Francisco Miguel de Moura (*)
Castro Alves e a poesia dramática
1. As razões
Se não estou
muito enganado, ao empreender uma análise em bloco da poesia
dramática de Castro Alves, faço um trabalho pioneiro. Uma fonte
autorizada é a Pequena Bibliografia Crítica da Literatura
Brasileira, de Otto Maria Carpeaux, onde não encontrei nenhum
trabalho dessa natureza.(1)
Com relação à
prosa dramática de Gonzaga ou A Revolução de Minas,
encenada em 1867 mas só publicado em 1875, tão elogiada por José de
Alencar e Machado de Assis
(2), já existem muitos estudos. Assim,
dispensar-me-ia de fazer-lhe referência..
O fato que me
motivou a escolha de A Cachoeira de Paulo Afonso foi o ser este um
poema esquecido pela crítica, para não dizer rejeitado. Mas, no
nosso entender, tão importante o é, e até mais complexo, quanto
«Navio Negreiro» e «Vozes d'África», lidos, recitados, estudados,
reproduzidos e dissecados por aí afora, até a quase exaustão, estes
sim, conforme teorizou Edgar Allan Poe, portadores de emoção intensa
mas breves, e por isto mesmo mais poemas do que peças teatrais.(3)
2. A epígrafe
Em A
Cachoeira..., poema composto de 33 peças que se lêem também como
independentes, com medidas, ritmos e tamanhos diversificados,
somando ao todo 1.271 versos, traz epígrafe de H. Heine, em francês.
Apresentamo-la, aqui, em tradução de Marisa Lajolo e Samira
Campedelli:
«Não sei
realmente se terei merecido que um dia depositem uma coroa de louros
sobre o meu caixão. A poesia, seja qual for o meu amor por ela,
sempre foi para mim apenas um meio consagrado a um fim santo. Jamais
atribuí um grande preço à glória de meus poemas e pouco me importa
que os elogiem ou critiquem. Mas será uma espada que devereis
colocar sobre meu túmulo, pois fui um bravo soldado na guerra de
libertação da humanidade.»
(4)
Concordo com
Marisa Lajolo e Samira Campedelli, no seu livro «Castro Alves»,
quando afirmam que a epígrafe de Castro Alves define muito bem o
objetivo da obra. Só acrescentaria que a finalidade das epígrafes
talvez seja captar as subliminaridades do autor, e as de Castro
Alves nunca foram tão estudadas quanto merecem. Ele gostava muito de
usá-las e em Espumas Flutuantes, 1870, seu único livro
publicado em vida, usa-as em 25 dos 54 poemas, sendo que 4 deles -
«Mocidade e Morte», «Sub Tegmine Fagi», «Aves de Arribação» e «É
Tarde» - são duplamente epigrafados. Num cômputo geral, daria
epígrafes para mais da metade dos poemas do livro.
3. Características
do estilo dramático
Assim, sem
favor, Castro Alves pôde repetir com Heine, ««j'ai été un brave
soldat dans la guerre de délivrance de l'humanité», fazendo de
sua poesia uma arma contra a escravidão negra. Mas não somente isto:
também de libertação dos sentimentos e das angústias, na guerra pela
humanização do homem brasileiro. Saliente-se que, embora o «Poeta
dos Escravos» não fizesse poesia pela poesia, conseguiu elevar-se
tão alto na forma quanto aqueles que mais alto se elevaram no seu
tempo e até para além de sua época, pois conseguiu antecipações
próprias dos grandes criadores. De romântico da última fase, tende
para a poesia realista, especialmente em A Cachoeira... como
que anunciando a nova escola. E é concretista cem anos antes,
em «O Baile na Flor», que se apresenta qual uma flor em botão, e no
«Despertar para Morrer», cujos versos figuram as quedas d'água da
cachoeira. Nada de assombrar, pois, como profere Eugênio Gomes,
«a imaginação criadora de Castro Alves correspondia inteiramente à
que T. Ribot qualifica de plástica, imaginação exterior, na qual
costumam prevalecer as associações de caráter objetivo, tornando-se
por isso mesmo mais atenta às coisas do espaço visível.»
(5)
Não estão aí,
por acaso, características do estilo dramático?
Chamamos a
atenção dos críticos e dos teatrólogos para outros aspectos dos
versos de Antônio Frederico de Castro Alves, pois o tom
declamatório, inflamado, em si, já é um aspecto da dramaticidade,
pensando abrangentemente com Emil Staiger que «qualquer obra
poética participa de todos os gêneros, do mesmo modo que qualquer
comunicação linguística, por mais primitiva que seja, envolve toda a
índole da língua, ou pelo menos baseia-se nela».
(6)
Na verdade,
quase não há poema de Castro Alves em que não se note seu desejo,
sua vontade de falar com alguém, mesmo que seja uma simples
invocação. Não se encontra praticamente o poeta falando consigo
mesmo, qual sucede aos demais líricos. Sua arte não era apenas para
ser lida, silenciosamente. É quase sempre dramática ou heróica,
quando não trágica. E é isto que o torna mais comunicativo, popular
e amado. No poema A Cachoeira..., sob a capa de uma lírica da
natureza, da descrição das matas, duma exaltação da cascata de Paulo
Afonso e do São Francisco, acrescida da sua tônica de defesa dos
escravos, há um drama que termina em tragédia, onde é revelado o
amor de Lucas por Maria, ambos escravos.
Outra observação
de Emil Staiger, nos Conceitos Fundamentais da Poética,
pertinente para nosso estudo: «O céu azul sobre a cena ou a
arquitetura pomposa são os únicos a adaptarem-se ao estilo patético
de um Sófocles ou de um Corneille. Somente em espaços assim abertos
e livres o autor ousaria captar acontecimentos ao mesmo tempo
simples e de grande força, que conseguiram empolgar todo um povo ou
toda uma sociedade.»
(7)
4. Outras
características de “A Cachoeira...”
Neste
particular, A Cachoeira... segue bem a lição dos clássicos,
consideradas as suas adaptações românticas de construção e ritmo,
como veremos na análise e nas citações que a acompanham.
«A Tarde» é um poema soberbo. São 7 estrofes decassílabas,
camonianas, refertas de beleza estética, com predominância da
personificação ou prosopopéia («a tarde se debruça, lá da crista
das serras mais remotas», «o canto da araponga acorda os ecos...»,
«cardos rumorejam como um abrir de bocas inspiradas»). O poeta, como
sempre, exagera: «E a pedra... a flor... as selvas... os condores /
Gaguejam... falam... cantam... seus amores.»
No capítulo das
metáforas («a hora meiga da tarde», transforma-se em
donzela», «estrela em gota de banho», construindo uma das
mais singulares, naquele verso já citado por muitos críticos: «as
tranças mulheris da granadilha».
«A Tarde» é o
intróito, mas esse preâmbulo se estende até o poema «A Senzala»,
apresentando o espaço, o tempo, seus dois heróis e mais alguns
personagens inspirados em coisas da natureza e fatos da cultura. Em
determinado momento, Lucas dirige-se à cabana da noiva e não na
encontrando, pressente uma desgraça. Já antes, o poema «Na Margem»
traz falas de Maria com sua canoa: Voga, minha canoa! Voga ao
largo! / Deixa a praia onde a vaga morde os juncos, / Como na mata
os caitetus bravios... Mas, de repente, para finalizar, o poeta
destaca duas estrofes:
«Tu guardas algum segredo?...
Maria, estais a chorar!
Onde vais? Por que assim foges
Rio abaixo a deslizar?
Pedra, não tens o teu musgo?
Não tens um favônio - flor?
Estrela - não tens um lago?
Mulher - não tens um amor?»
Seria, me
parece, a voz da canoa, objeto que aqui adquire status
de personagem, visto que o ritmo do poema cai do decassílabo para a
redondilha maior, nas duas quadras finais, como acabamos de sentir.
O poema «A
Senzala», descritivo, lírico, mimoso mesmo, como aquelas toadas do
sertão, apresenta o lenhador, que - para a cabana da gentil Maria
/ com que alegria a suspirar marchou, - personagem que é o
próprio Lucas, - e segue a mesma marcha decassílaba, o mesmo
diapasão: Aqui n' aurora, abandonando os ninhos, / Os passarinhos
vêm pedir-lhe pão; / Pousam-lhe alegres nos cabelos bastos, / Nos
seios castos, na pequena mão. Também, nos versos finais, o poeta
muda de ritmo e rumo, anunciando a entrada em cena do narrador:
Eis o painel encantado, / Que eu quis pintar mas não pude.../ Lucas
melhor o traçara / Na canção suave e rude...
Primeiro, Lucas
entristece por causa do mau pressentimento; adiante, alegra-se
vendo o lar do seu amor... Depois, avista Maria vogando numa
canoa, rio abaixo. É uma canoa - ninho, depois «a canoa
encantada», que ganha uma poema só para si. Descendo o rio, a
canoa-ninho é símile sonora e perfeita, no final do poema «Diálogo
dos Ecos» - texto de grande movimento e dramaticidade. É aqui que o
poeta cria um interlocutor, quase no campo das ideações, do
subjetivo: o eco. Começa, então, no oitavo poema um princípio
de ação - é o desenvolvimento. «Diálogo dos Ecos» é longo, por isto
dele apresentamos pequena mostra:
E rugiu: «Vingança! guerra!
Pela flor, que me deixaste,
Pela cruz, em que rezaste,
E que teus prantos encerra!
Eu juro guerra de morte
A quem feriu desta sorte
O anjo puro da terra...
Vê como este braço é forte!
Vê como é rijo este ferro!
Meu golpe é certo... não erro.
Onde há sangue, sangue escorre!...
Vilão! Deste ferro e braço,
Nem a terra nem o espaço,
Nem mesmo Deus te socorre!!...»
E o eco responde: «Corre!»
Como o cão ele em torno o ar aspira,
Depois se
orientou;
Fareja as ervas... descobriu a pista
E rápido
marchou.
.......................................................
No entanto sobre as águas, que cintilam,
Como o dorso de enorme crocodilo,
Já manso e manso escoa-se a canoa;
Parecia assim vista - ao sol poente -
Esses ninhos, que o vento lança às águas,
E que na enchente vão boiando à toa!...
Lucas que era o
lenhador, agora nada: - É «o nadador» que se arroja ao
rio, em busca de sua noiva. O poeta mostra-o no meio das águas
furiosas, como um bravo e heróico defensor da vida, inocência e
pureza de Maria:
Tremeste? Não, qu'importa-te
Da correnteza o estrídulo?
Se ao longe vês teu ídolo,
Ao longe irás também...
Salta à garupa úmida
Deste corcel titânico...
Novo Mazeppa oceânico -
Além! além! além!...
Surpreendente
para a época, aqui o poeta inaugura uma série de rimas com palavras
esdrúxulas, acrescentando força incomum à ação. Há como que um
casamento perfeito entre o movimento do personagem e o acento
gramatical das palavras.
Lucas tenta
consolar Maria e convencê-la a contar-lhe o segredo. Ela responde
transtornada. Acontece, «No Barco», um idílio muito triste: -
Lucas! - Maria! murmuraram juntos.../ E a moça em pranto lhe caiu
nos braços. (...) «Maria, fala!» - «Que acordar sombrio / Murmura a
triste com um sorriso louco (...) Deixa-me! Deixa-me a vagar
perdida... / Tu! - parte! Volve para os lares teus. / Nada
perguntes... é um segredo horrível.../ Eu te amo ainda... mas agora
- adeus!»
5. Unidade e
dramaticidade do poema
O poema precisa
de muitas leituras. Há nele interferências líricas como o «O Baile
na Flor» e o «Crepúsculo Sertanejo», e até uma «Tirana» cantada por
Lucas. Mas boa parte de suas peças possuem liames como as árvores na
floresta, entre as quais citaremos algumas: 1 - A palavra «adeus» é
final de «No Barco» e começo do poema «Adeus», que vem em seguida; 2
- «História de um Crime», «Último Abraço», «Mãe Penitente» e
«Segredo», onde há continuidade narrativa, inclusive dois pontos no
fim do primeiro, por confirmação; 3 - «Mudo e Quedo», poema que se
segue a «Adeus», começa assim: E calado ficou... 4 - além do já
falado «mas» que inicia «A Cachoeira», ligando-o evidentemente a «O
São Francisco».
Sim, A
Cachoeira... precisa de leituras objetivas, críticas e poéticas.
Os teatrólogos também devem dele se aproximar, em busca de sua força
dramática. É possível que, na mão de um bom diretor, se torne o
maior espetáculo do gênero romântico, tendo por fundo o Brasil e sua
cultura, sua poesia e sua história, sua raça e sua gente, sua língua
e sua literatura.
Talvez ao acaso,
embora sentindo inicialmente o poema como descritivo, logo as
professoras Lajolo e Campedelli compreenderam a força da
dramaticidade de A Cachoeira... e anotaram: «Como que
acompanhando o aumento da tensão dramática do primeiro para o último
poema, a paisagem vai progressivamente escurecendo, de forma que o
cenário da morte coincide com a escuridão noturna, em belíssimo
contraste com a brancura das espumas da cachoeira.»
(8)
Para compreender
melhor a citação de Lajolo e Campedelli, é preciso saber um pouco do
poema «Loucura Divina». Ele está depois de «Despertar para o Morrer»
e antes de «À Beira do Abismo e do Infinito» cuja trindade de poemas
forma o desfecho de A Cachoeira...:
- «Não vês os panos d'água como alvejam
Nos penedos? Que gélido sudário
O rio nos
talhou!»
- «Veste-me o cetim branco do noivado...
Roupas alvas de prata... alventes dobras...
Veste-me!... Eu aqui estou!»
.................................................................
«As estrelas palpitam! - São as tochas!
Os rochedos murmuram!... - São os monges!
Reza um órgão nos céus!
Que incenso! - Os rolos que do abismo voam!
Que turíbulo enorme - Paulo Afonso!
Que sacerdote! - Deus...»
6. Imagética da
natureza no drama de Castro Alves
Sem dúvida, A
Cachoeira... é literatura romântica da melhor. Seus poemas
avançam no espaço e no tempo. São considerados modernos, hoje, desde
que colocados diante da definição de Ezra Pound: «Literatura é
linguagem carregada de significado» e «grande literatura é
simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau
possível.»
(9)
Poesia assim,
cheia de visões e vozes, de silêncio e música, de rumores quase
divinais, mas também de gritos e imprecações, chama a atenção do
leitor mais desatento. As imagens mentais se superpõem, as cores se
entrecruzam, a música é polifônica. Claro que antíteses, paradoxos,
hipérboles, pleonasmos e prosopopéias são as figuras mais
encontradas. Porém a símile, a apóstrofe, a deprecação estão na
própria alma do poeta, sem contar as animadas descrições e os
paralelos que comparecem encachoeirados. O poeta é rico, exuberante.
O dialoguismo e a dubitação seriam outros tantos meios de fazer seus
personagens virem à cena e as idéias fervilharem na mente.
Infelizmente não haveria tempo para mostrar sua constelação de
recursos estéticos e cênicos.
Também não me
ocorre nenhum exemplo mais completo de poesia da natureza que o
poema «Crepúsculo Sertanejo», citado e elogiado por Alfredo Bosi, em
sua História Concisa da Literatura Brasileira
(10). É que os
quadros de Castro Alves não são de natureza morta. Tudo vive na
poesia deste gigante. «Castro Alves não foi um homem, foi uma
explosão da natureza», disse Agripino Grieco - que o cito de
memória. Tão enorme que é visto e considerado, inclusive, por seus
defeitos. É hora de referir a uma crítica que lhe fazem por causa de
«um triste chorar de arapongas», constante de «Crepúsculo
Sertanejo». Eu pergunto: E as chamadas licenças poéticas são apenas
formais? Ou os poetas podem exagerar, transformando o que é, na
realidade, um tinir, um martelar, um gritar, um soar de arapongas -
num simples «chorar»? Não é preciso que o crítico se transforme em
psicólogo para adivinhar que, naqueles momentos, tudo era triste
para o poeta. Nem tampouco dizer que o poema começa numa tarde e
termina à meia-noite. A tristeza o perpassa na sua vastidão mais
funda. E cada vez mais triste o é ao passo que se encaminha para o
fim, como no já citado «Despertar para Morrer», que é o
antepenúltimo, e deveria ser mostrado numa tela e não apenas lido:
- «Acorda!»
- «Quem me chama?»
- «Escuta!»
- «Escuto...»
- «Nada
ouviste?»
- «Inda não...»
- «É porque o vento
Escasseou.»
- «Ouço
agora... da noite na calada
Uma voz que ressona cava e funda
E após cansou! -
Sabes que voz é esta?
- Não! Dir-se-ia
Do agonizante o derradeiro engasgo,
Rouco estertor...»
E calados
ficaram, mudos, quedos,
Mãos
contraídas, bocas sem alento...
Hora de horror!...
A canoa
onde vai Maria fugindo de si, do noivo, da vida, do mundo, é
realmente companheira, confidente, personagem. Abrigará também o
herói trágico enquanto decidem a tragédia da morte (para curar a
tragédia da vida). Ela está bem no fim do poema «Crepúsculo
Sertanejo» - prelúdio para o desfecho - e aparecerá em muitos
outros. Aliás, a leitura desse poema, mesmo solto, desligado do
resto de A Cachoeira... é de todo recomendável. Para que
sobressaiam as partes que interessam a esta análise, vejamo-lo em
alguns momentos:
A tarde morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas
A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos
cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.
A tarde morria! Mais funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.
...............................................................
As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas - da brisa ao açoite;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co'as penas da noite!
................................................................
Então as marrecas, em torno, boiando,
O vôo encurvavam medrosas, à toa...
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!...
Não é apenas
«o chorar de arapongas» que se pode observar, neste excelente
poema. Também «o músico estalo» do ringir do coqueiro é imagem
grandiosa por sua estranheza e originalidade.
Por um pequeno
espaço, voltemos ao início de A Cachoeira... «Maria», segundo
poema, é de um lirismo e uma ternura incomuns.
Onde vais à tardezinha,
Mucama tão bonitinha,
Morena flor do sertão?
A grama um beijo te furta!
Por baixo da saia curta,
Que a perna te esconde em vão...
Que beleza de
imagens! Aqui há, com certeza, uma lembrança de Casimiro de Abreu.
Como também na terceira estrofe, segundo verso: Ah! Quem dessas
primaveras / Pudesse a flor apanhar!
Aliás, Castro
Alves foi uma caixa de ressonância de todos os poetas da época,
disto não fazia mistério Citava de Álvares de Azevedo a Varela, de
Gonçalves Dias a Junqueira Freire e Casimiro de Abreu.
7. “A
Cachoeira...” , obra in fieri
Os poemas de
A Cachoeira... foram concebidos desde a estada do poeta em
Recife até o final de sua vida. Longe de serem apenas natureza ou
momentos de devaneio, os trabalhos ali reunidos, inicialmente com o
título de «Manuscritos de Stênio» - publicado
independentemente em 1876, depois de sua morte portanto, e outras
vezes junto a «Os Escravos» (1883) - são uma experiência de
unicidade dramática. Castro Alves sempre se voltou ao poema, para
reconstruí-lo. É aquilo que hoje se chama de uma obra in fieri,
porque sempre renovada quando o poeta o repensava ou construía uma
nova unidade. Segundo Eugênio Gomes, as peças «O São Francisco» e «A
Cachoeira», ambos construídos na mesma medida decassílaba e
estrófica camoniana como a «A Tarde», foram recitados por Castro
Alves a José de Alencar, no Rio. Na ocasião, o romancista de «O
Guarani» fez uma carta de apresentação do jovem poeta baiano ao
grande Machado de Assis. Era a apresentação de Cecéu ao Brasil.
Gerou louvores do próprio Machado de Assis na imprensa. Sim, aqueles
dois poemas devem ter sido os primeiros de A Cachoeira...
Notas do citado crítico Eugênio Gomes, apensas em Castro Alves,
Obra Completa, da Aguilar, 1966, dão conta que o poeta, «em
outubro de 1870, procedeu a leitura do poema A Cachoeira de
Paulo Afonso, em um torneio lítero-musical, no palacete do
Sodré, em Salvador, onde tinha chegado havia pouco do interior.»
(11) Mas, embora seja datado de 12 de julho de 1870, Eugênio Gomes
retifica, com base em suas pesquisas: «o poema foi concluído na
Fazenda Santa Isabel, mas no mês subseqüente.»
Disto se tirem
duas conclusões óbvias: a) Embora terminado em 1870, não quer isto
dizer que Castro não o tenha reescrito depois; b) não se pode
confiar muito em poetas com relação a datas e objetividades que
tais, mas devemos acreditar nos seus sentimentos e nos seus poemas,
que são as suas verdades.
Como disse
Alencar, na carta já mencionada, de 18.2.1868, «a genealogia dos
poetas começa com o seu primeiro poema»,
(12) ao que eu
ajuntaria: E termina, com o último. Melhor mesmo é senti-lo, captar
seu ideário poético. Sim, porque principalmente de idéias é feita a
grande poesia dramática, segundo Emil Staiger.
Em Fernando
Pessoa e seus poemas dramáticos, segundo estudo de Maria Esther
Maciel, no Suplemento de Minas, outubro de 1998, «pode-se
detectar em todo esse universo de máscaras, vozes e linguagens, uma
maneira nova de se incorporar à poesia elementos da esfera teatral,
sem que nem a poesia nem o teatro se anulem enquanto especificidades
estéticas, mas redimensionem reciprocamente ao mesmo tempo e fora do
território verbal», conformando com o que dissera Artaud: «O
teatro se confunde com suas possibilidades de realização quando
delas se extraem as consequências poéticas mais extremas.»
(13)
O mesmo poderia
ser dito de Castro Alves e seus textos de A Cachoeira de Paulo
Afonso. Salvo outro juízo que, quando vier, eu respeitarei.
Bibliografia, citações e notas:
1 - CARPEAUX, Otto Maria. «Pequena Bibliografia Crítica da
Literatura Brasileira» - Ed. de Ouro, Rio, 1971. Com relação a
Castro Alves apresenta 97 títulos, até 1962. «O poeta mais lido e
mais admirado do Brasil», resume Carpeaux.
2 - ALENCAR, José. «Carta a Machado de Assis». Datada de 18.2.1868,
apresenta Castro Alves. In «Vida Sentimental de Castro Alves», de Archimimo Ornellas, Livraria Progresso, Salvador, 1957.
3 - POE, Edgard Allan. «Ficção Completa, Poesia & Ensaios», Aguilar,
Rio, 1965.
4 - LAJOLO, Marisa. e CAMPEDELLI, Samira. «Castro Alves», Ed. Nova
Cultural, São Paulo, 1990.
5 - GOMES, Eugênio. In notas a «Castro Alves - Obra Completa»,
Aguilar, Rio, 1966.
6 - STAIGER, Emil. «Conceitos Fundamentais da Poética», Ed. Tempo
Brasileiro, Rio, 1975.
7 - STAIGER, Emil. Idem, idem.
8 - LAJOLO, Marisa. e CAMPEDELLI, Samira. Veja item 4, acima.
9 - POUND, Ezra. «ABC da Literatura», Ed. Cultrix, São Paulo, 1970.
10 - BOSI, Alfredo. «História Concisa da Literatura Brasileira», Ed. Cultrix, São Paulo, 1977.
11 - GOMES, Eugênio. In... Vide item 5, acima.
12 - ALENCAR, José. «Carta...» - Vide item 2, acima.
13 - MACIEL, Maria Esther. «Poesia e Teatro em Fernando Pessoa», in
SUPLEMENTO LITERÁRIO DE MINAS GERAIS, Nº 42, Belo Horizonte, outubro
de 1998.
Outras obras consultadas:
- ALMEIDA, Norlândio Meirelles de. «São Paulo de Castro Alves», SOGE,
Garulhos-SP, 1997. - ANDRADE, Mário de. «Castro Alves», in «Aspectos
da Literatura Brasileira», Liv. Martins, São Paulo, 1974 (5ª
edição).
Nota: «Escrevia uma linguagem saborosa, de excelente libertação
nacional, e deve mesmo, com as Espumas Flutuantes, ser considerado o
primeiro sistematizador do pra , trocando-o oitenta vezes sobre cem
ao lerdo e tipográfico para. Só 60 anos mais tarde outros lhe
retomariam a lição...»
- CALMON, Pedro. «A Vida de Castro Alves», Liv. José Olympio, Rio,
1961.
- CASTRO ALVES, Antônio de. Os textos de Castro Alves, citados neste
trabalho, foram tirados do livro «POESIAS COMPLETAS», introdução de
Jamil Almansur Haddad e org. rev. e notas de Frederico José da Silva
Ramos, Edição Saraiva, São Paulo, 1953.
- TILL, E. Rodrigues. «No Garimpo do Tempo», Edição do Autor, Porto
Alegre, 1964.
(*) Francisco Miguel de Moura é membro da APL,
cadeira nº 8, poeta, cronista, romancista, crítico literário e
contista. Licenciaado em Letras pela Universidade Federal do Piauí e
posgraduado pela Universidade Federal da Bahia em crítica de arte.
Conferência realizada por Francisco Miguel de
Moura, no dia 28.11.1998, na APL, Auditório “Wilson de Andrade
Brandão”, homenagem ao sesquicentenário de nascimento de Castro
Alves - (1847-1871)
ORELHAS
Um observador do cotidiano
Afonso Ligório
Pires de Carvalho
Escritor e Professor Universitário no Distrito Federal
Francisco Miguel
de Moura é um observador do cotidiano que tem o homem como principal
foco de sua ficção.
Ele vê nas
pessoas não só as palavras, gestos, movimentos, mas a consequência
das ações de cada um, seus atos, por vezes líricos, carregados de
beleza e sonho. Vai além: desce ao conteúdo, remexe a alma, o
sentimento.
O sério e o
banal estão intencionalmente próximos na maneira de lidar com
objetos e pessoas, mas delimitados com rigor matemático. Não se
misturam. Recria situações com madura visão conceitual. Sua palavra
não desenha paisagem, embora descreva momentos no ambiente como quem
fotografa ou documenta instantes não perceptíveis. Significa que
busca o exato no virtual como se exercitasse aquele tipo de criação
literária de que nos fala Ítalo Calvino.
Os contos de
Miguel de Moura são plenos de conteúdo humano, de intenções que nos
levam a conviver com os personagens como se fossem velhos
conhecidos.
Sente-se de
imediato que o livro ‘Por que Petrônio não ganhou o céu” não é
trabalho de iniciante, porém de experiente cultor das letras. A
impressão que passam seus contos é análoga à do personagem Chiquinho
diante de Mirna: vida e amor, mesmo em meio a desenganos,
desventuras. Para o autor, desilusões, fraquezas são percalços
passageiros como a própria vida, ou inerentes à extraordinária
aventura de viver.
Observo, ainda,
que os contos de Miguel de Moura não se confundem com crônicas, o
que é comum. São contos mesmo, entremeados do necessário diálogo que
caracteriza o gênero.
Às vezes se
alonga em alguns, como em “A festa dos homens”, mas sem exagero.
Opostamente, em outros, limita-se à idéia central, tudo, porém,
dentro da técnica do conto.
De qualquer modo
que se expresse, Francisco Miguel de Moura é um escritor consciente
do ofício, do áspero ofício de escrever. Lê-lo é sentir o Piauí, não
devido a descrições da geografia do Estado, mas pela prosa mesclada
do agradável falar regional cheio de termos ricos, próprios da
terra, da nossa terra.
Brasília, junho de 1999.
Livros já publicados pelo autor:
Poesia: - Areias, 1966; Pedra em Sobressalto, 1974: Universo das
Águas, 1979; Bar Carnaúba, 1983; Quinteto em mi(m), 1986; Sonetos da
Paixão, 1988; Poemas Ou/tonais, 1991; Poemas Traduzidos, 1993;
Poesia in Completa, 1997.
Prosa: Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho, 1972; A
Poesia Social de Castro Alves, 1979 - crítica; Os Estigmas, 1984;
Laços de Poder, 1991; Ternura, 1993 – romances; Eu e meu amigo
Charles Brown, 1986; E a vida se fez crônica, 1996 – de contos e
crônicas, respectivamente.
Leia obra poética de Castro Alves |