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Ernesto Flores


 

Sobre a poesia de Márcio Catunda



Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

16.05.1999

 

A poesia de Márcio Catunda evoluiu dos temas sociais e de protesto, presentes nos seus primeiros livros, notadamente em “Incendiário de Mitos”, de 1980, para a busca do transcendente, dos mistérios do ser e do enigma das coisas sagradas, cuja expressão se verifica marcadamente nos livros “A Quintessência do Enigma”, de 1986, “Purificações”, de 1987, “O Encantador de Estrelas”, 1988 e “Sortilégio Marítimo”, 1990. Em seguida, o resultado de suas reflexões sobre o ser e a eternidade se configurou num livro em prosa, ”A Essência da Espiritualidade”, de 1994.

No presente livro, Márcio Catunda nos entrega uma coletânea de poemas escritos em êxtase, durante as ocasiões em que visitou algumas cidades de países europeus, nos quais bebeu em tradicional fonte inspiradora. Sua temática polifacética também abrange, como em outros livros, o canto de seu rincão cearense (os verdes mares de Fortaleza), com impressões matizadas por recordações da infância e da adolescência, fases importantes na formação de sua sensibilidade estética. A nostalgia do Brasil, resultante do seu interminável viajar na condição de funcionário diplomático, além dos denominados temas eternos, configurados pela abordagem de mitos gregos (como as suas versões esotéricas de Apolo e de Asclépio), são fundados na ótica do misticismo contemplativo que o caracteriza.

Herdeiro do bucolismo e do panteísmo tradicionais que remontam a Empédocles, Virgílio e Horácio, cantando em uníssono com os pássaros e as fontes, o poeta nos revela a unidade da natureza em sua multiplicidade interdependente. Desse modo, situa-se entre a poesia e o céu, captando as belezas do universo. A meta deste lírico panteísta é irmanar-se aos astros e ao vento. Decanta-lhes as dádivas e as bênçãos. Enaltece a magnitude abastrata do Cosmos, mas também conjuga o humano verbo, fazendo da poesia um veículo de fraternidade, através de dedicatórias a poetas amigos e outros admiradores do seu estro votivo.

Em vôos suaves e profundos, como um pássaro que sobrevoa as planícies do mundo em que vive, Márcio Catunda vai buscar, com a sensibilidade que possui, as mais belas mensagens. Lê-lo é aprender o quanto vale cultivar esse lirismo que, a cada leitura, coloca o leitor sempre diante de um novo espetáculo, levando-o a percorrer caminhos jamais sonhados ou imaginados.

No livro “Purificações”, 1987, encontramos a teoria da fraternidade que o poeta formula em versos: “... amigo é itinerário de liberdade e alívio no instante de martírio”. Em “A Quintessência do Enigma”, escreve, como em estado de graça, suas viagens líricas, partilhando com o leitor nuances de cores e imagens diante de fatos vividos: “Alço vôo/ Meu Deus, e essa aflição estranha!/ Essa avalanche, esse silêncio cheio de música! É a vida transbordando amor em mim,/ sou eu - pedra por pedra - erigindo o pilar do futuro”. Temos ainda, em “O Encantador de Estrelas”, 1989, um belíssimo conceito de poesia, onde exprime a sua poética: “A poesia, eletricidade das estrelas/ na ossatura lexical/ rompe o silêncio no exílio das entranhas do arquétipo/ e atravessa a estação sideral./ Poesia: retorno ao cristal das metamorfoses,/ seqüência do calendário infinito”. Do livro “Sermões ao Vento”, de 1990, destaco entre outros poemas a “Arquitetura lírica de Fortaleza”, onde o autor celebra o seu rincão cearense. Em “Sortilégio Marítimo”, considero típicos da ascese oriental de Márcio Catunda estes versos de andarlinho: “Errante andei como os apátridas,/ Lin Tsi conduziu-me ao monastério de serenidade,/ refúgio de solidão”. Sempre celebrando a vida de forma generosa, escreveu em “Los Pilares del esplendor”, 1992, fruto de suas experiências em Lima, Peru, onde residiu cerca de quatro anos: “Que breve instante/ el de ser feliz/ um frasco de musica/ un flirt de beleza/ y pasó...” (“Transitoriedad”). Já em 1997, vemos Márcio Catunda exercitar o verbo poético em “Ave Natura”, constituindo em vários idiomas o seu testemunho de poesia ecológica. Deste livro agrada-me sobretudo o poema “Descubrimiento”, do qual seguintes versos ilustrativos de sua tese panteísta: “Descubrir en la indivisibilidad de la naturaleza/ la totalidad de las cosas/ y situarse ante el universo”.

É o próprio poeta quem adverte que a poesia é divina e cada poeta é grande segundo a sua dicção. Com essa abertura de concepção teleológica e teológica, viaja nas dimensões imarcescíveis do ser e, nesse sentido, seu poetar se identifica com os versos da canção espanhola, cujo idioma exerce em poesia: “quisiera tener alas para volar”. Assim, através do êxtase com que deixa as palavras desfilarem no papel, faz da poesia um lema de vida, purificado pelo coração. Também no idioma francês, realiza experiências literárias, tendo escrito poemas nos quais descreve os tesouros panorâmicos do lago Leman e seus arredores, na região que corresponde à fronteira entre a França e a Suíça. Desse modo, decifra a policromática esfinge da cultura européia, vivenciando um idílio ecológico com as mais esplêndidas paisagens do continente. Mas em suas itinerâncias, algo exacerba-lhe a sensibilidade: o estar dividido pela necessidade de partir de sua pátria, “sob o signo da esperança” e o ideal de “viver sempre livre nos quintais do Brasil”.

A natureza é onipresente em sua poética. Sobretudo o mar: o Tirreno, o Adriático, o Mediterrâneo e o Mar de Mármara, mas também os jardins - refúgios de encantamento em meio ao túmulo das grandes cidades (Parque Pincio, em Roma, Parque Valentino, em Turim, o jardim do Palácio Real em Paris, etc.), além do vale do rio Avre, a ribeira dos rios Tâmisa, Arno, Reno e as perspectivas de cidades como Praga, Viena, Salzburg, Londres, Florença, Verona, Sevilha (à maneira de João Cabral) e Granada (à luz da poesia de Garcia Lorca), e sobretudo Veneza e Madri, cuja civilização plena de aportes culturais tanto fascinam o poeta. Dentre os poemas escritos em viagens a grandes cidades européias, ao longo de três anos de permanência no velho continente, destacam-se as interpretações humanistas do atual estágio de desenvolvimento social de Berlim e Amsterdam. Dentre outros temas, vale mencionar a visão da paisagem sertaneja, metamorfoseada de nuances metafísicas, em “Terras de Dragão, ou imersa em nostalgia, “Acaraú”. Também dignos de nota são os questionamentos existenciais configurados em “Os trâmites do abandono”.

Nas experiências de criatividade, saliente-se o exercício lúdico realizado nos poemas “Primaveril”, “Harmonias estivais”, “De arrimo”, “Ânima lírica”, “Arenas lapidares”, “No zen do Zênite”, “Vertigem”, Panteonímia”, de originalidade estilística, em que se nota o criterioso uso da aliteração, da paronomásia, e da homonímia, figuras que tornam mais elegante e musical sua poesia. Notamos no presente livro, como em toda sua obra escrita até o momento, o mesmo envolvimento espiritual e lírico que nos leva às alturas de onde provém a inspiração. Tenho certeza de que as peregrinações poéticas e as experiências lingüísticas e estilísticas do autor de “Agua Lustral” despertarão o maior interesse dos leitores.
 

Márcio Catunda