir-me reduzido a um saquinho leitoso ou
urna que se coloca como vaso decorativo na estante da sala. É
preferível entregar-me à umidade da terra e ao progressivo
emagrecimento pela digestão dos vermes – darei este peso extra aos
coveiros que se encarregarem de me transportar o caixão __ até
porque, Ismália, bem sei que tu não me levarias em cinzas para o
mar. Distraída como és, esquecerias meus restos em algum recipiente
descuidado que uma empregada abriria certa manhã, tomando aquele
resíduo como poeira acumulada, do tipo da que se varre para sob o
tapete, e então meu destino, Ismália, seria mais incerto que o dos
cadernos e revistas. Prefiro uma residência fixa no cemitério, mesmo
sabendo que nunca irás me visitar, nunca foste ver nem mesmo o teu
filho.
Às vezes penso que deveríamos ter tido outra criança, essa presença
de cheiros mornos e bochechas de maçã – algo que poderia nos
distrair em muitas noites mudas, quando eu sento minha paciência
diante da televisão e tu inventas miúdas limpezas na cozinha. Então
ouviríamos uma voz de apito a perguntar-nos qualquer coisa, e o
pequeno poderia vir sentar-se nos meus joelhos, como fazia o teu
filho, meses antes de morrer. Contaríamos um ao outro as proezas do
menino em comum, lembrando a época desconhecida em que os pais
fitaram nossa própria infância, e talvez um misto de orgulho e
tristeza nos invadisse – tristeza, sim, pelo fato de havermos
cumprido a missão infalível das leis que regem o mundo: acrescentar
outra geração às gerações que já se ultrapassam. Mas agora, Ismália,
que não fiz o meu papel de homem, e que tu fizeste as vezes de mãe
incompleta, não temos mais tempo de pensar em filhos. De certo modo,
a morte do menino emperrou-nos a iniciativa, e talvez tu não
quisesses o produto de um obeso, provavelmente era-te muito custoso
imaginar-se fecundada por uma semente disforme, e não querias
envolver-te dessa forma comigo. Quanto a mim, nunca te falei no
assunto porque supunha que engravidarias quando quisesses, e na
feita em que partiste por dois dias inteiros pensei mesmo que tinhas
decidido; soube que passaras as 48 horas com o argentino, pai da
primeira criança, e adivinhei tua intenção de repetir a tentativa
com o mesmo sêmen. Embora tenhas dito que se tratava de uma viagem
de emergência para acompanhar os funerais de tua mãe, saiba, Ismália,
que não acreditei. Nada respondi, e o meu silêncio era um novo
perdão: procuravas o argentino, ele possivelmente numa breve estada
na cidade, e tu sem querer desperdiçar a chance de uma nova
fertilidade. Imaginava-te num quarto de motel de luz trêmula,
enquanto tu descrevias o enterro da matriarca, ainda com os olhos
vermelhos de lágrima, eu formulando justificativas de saudade para
teu choro sincero e teu luto seguido, que atribuí ao fracasso do
óvulo, quando, no mês seguinte, tua regra novamente chegou.
Naquela noite em que não te encontrei em casa, mas vi como
substituto um bilhete rabiscado e preso numa das pontas por um ímã
na geladeira, adivinhei a verdade. Confesso que tive raiva, Ismália;
o meu primeiro ímpeto foi despedaçar-te as coisas, rasgar-te os
vestidos e amassar teus sapatos em toneladas de fúria e desespero,
mas contive-me. Resolvi dar-te um troco, pequena vingança que mais
tarde te confessaria, quando viesses me contar detalhes daquelas
duas noites de amor. Aprontei-me e fui para um local que só conhecia
de menção dos colegas de escritório; cheguei tremendo no pânico de
ver-me sozinho e estupidamente gordo, entre tantos homens magros,
que sentavam às mesas acompanhados de mulheres seminuas – uns
bebendo entre risos e fumaças, outros mais sérios, naquela
embriaguez que distorce os sorrisos. Acomodei-me perto do palco,
onde, entre fachos de néon, uma jovem se contorcia agarrada a uma
barra de ferro, e aos poucos percebi que a cada giro para a
esquerda, feito ao ritmo das pulsações da música, uma peça de roupa
caía no chão. Senti um arrepio nauseante; tinha acabado de rejeitar
qualquer bebida que a garçonete (uma loira de sutiã transparente) me
oferecia, estava a ponto de vomitar e a meio de uma ereção, sem
conseguir despregar os olhos das formas curvas, elásticas, da jovem,
e a cada rebolado e volta de nádegas e seios eu me via puxado pelos
nervos, pinçado nas extremidades por câimbras de estrelas. Então
apareceu a mulher, uma ruiva de boca quase preta pelo batom;
apareceu e foi sentando no meu colo, um cigarro aceso entre as unhas
postiças, e os longos cílios a tocarem-me o rosto. Faltava pouco
para que me corresse a mão pelas coxas, e eu naquele estado deixaria
tudo só pelo anseio de livrar-me da agonia, agora transformada em
palpitações e suores de febre – faltava pouco, e teria acontecido,
não fosse o cigarro. O cheiro mentolado me agarrou pela garganta em
acessos de tosse, e num instantâneo todas as partes de meu corpo
voltaram às dimensões antigas de moleza, a ruiva me largava com um
olhar de pestanas raivosas, e eu tentava recuperar meu fôlego entre
respiros de náufrago e vermelhidões de alergia. Quando consegui me
recompor, a jovem do palco estava completamente nua, mas eu já
pensava em voltar para casa.
Não conto isso ainda hoje, Ismália, porque, ao contrário do que eu
supus, nesses anos todos não confessaste tua traição, e fiquei sem
motivo para oferecer-te represálias. Também não seria digno que te
descrevesse essa mínima vingança: olhar uma jovem despir-se e voltar
de calças ensopadas é quase como alugar um filme pornográfico, e
tantas vezes loquei as fitas sem que tu visses, quando saías para o
cabeleireiro, ou quando ias às compras; eu me sentava no sofá gasto
da sala, antecipadamente nu, para observar-me no ritual de dureza
progressiva, e nesses instantes não me achava tão gordo, e me
espantava mesmo de que na cama fosse difícil para mim encontrar-te,
preferindo sempre que viesses por cima, para me poupar balanços de
carne flácida. Não, Ismália, é preferível que continuemos cada qual
com seus segredos, sendo que no íntimo conheço todos os teus passos,
e sei justamente que suspeitaste de mim na época em que o garoto
morreu, porque um traumatismo craniano não é fácil de acontecer, mas
imagine um menino de quatro anos que teima em subir na escada que
leva ao sótão; está no sexto degrau, ou um pouco mais, quando se
desequilibra e cai de ponta cabeça – essa é a cena que mentalizo,
porque, como te disse, não vi nada, na hora estava dormindo e foi
assim que me encontraste, tu aos gritos de achar o menino feito um
trapo inerte sobre a grama, eu acordando à pressa, a única vez em
que durmo durante a tarde, tu bem sabes que normalmente não consigo.
Pois foi neste parque, Ismália, que nunca aprendi a andar de
bicicleta. Lamento as pernas ágeis que não tive, mas a essa altura
da vida só me resta o hábito, que se rumina dia a dia como um novelo
indigesto. Tu me pressionas o braço para avisar que está na hora de
voltarmos; percebo que quase nada conversamos, teus óculos escuros
já passaram as imagens do crepúsculo e agora estão de todo
anoitecidos. Vejo teu corpo ainda elegante levantar-se, o rosto não
mais voltado na direção das crianças. Tento sufocar um gemido para
acompanhar-te os passos, e no breve instante em que te contemplo de
costas penso que talvez não me abandones nunca, porque, apesar de
tudo, tu me amas afinal.
* Autora dos livros de contos O Vendedor de Judas (2a
ed., Fortaleza: Demócrito Rocha), Linha Férrea (São Paulo: Lemos
Editorial) e O resto de teu corpo no aquário (Fortaleza: Secult).
E-mail: tercialemos@yahoo.com.br
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