Francisco Miguel de Moura
A
fraqueza do velho
Por que,
lembrando agora de meu pai, entre tanta coisa que aconteceu na
infância, me vem à mente um dos episódios mais tristes, mais
desagradáveis, mais negativos? Por que aquele fato me deixou marca
tão profunda?
Para nosso
olhar, nossos pais são fortes, sábios, impecáveis. É que a criança
necessita de firmeza e segurança. A debilidade, mesmo para praticar
o bem, não é um fator positivo na formação do caráter.
Os pais, quando
dizem «sim» querem dizer «permissão», mas quando dizem não, estão
determinados: querem dizer «não» mesmo, e não há quem os demova do
propósito. Às vezes trata-se de uma asneira qualquer.
- Olhe, Chico,
abotoe os botões da camisa!
Meu pai não
tolerava que eu andasse com a camisa desabotoada. E eu gostava muito
de correr com «a camisa aberta ao peito», como na canção de Casimiro
de Abreu. Ele não permitia. Era uma brincadeira que eu só podia
fazer quando ele estivesse fora.
Uma vez, quando
eu o acompanhava em algum trabalho, íamos atravessar o rio, que
estava quase cheio, tomando água, água barrenta. Para ele, entrar
naquele rio atravessá-lo a vau, era «pinto». Para mim, representava
um perigo enorme. Água na cintura. Via o mundo rodar. Ele ia na
frente e reclamava: «Pise firme, não olhe para trás nem para os
lados, olhe para a frente. Vamos». Sequer me estendia o braço. Eu
sei que ele não me deixaria afogar, nem ir ao léu, rio abaixo. A
falta de socorro à minha aflição era para que perdesse o medo,
tivesse coragem. Será que funcionou? Ainda hoje tenho muito medo. De
água. De muita coisa. Mas acredito que melhorou. Pior seria se ele
me tomasse nos braços, com pena. Eu seria um poltrão por toda a
vida. Consegui, finalmente, chegar ao outro lado, tonto de medo, com
muita raiva do velho. Mesmo assim, acredito que valeu a pena.
O episódio
negativo, ocorrido em nossa família, ainda bem que com desfecho
feliz para mim, é o que passo a contar como centro desta crônica. A
gente morava num lugar entre a Barra do Guaribas e a Ema, na beira
do rio. Havia a casa de seu Quinco Marinheiro e a de um senhor Moura
Fé (seu primeiro nome esqueci), ambas do outro lado do rio. Nossa
casa era uma residência mais ou menos solitária, isto é, sem
vizinhos. Lembro-me bem da nossa penúria, em termos de alimentação e
de mobília. Não havia colheres, foram se quebrando os pratos,
desaparecendo os canecos, desaparecendo... Comia-se em cuia, com as
mãos. Eu, aí, tentei fabricar colheres toscas de pau, que servissem
para a gente comer. E até que consegui. Que não eram uma perfeição,
tenho lembrança. Mas que quebravam o galho, isto lá quebravam.
Durante as
viagens do velho, minha mãe, com medo, ia dormir ora na casa de seu
Quinco Marinheiro, ora na casa de seu Moura Fé. Esse velho tinha
muita simpatia por mim. O fato é que, sem eu esperar, sem ser
avisado, um dia ele chegou a nossa casa, muito sorridente. Meu pai o
aguardava. Certamente já haviam falado sobre o assunto. Depois de
uma longa conversa que eu não ouvi mas pressenti - porque menino
grande, eu devia ter 6 anos, fica com as antenas ligadas na conversa
dos grandes - propôs levar-me para sua casa e criar-me como filho.
Se não me engano, prometia me botar na escola, se eu quisesse ser
padre...
Eu não queria
nada do que ele falou, nem deixar minha mãe nem ser padre. Pela cara
que fiz, ele notou. Estava quase chorando. Fui choramingar lá
dentro. Meu peso era de chumbo, uma tonelada. E eu queria voar,
desaparecer dali imediatamente, não fosse ter que deixar mamãe. Não
sabia o que fazer. Confiava nela.
Mamãe foi
furiosamente contra a empreitada de Mestre Miguel. Não admitia. O
pai concordara com o pedido de Moura Fé, mas o menino não ia. Salvo,
se passasse por cima do seu cadáver.
- Então, como é,
Mestre Miguel? - perguntou o homem.
Arrependido do
que prometera antes, Mestre Miguel arranjou a desculpa que faltava:
- Só se o menino
quiser.
- Não, eu não
quero - disse e sai correndo, chorando, em busca de D. Zefinha
O velho Moura
Fé, vendo e ouvindo minha negativa, foi ficando macambúzio. Seu
intento fora por água abaixo. Segundo sei, ele não possui filho
varão, acho que nem fêmea também. Sua casa era triste, apesar do seu
sorriso, da sua acolhida, da sua bondade. A partir daquela data,
entretanto, passei a ver toda sua graça como desgraça, passei a
tê-lo como um homem mau. Queria levar-me de minha mãe, de minha
casa.
Hoje, minha
interpretação do que estava acontecendo é que o velho meu pai
fraquejou. Não tinha fé em Deus, nem nos homens, que pudesse ganhar
dinheiro suficiente para sustentar-me juntamente com minhas irmãs,
que eram três naquele momento. Mas estava sempre nascendo criança lá
em casa, e sempre morrendo. Com as que morriam eram complacentes:
«Ainda bem que são anjinhos, vão orar por seus pais para que eles se
salvem».
Não me recordo
se, depois desse episódio, mamãe ainda foi dormir na casa do senhor
Moura Fé. Sei que quando a gente dormia lá, eu acordava mijado. Era
incômodo, vergonhoso, acordar molhado, fedendo a mijo. Não sei
porque acontecia assim. Muito tempo depois foi que eu me segurei,
passando a levantar, de manhã, como todo o mundo - enxuto. Por causa
da lembrança desagradável, a memória me força a crer que daquele dia
em diante mamãe não confiou mais em ir dormir na casa do Moura Fé.
Passou a procurar a casa do Quinco Marinheiro, onde se considerava
mais segura. Eu, também.
O velho meu pai
era forte. Mas ali fraquejou. Todos nós temos o nosso dia de
fraqueza.
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