Cândido Rolim
A literatura do trancelim
É fácil falar. é fácil falar de
literatura, é fácil falar de literatura já pronta. É fácil falar de
literatura já pronta com fios luminosos de linguagem pendentes sobre
a memória, testemunhos de um ser que se lambuzou de barro, imaginou
e desviou-se depois do esquecimento para nos dar o dízimo de sua
polimorfia através de relatos mínimos (fragmas). Aí surge o Caos
portátil, livro mais novo do escritor Jorge Pieiro (Edições Letra e
Música, Fortaleza, 1999), um punhado de textos curtos, contemas,
coisas vindas das experiências fragmentárias do sujeito.
Toda arte é do ontem, isto é, do
nunca. Por isso, após perder suas datas, a literatura de hoje é a
arte do impasse. E foi desse nó que, após algumas trocas de idéias,
passei a conviver com os textos do JP, num momento grave em que a
quatro mil quilômetros de distância nos perguntávamos: o que
relatar? Qual o texto possível para o hoje? Qual a escritura
razoável para o homem que mastiga rações de hieróglifos azuis em
casa e dentro do ônibus? Que pode dizer o escritor de hoje?
Indagações já grisalhas, é verdade, que já assaltavam René Char
quando indaga: que pássaro cantará numa ramagem de perguntas? Como a
resposta nunca veio por inteiro, encontramos o verbo “fazer” já
coberto de poeira.
Disso tudo nasceu o fragma, unidade
mínima de fluição entre conto e poema, zona grízea entre luz e
sombra, entre água e água. Fragma, unidade fractal de certas
oralidades, relatos que, caso deixemos, tomam uma vida inteira para
abarcar/narrar um simples fragmento de vida.
E foi com essa ferramenta híbrida que
JP seguiu publicando seus textos até chegar ao Caos portátil, uma
espécie de suma do fragmento, bolsa de assombros mínimos e de
pequenas mitologias delirantes.
É só quando o homem é surpreendido por
esses mistérios portáteis que ele passa a rejeitar os bons serviços
da pertinência. É com essa argamassa que JP lida. É nesse campo que
Jorge Pieiro perambula e brinca, fazendo trancelim com suas
entidades avoengas. Influências? Diria várias e boas: Guimarães
Rosa, Manoel de Barros e outros contadores de assombro.
Já houve quem enquadrasse a literatura
de JP na vertente surrealista. Acho pouco. Não por deficiência
daquele estilo que, na opinião de Drummond, seria o mais indicado a
cruzar o século, ainda respirando. Mas pela polimorfia de seus
relatos, pela forma com que percorre os labirintos oníricos e
manipula notícias caídas dos jornais, surrupiando a saborosa
oralidade das esquinas e da meninice, enfim, eis um texto inquieto,
respirante, novo.
O autor segue um dos mais importantes
mandamentos ditados de viés pelo Italo Calvino para a arte de hoje:
a leveza nos seus contemas se verifica uma ausência de hierarquia de
palavras, de nomes, de vidas, de relatadores. É essa a técnica do
farejador de mistérios, dando motivos translúcidos à pedra e vida à
máscara (casualmente um dos signos mais encontradiços na obra). Em
seu texto, Pieiro não faz contorções; faz trancelim. Propositalmente
se amiúda para catar pequenas transformações dos monturos, tipo: “O
senhor é muito estranho... Sou não. Sou velho. Apenas isso.”
Enfim, o autor expõe e sugere, provoca
o mergulho. Se não entenderam (e quem disse que a literatura serve
para tanto?), ele faz como o grilo da página 15 (“O homem da
história”): emudece para quem desiste de escutá-lo, não por acaso
nos informa em outra obra sua: “insólito, o fragmento aniquila a
unidade comum apropriada pelo senso. Criadas pelo próprio autor, sem
consultas ao imponderável. É verdade que às vezes o autor peca por
impor ao leitor certas estranhezas e epítetos às figuras por ele
criadas, de danações de bolso. Exemplo disto, veja-se o “à nau do
velho lobo-do-rio” (pg. 11), “o draga e o dragão” (pg.13) e outros
textos em que a gratuidade justifica o credo do autor de que poesia
não é uma tragédia. mas que autor não é um tirano?
Até o mais pacífico pai de família
cultiva um particularíssimo canteiro de coisas irrepetíveis e
assombrosas, pensando bem, o homem sério, cumpridor do seu dever,
vigia um jardim de entidades que só muito pouco coincidem com os
rostos saídos de sua parcimônia. Tenho que a imaginação (da natureza
do homem, diga-se) salva-o de danações terríveis, impertinentes.
Acessos e gritos devidos às reiteradas tarefas diurnas: andar, dar
bom dia, pagar o imposto, os escrutínios diários. Observe como
várias vezes ao dia esses felinos domésticos, como as nuvens,
adquirem uma ductilidade intrigante e proliferam por cima dos
móveis. Observe, por exemplo, um gato cercado de réstias. Como o seu
dorso se avoluma e as patas se multiplicam. Como seus olhos se
irisam, violentados por uma ubiquidade imposta pelo acaso. Observe
como uma bengala enche-se de fragrância a uma simples inclinação do
homem ao crepúsculo. Enfim, a casa é atapetada de minúsculos
mistérios. Vivemos em um mundo de escaninhos de onde a realidade
salta e a imaginação entra, permutando-se: de uma à outra tudo
existe. Há um mistério indevassável na mulher gorda que senta, no
jovem apaixonado que entra na jaula do tigre e inaugura um
holocausto de flores. No velho aposentado que senta-se na praça e
batiza provisoriamente as pessoas que vê, do surdo às bordas do
precipício de amar (episódios em contrapartida, elastece o
imaginário, e as concepções se desvinculam da cadeia formal do
pensamento.” (inquisições de um panapleu).
É também do autor a opinião de que
poesia não é só uma tragédia. Em torno disso temos mantido boas
discordâncias. Ultrapassado o cuidado de se abusar da linguagem,
seguindo um recado seiscentista de Montaigne – quanta palavra para
falar da palavra! -, convém desconfiar do que está por trás do jogo
“inofensivo” da linguagem. Com efeito, JP é um artífice de
mitologias, fundador de um não-lugar para suas criaturas pastarem
couve de arco-íris – panaplo. E qual literatura não se pretende
fundadora de um jardim onde passeiem porcos comedores de pérolas?
O que importa, afinal, é a habilidade
com que o escritor nos insere em seu bestiário doméstico. Afinal “a
inteligência do leitor levanta por cima das páginas vazias uma
paisagem semântica móvel e acidentada” (Pierre Lévy), o que é o
virtual. O que conta é o que nos fala, e como fala, entidade ubíqua
e imaginativa, o homem, que desde que nasce nunca mais é o mesmo.
Voltamos, pois, a outro impasse. A
literatura, por ser criação, não deve deixar indícios de seus
propósitos estéticos. E for jogo, não se mostrar como jogo. Não deve
deixar rastro de seu trancelim, ainda que de seus artifícios resulte
seu encanto e sua sobrevida. O texto me parece mais forte quando
através de seus corais, nuvens, filtros e espelhos, a vida é que
resulte em artifício. A poesia não é só uma tragédia, costuma dizer
o autor. Sim, mas não há tragédia maior para a linguagem do que a
palavra exilada de seu peso mundano. Pela linguagem o homem morre.
“Somos seres de linguagem” (Lévy) e isto também é uma tragédia.
Morremos pela voz.
Leia a obra de Jorge Pieiro
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