Francisco Miguel de Moura
O sabor dos sentidos
O sabor dos sentidos é o sabor da linguagem primeira, própria da
arte. Nome mais próprio não haveria para o livro de Dílson Lages
Monteiro, que explode no segundo poema com o verso: “se os pulsos
param a garganta...”
Mas assim é que começa o livro, no poema “Terapia”, que talvez nem
seja o melhor embora seja o mais denso do ponto de vista de imagens
superpostas: “Consigo ver nos seus olhos / neles me vejo / como quem
vê a si no silêncio.”
Ora, quem acha que nos três versos não há poesia é porque não tem
mesmos olhos/ouvidos/pele para os sentimentos. Ver no que vê é ver
nos olhos – semelhança; ver-se neles não é ver apenas o objeto, mas
ver também o sujeito; a comparação final (do verso) excele por causa
da sibilação da palavra “silêncio” e do “si” que, em si, já é
silencioso – comparação de sons, comparação de sentidos. Poderia
dizer de outro modo, em vocabulário técnico, mas prefiro a palavra
comum para que seja por todos os leitores compreendido.
Logo na segunda estrofe, “consigo ser” em contraste com “consigo
ver” da primeira. “Ser o sal dos sentidos” é uma metáfora
sinestésica que garante também a eufonia da frase, sua musicalidade,
sua plenitude, tudo o que o leitor inteligente quer para gostar e
guardar.
Caminhando mais, vejamos o “consigo tocar a lucidez...” , outra
imagem, agora cenestésica de quem se olha nos outros e assim pode se
ver olhado: o toque, o objeto, a vida sentida por todos os sentidos,
especialmente por aquele que “nos atira à areia.”
Final do poema: inicia o verso da última estrofe um “consigo”
transformado de um verbo anterior em pronome pessoal transferido e
transferidor, como pássaro que voa de um a outro ente, de um a outro
amante, na eterna evasão de brincar do “tiro ao alvo” que é a
própria vida: seus mitos, o astro e o rei e a mão que faz a poesia e
constrói com o pensamento todos os demais mitos.
Num estilo elegante, conciso, harmonioso e correto, denuncia logo o
professor que há por trás do poeta. Se isto por um lado é muito bom
por causa do conhecimento dos recursos da língua, por outro lado
pode ser uma faca de dois gumes, deixando o poeta à mercê dos tropos
que aprendeu e vir a repetir-se constantemente.
Eis aqui as poucas e breves palavras da análise de apenas um poema,
se bem que o inicial, de “O sabor dos sentidos” (e dos dissentidos
também), do recente livro do jovem poeta Dílson Lages, que vai na
vanguarda de nossa poesia. E, pelo que sei, esse não é o da sua
estréia, portanto poeta jovem mas já experiente. Uma explicação
quase que escolar do poema “Terapia” = poesia, amor, canção, vida.
Poderia ter me valido de qualquer poema do livro, do começo, do meio
ou do fim, seria mais ou menos igual o resultado. Cheio de metáforas
visuais, auditivas ou de linguagem-pensamento, quase repleto de
outras figuras, as mais sensíveis, de sons e silêncios, de dor e
alívio, de belezas (singelas ou ásperas), mas sempre poesia, dentro
do poema-pérola, de tal forma que ninguém sabe avaliar qual o melhor
porque todos o são.
Neste livro, Dílson Lages é um verdadeiro poeta na forma em que Ezra
Pound compreende como a grande literatura: “linguagem carregada de
sentido, no mais alto grau possível”, daí a polivalência e a
superposição de imagens e tropos, metáforas e metonímias. Dílson
Lages é, aqui, um verdadeiro poeta, e creio que o foi nos demais. Só
temo pelo esgotamento dessa fonte. Só temo que a certeza do crítico
e do professor quebre o ímpeto do poeta na busca de imagens e
símbolos sempre ousados, cada vez mais distintos.
Neste ponto, quero que não me tome por mal, mas acho que já há tempo
suficiente para ir diversificando seu rumo, de aplicar mais
variedade a seu estilo muito denso e por isto mesmo já sem espaço
para crescer, pelo menos nessa linha.
No entanto, é bom acreditar que o poeta é também um mágico e
certamente encontrará saída para os seus dilemas.
Portanto, parabéns, poeta. Nem sempre a doçura nos importa, pois nós
somos o sal da terra, o sal da lágrima, o sal de tudo.
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Lages Monteiro
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