Francisco Miguel de Moura
Aparição da serra
Como o espírito
sensível de uma recepcionista, ela prestava bem atenção às conversas
dos turistas. Num instante interrompe alguém com olhares, noutro com
uma perguntinha à toa, mais além interferindo com opiniões... Nem
ela sabe porque está naquele transporte a caminho da Serra. Ninguém
sabe porque o ônibus roda lento, o motorista sua a camisa, a tarde
vai caindo e pouco a pouco perdendo calor.
Ninguém sabe.
Mas ele ouvia a vozinha suave adiante de si, do lado direito, sem
perceber nitidamente todas as palavras. É uma moça simpática, em
traje bem simples, vestido liso, cabelo preso por um desses
atracadores de borracha que se mostram por um flor ou bichinho
qualquer, de cor discreta. Enfeite bem catita, só para compor o
cabelo, o conjunto. Não lhe viu o pé. Mas dá para perceber a baixa
estatura, a pele fina, a cor morena. Veio a medir essas coisas
instantes depois, na hora de descer. Bom nariz, boca bem feita, uma
carinha de menina de dezoito. E que sorriso!
De onde se
sentara seria difícil olhar para ela sem denunciar-se. Estava só. A
fala mansa, de mulher que se quer vista e admirada, o despertara da
sonolência da tarde. E mexeu com o outro, Lulu, companheiro de
banco.
É então que o
visitante se levanta do assento, dá uma visada em torno e à frente,
pega todos os ângulos, satisfaz-se com o ajeitado da roupa e do
assento, fala com o companheiro de lado.
Medrosa, a
titubeante voz anuncia-se numa pergunta sutil.
Aos dois? Ao
outro? Ou ao visitante em particular?
Ele toma a
dianteira e tenta responder, ainda sem receio de nada, movido
simplesmente por aquela euforia dos viajantes.
Filosofia. A
vida. A estrada. Tudo que se pode conversar dentro de um ônibus onde
viajam senhoras, cavalheiros, crianças, família, com alguma reserva,
pois quase todos são desconhecidos.
O Visitante:
- “É a primeira vez que vê uma mulher interessar-se por aquelas
questões”, só pensa.
O Outro:
- “Deus? Quem é Deus? Quais são os seus poderes? Será que tudo isto
que nós vivemos é verdade? E o sonho? A vida não será um sonho?”
Ela: -
Aqui tudo é verdade. Há 32 mil anos...
E o ônibus
rodava que rodava, agora já saindo do asfalto, uma poeirinha
levanta, fina como os cabelos da musa, respiração quase no ouvido
dos dois, quando se virou lentamente. Punham os olhos nos acidentes
que ocorriam no horizonte, agora menos liso, mais perto, mais real:
a mata de catinga seca, aqui e ali um galho verde, um inseto que
saltava sobre as cabeças, o zumbido de uma abelha de mel... E a
Serra que se erguia orgulhosa, imponente, azul-cinza.
O visitante
mistura-se com os turistas, tendo sempre a seu lado o amigo Lulu e
sua esposa. Quis deles denvencilhar-se mais de uma vez e não pôde. O
outro gostava muito de conversar as coisas que conversa. Por que
deixá-lo perdido, sem carona?
O Outro:
- E aquela, separou-se para onde?
O Visitante:
- Inveja-a? Deixe que siga seu destino.
Ela passara
passarinhando, de leve. Um dia todo na cidade e sequer lhe
aparecera, sequer lhe fora apresentada, sequer estivera na reunião
com o prefeito, professores e colegiais, isto é, na solenidade.
Nada. Ninguém. Só aquelas coisas comuns, um autógrafo.
apresentações... E discursos, discursos, discursos.
No almoço,
sozinho, macambúzio. Estivera a fim de encontrar uma boa conversa.
Só conversa. Ou então, se pintasse um doce, um céu... Mas, em
princípio, só conversa onde tudo rolasse, anedotas, declarações
disso e daquilo, metáfora ou não, que dessas coisas também o homem
sobrevive. Não só as mulheres românticas, quando temperam os
sofrimentos da alma.
Com o escuro da
noitinha é que vem ela, já no cheiro e no ponto do mistério da
Serra. Quando poderia acontecer? Já estava acontecendo? Não, não
pôde mais observar o Museu. O coração fica opresso. Os espaços foram
tomados por pensamentos. Não pôde mais ver as grutas, as formações,
as inscrições, os vestígios das fogueiras dos homens primitivos, o
calendário. Que espírito lhe baixara? Toda sua vida e toda a beleza
do momento concentravam-se naquela visão ainda fluída, ainda
transparente, simbólica. Poesia, filosofia, comportamento se
digladiavam na língua dos três. Ele teve medo de parar, de
continuar, de faltar-lhe a palavra, de fugir-lhe o ar. O que dizer
de belo, encantador, para sustentar a peteca?
Ela: -
Que queria dele? A sabedoria? Mas era tão simples.
O Visitante:
- Talvez por isto. Talvez por mais. Ou era apenas para espanar um
pouco a solidão? Perdera um grande amor? Estaria à busca de alguém?
– ia abrir a boca e o momento bom fugira.
Interessavam-lhe
tais questionamentos. Mas não agora, daquele jeito, sem
contrapartida. Todos olhando, vendo, falando... Ainda abriu a boca
outra vez e não teve coragem. Lembrou-se, recompôs-se, ajeitou o
colarinho da camisa (um de seus atos de ansiedade), esfregou uma das
mãos na outra (já este tanto queria dizer satisfação quanto
preocupação, nervosismo).
Agora tentaria o
sonho. E se encaminhou para o seio da Serra.
Uma semana?
De carro, indo e
vindo à cidade, a qualquer hora, parando onde quisesse? Indo à casa
dela, seu apartamento, onde quer que vivesse, sendo apresentado como
‘o doutor”? Desce uma noite sem lua. Perfumada. Silvestre. A noite
da Serra. Desaparecer, descansar... Desaparecem por muito tempo.
Muito tempo
depois foram encontrados.
Casal perdido?
Não, não houve
nada.
Os Dois:
- “Somos companheiros do mundo. Conversamos. Como dois anjos. Nossas
angústias foram comunicadas, enxugadas com os prantos, cada um de
per si.”
Os Outros:
- Ela é sua filha?
O Visitante:
- Ora, ora, encontrei-a na Serra.
Ela: -
Ele é que é meu anjo, uma aparição da Serra, um recado de Deus.
Quando chegou à
Capital, cansado de tão longa viagem sem frutos, perguntaram-lhe o
que viu da Serra da Capivara.
- Não vi nada e
vi tudo.
- Como assim?
- Ora, uma visão
do céu, vocês não acreditam. Veio, voltou, desapareceu. Quando
descemos à cidade, ela ficou, disse que ia falar com uma amiga, um
instantinho. Esperei. Não só um horinha: dois dias. Ninguém soube me
dizer nada dela. Também não lhe sabiam sequer o nome. Dei-lhes as
feições, a altura, a forma do cabelo, o jeito da falar, e por quais
assuntos e fatos se interessava, contei o que nós falamos durante a
semana...
Eles já sabem
que é inútil procurá-la. Não voltou. Não volta mais. Vive lá
curtindo o silêncio. De vez em quando soam uns pregões bíblicos,
morais, umas frases sentenciosas, nomes de profetas, filósofos,
poetas, uns conhecidos outros não, e pequenas passagens esparsas de
sua vida. Nada mais.
- “Por que você
vai de novo? Ela não volta...”
- “Mas eu terei
que voltar à Serra. Não será para procurá-la, pois que ela me está
esperando, atenta para o grande dia.”
- “Será que ela
existe?”
Procurou
confirmação em Lulu, seu amigo de todas as horas, naquela viagem a
São Raimundo Nonato. Mas ele veio com evasivas, palavras de sentido
vário. Foi decepcionante. Negação, como testemunho.
Mas lembrou-se
de mais. Por exemplo, os beijos da saída, as anotações do telefone e
endereço, em letrinha bem desenhada. Não podiam ser mentira. Não
estava dormindo.
- “Visão
imaterial não escreve. Será que ela existe?” perguntam insistentes.
- “Ora! Existe,
sim! Deu-me um número... E também o endereço.”
- “ E confere?
Você telefonou?”
- “ Telefonei
várias vezes e ninguém atende. Ouço, ao contrário, uma voz estranha,
como se saísse de dentro da Serra. Escrevi. E o correio não me
devolveu, mas também não tive resposta. E é tudo que sei.”
- “Sonhador
verdadeiro é aquele que acredita no que sonha.”
O rapaz estira a
mão trêmula no rumo do sul e assim permanece durante alguns minutos.
Nela, um papelzinho amassado. As supostas anotações da moça.
- “ Na verdade,
eu creio.”
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