Francisco Miguel de Moura
O mel e a cicuta
Antes de fazer o
comentário sobre o romance “O mel e a cicuta”, Rio, 1988, do
escritor Alberto Madeira, quero informar algo sobre sua vida, para
que os leitores não fiquem perguntando: “Quem é?” E tomo as palavras
da não menos escritora carioca Rejane Machado, que me escreveu uma
carta nos seguintes termos:
“Caro Chico
Miguel – Eu gostaria que você gostasse desse livro como eu gostei.
Falo de “O mel e a cicuta”, que foi escrito por um senhor de 85
anos, meu vizinho, ‘expert’ em novelas radiofônicas muito apreciadas
ao seu tempo. É pai de duas amigas minhas, moças inteligentes e
preparadas, a mais velha é minha xará, coisa que dá a maior confusão
no interfone e cartas na caixa do correio, o que nos faz estar em
permanente contato, trocando as coisas (ou pessoas) que procuram por
ela ou por mim, e vice-versa. Ela é cantora do Municipal, tem
belíssima voz soprano dramático e às vezes me faz andar pelo
corredor e escadas para ouvir os seus gorjeios.
Ele é sujeito
de prosa muito agradável, o que sabe de história e filosofia!
Aprecia muito todas as bobagens que escrevo.
É só por
isso, hoje”.
Aqui encerro a
carta de Rejane Machado. O resto não tem nada a ver com a
literatura. Por isto. A carta é de 10 de junho de 1999. Carta de uma
grande escritora sobre um grande escritor. Mato dois coelhos com uma
só paulada.
Falar sobre o
romance “O mel e a cicuta” na verdade é uma missão difícil. Tentar
resumi-lo não posso, seria mutila-lo. Então, o que vou dizer? Um
romance histórico de verdade, no qual a história não pesa, nem pesa
a ficção. Ambas são leves. O leitor entra logo em sintonia com a
História grega, sem deixar de sentir o drama dos personagens. E que
personagens! Sócrates, Platão, Díon, Dionísio I e II, além de
inúmeros outros filósofos e sábios da época, uns a serviço de
Atenas, de vizinhos ou de outras cidades-estados. Outros nem tanto.
E outros até perseguidos, encarcerados, etc.
Começa com as
aventuras e desventuras de Lísias, Timon de Atenas, de muitos outros
gregos do tempo da Tirania dos Trinta, como se tudo fosse uma novela
de hoje. O encadeamento, embora sendo linear, e é linear justo por
ser novela, não perde nunca o seu encanto de novidade. Não falo de
novidade de linguagem, que seria asneira desejá-la para tal obra,
mesmo aquele tipo que pretende restaurar a língua da época (ou
linguagem). Falo na novidade que o Autor conseguiu: intuir a
atmosfera grega das guerras e das tentativas de paz, no tempo de
Sócrates e Platão. Falo em novidades do entrecho, da história, dos
fatos e dos personagens. É narrado sob o ponto de vista de Aristipo
de Cirene, “um filósofo menor, divergente do grupo socrático,
cujas obras não chegaram até nós”, conforme diz o próprio Autor
no prefácio. “Aristipo, entretanto, é citado por seus
contemporâneos como um crítico irreverente e mordaz de sua época,
uma espécie de Voltaire da Antiguidade, morrendo sem saber que
lançara as sementes do epicurismo moderado, sabedoria que busca
conter o sofrimento, evitando os excessos emocionais e físicos”,
acrescenta Alberto Madeira sobre seu alterego.
Embora os
principais personagens desse romance sejam Sócrates, Platão, Díon e
outros filósofos e políticos gregos famosos da época, como acima
referido, quero antecipar aos leitores uma das peripécias do
primeiro personagem a aparecer (e logo desaparecer), na obra sob
comentário. Trata-se de Timon de Atenas, tipo curioso, que perdera a
fortuna e por isto e por mais nutria profundo ódio contra o gênero
humano. “Timon, antes de passar aos credores sua luxuosa casa,
fora ao mercado na hora mais concorrida e, subindo num carro de boi,
chamou o povo aos gritos. Todos acorreram, curiosos, visto que ele
há muito não falava com ninguém. – Vou entregar minha casa a dois
miseráveis agiotas – anunciou – mas devo antes, a pedido desses
pusilânimes credores, derrubar uma grande figueira que fica no fundo
do quintal, cujas raízes estão pondo em risco as paredes da casa.
Eis porque vos venho prevenir das minhas intenções, a fim de que os
que queiram se enforcar apressem-se a faze-lo antes de a figueira
ser derrubada.” (Pg.13/14).
Melhor do que
nos compêndios de história, em “O mel e a cicuta” encontramos tudo
sobre a Academia de Platão, sobre os acadêmicos, e quase tudo sobre
os filósofos antigos. Uma sabedoria inestimável. Sem deixar de ter o
tom de ficção, é muito importante frisar. Entre os que li, é o
melhor romance histórico publicado no final do século XX e seu
autor, um dos melhores conhecedores da arte de narrar.
Faz gosto lê-lo.
|