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Francisco Miguel de Moura


 

Vergílio Ferreira: Manhã submersa

 

Um dia destes, um escritor amigo, vaidoso de suas leituras de autores americanos, me disse:

- Depois de Eça de Queiroz, os portugueses não têm mais nada a me dizer.

Não obstante sua ojeriza à rica literatura de Portugal deste século, disse gostar de José Saramago e de outros autores. E propus com humor:

- Ler os portugueses, hoje, tem uma dupla vantagem para nós brasileiros, que não somos bilingues no verdadeiro sentido: é que podemos ler um estrangeiro sem o intermédio de tradução.

Na conversa, declinei estar lendo «Manhã Submersa», sexto romance do escritor Vergílio Ferreira, que é também ótimo ensaísta. Leio-o numa edição da Livraria Bertrand, Lisboa, 1983, 11a. edição. A primeira edição ocorreu em 1954 e a estréia de Ferreira deu-se em 1943, com «O Caminho Fica Longe». Pela ordem, após o romance que ora comentamos, vem «Aparição», o mais conhecido no Brasil, graças ao «Prêmio Camilo Castelo Branco», da Sociedade Portuguesa de Escritores, e a grande divulgação que obteve.

Vergílio Ferreira, nascido em 28 de janeiro de 1916 e falecido no ano passado, costumava anteceder um preâmbulo a seus romances, deixando entrever sua vertente de pensamento sobre a vida e seus caminhos. No preâmbulo de «Manhã Submersa» observo apenas um jogo divertido em que Antônio dos Santos Lopes, personagem narrador, diz ser este seu nome de lei, mas seu verdadeiro nome é Antônio Borralho, enquanto refere-se ao «Vagão J», romance anterior à «Manhã Submersa». Isto me denota que Ferreira faz um certo encadeamento de sua ficção, quando não dos seus personagens como neste, pelo menos do assunto tratado, ou da emoção, ou da filosofia, ou da angústia, observação que só poderíamos comprovar definitivamente com a leitura de todos, o que ainda não fiz.

Ferreira é sabidamente um representante português do existencialismo, porém com uma originalidade suficiente para afastar o dogmatismo que possa ter herdado dos franceses, especialmente Camus, Sartre e Malraux, sem falar nos filósofos Kierkegaard, Jaspers e Gabriel Marcel.

Da despretensiosa leitura que fiz, pude imediatamente sentir o tom do livro e do personagem, pude saber o espaço e o tempo, a partir de um parêntese no primeiro capítulo, pg. 15:

«Falo agora à memória destes últimos vinte anos e pergunto

me que destino atravessou a minha vida além desse pavor,

que outra voz mensageira lhe chamou ao futuro além da voz

de uma noite sem fim.»

As palavras que mais repete, e com ênfase, são: solidão, sombras, tristeza, terror, silêncio, noite, dor, ódio... É um livro sombrio, conta a luta para livrar-se do seminário e voltar à vida de liberdade da infância. Sua infância não fora nem tão feliz para ser tão lembrada e tão querida, vai-se sabendo no decorrer da leitura. A posição social da família, a pobreza, a orfandade talvez (o pai do personagem não aparece), a distância em que viviam dos meios civilizados, a rusticidade dos seus parentes, etc. ou a falta de carinho, quem sabe... tornaram Antônio Borralho um ser imaginativo e pessimista. Acontece que, na distância, prisioneiro do seminário, seu tempo de menino e sua aldeia pareciam um paraíso. E todo esse suposto paraíso submergiria na rigidez da vida do seminário, na sua reclusão e até, sob certo ponto de vista, na falta de santidade e grandeza constatadas, em contraste com o idealizado pelos que lhe mandavam pra lá.

É um romance autobiográfico sem dúvida, pois sabe-se que aos dez anos o autor entrou para o seminário, não seguindo porém a carreira eclesiástica. Ele questiona as regras duras, a perda de liberdade, a vocação, a existência de Deus e a violência da realidade. Com relação ao último item apontado, assim descreve o Autor as sensações e os sentimentos que experimenta à chegada de sua aldeia, em gozo de férias do seminário:

   «Eu vivia, de resto, agora, e cada vez mais, da minha

imaginação. E foi por isto a partir de então que eu descobri a

violência da realidade. Nada era como eu tinha fantasiado e

não sabia porquê. Parecia-me que havia sempre outras coisas

à minha volta e que eu não supunha, e que essas coisas

tinham sempre mais força do que eu julgava. Assim, a minha

pessoa e tudo aquilo que eu escolhera para mim não tinham

sobre o mais a importância que eu lhes dera. Chegado à

realidade, muita coisa erguia a voz por sobre mim e me

esquecia. Assim aconteceu nessas férias de Páscoa. Quando

a camioneta entrou pela aldeia, logo senti na distância e

silêncio das ruas, dos homens que passavam metidos nos

seus destinos, uma indiferença total pela minha ansiedade.

Eu olhava pela janela da camioneta, aberto em dádiva e

alvoroço, e nada me respondia nem dava pela minha vinda.

Algum homem parado à beira da estrada olhava-me sem me

ver e continuava alheado no cigarro que fumava. Vinham

desta vez alguns seminaristas que normalmente utilizavam o

comboio. Socorri-me deles para que alguém soubesse que eu

chegara: - Cá estou na minha terra!»(pg.l46/147).

É incalculável o sofrimento de Lopes (ou Antônio Borralho), tão grande que sente ódio do vazio de sua vida, um ódio destruidor contra o nada de sua liberdade. Como deixar o seminário? Até que um dia, na verdade uma noite, quando Dona Estefânia e sua família comemoram o aniversário de Dr. Alberto, diante das incitações para que Borralho soltasse mais fogos, mais rojões, mais bombas, mesmo que isto fosse tão perigoso, o seminarista em férias encontra o pretexto: atira-se de cara, vai atingido numa das mãos. À dor moral inenarrável, agora junta-se a tamanha dor física. A queimadura foi de tal monta que veio a perder dois dedos e demorou muito a sarar. Termina saindo do seminário, não sabe (diz) se por falta de vocação ou porque estava mutilado. E vai enfrentar a vida como qualquer mortal, vai ao encontro de sua liberdade há tanto perdida. Isto de ter deixado o seminário - ou foi o seminário que o mandou ir embora? - vem no último capítulo. Comprova mais uma vez o que tenho dito: que, normalmente, os romances terminam no penúltimo capítulo, o que fica para o último já está implícito no seu desenvolvimento. É mais justificativa que ficção.

Pelas páginas e páginas de «Manhã Submersa» desfilam padres, professores, prefeitos, fiscais, funcionários do seminário, conselheiros, confessores, o reitor... E os colegas (Gama, Gaudêncio - o que morreu no seminário, cujo episódio desperta forte emoção no leitor). Também os corajosos, os seminaristas que fugiram. Depois é a vez do pessoal da terra: Dona Estefânia e sua dureza, o Capitão e sua ausência, os filhos e filhas, especialmente Dr. Alberto. Era a casa em que vivia Antônio Borralho. A mãe era muito pobre. Calhau, com quem a mãe acaba se juntando, a irmã, o tio Gorra aparecem a seguir. São um bando de gente miúda e sem maior interesse para o romance, pois que o personagem principal absorve quase tudo. Na realidade, o romance acontece em dois planos físico-psicológicos: o maior, com a grandeza e miséria do seminário, e o segundo, com as férias e a gente de sua aldeia.

Como pequena amostra de seu excepcional estilo, extraímos um pouco do que, de certa forma, lembraria o adjetivador criativo que foi Eça de Queiroz. É o peso da tradição, num escritor tão original como Vergílio Ferreira. Mas a escolha também serve para reatar aquela conversa com o meu orgulhoso interlocutor intelectual.

«Gaudêncio, depois do interrogatório, desapareceu. Procurei-o pela mata, até que enfim o encontrei, sozinho, pensativo, encostado ao toro de um castanheiro. Sentei-me ao pé dele e não dissemos nada. À nossa volta crescia a ameaça de um Outono pálido, profundamente cansado, cheio do aroma de todas as coisas mortas. Os castanheiros esguios, errantes pela colina, vagos, desencorajados, desfaziam-se lentamente das folhas amarelas, como quem desiste de tudo. No céu húmido e densamente azul, um sol taciturno aguardava, sem interesse, o fim do dia, como um velho inválido numa cadeira de braços, que já não tem projetos para amanhã. E para o fundo do vale, como para uma sepultura, descia uma neblina espessa que amortalhava para sempre a memória de tudo. Fitei Guadêncio, mas ele não desviou os olhos da sua amargura. Tomei-lhe então a mão em silêncio, e pareceu-me que assim ficávamos mais defendidos contra o terror, excessivo para nós, de haver distância e gente estranha a cercar-nos a vida.» (pg.31/32).

É um livro triste. Mais do que triste, tétrico. A vantagem é ser gostoso de ler. Os trechos já transcritos provam. Sem descer para a linguagem ensaística, dentro do entrecho narrativo aponta, aqui e ali, algumas tiradas filosóficas que dão muito o que pensar.

Exemplos:

I) - «Porque o peso da dor nada tem a ver com a qualidade da dor. A dor é o que se sente.» (pg. 55)

II) - «Que mitos foram falsos para a dor que os pediu?» (pg. 175)

III)- «Dói-me o que sofri e recordo, não o que sofri e evoco. (pg.85)

Não obstante seja escrito em linguagem correntia mas não documental, algumas dificuldades podem ocorrer ao leitor brasileiro, que não chegam a ser embaraço à compreensão macroscópica do romance. Exemplificando:

«Até que um malandro que vinha de púrria com seis magalas, decidiu morder de frente.» (pg.14)

Expressões como vexado a sangue (pg.47) e santo melado (pg.51), tais como púrria e magala, já vistas acima, não são encontráveis em nossos dicionários e justo precisamos dum auxílio do dicionário deles, os portugueses. Tais seriam também garnacha, podoa, sesgado, fevra e berma. Fiquemos, porém, com estas. Não encontrei outros dignos de nota, o que não é muito, levando-se em conta que se trata de um autor rico na forma, consciente de que a linguagem é parte da alma do homem, senão a própria.

Romance diferente, história diferente, contar diferente. Sentir diferente. Um grande escritor português para o mundo. Tem algo e muito a dizer-nos.