Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

Soares Feitosa


Thiago
 


Em comum, Thiago,
temos alburno e âmago:
as poeiras minhas e os verd'águas teus,
também os temos.

Comuns de nós
a ancestralidade das águas desejadas,
minhas,
escassas, sofridas, minh’águas;
enquanto as tuas, Thiago,
são as águas dos silêncios,
talvez reparações de alguma
reforma inconclusa
do dilúvio primevo.

                            As nossas,
                            águas rasas,
                            um vau de poeiras,
                            mera chuva de rezas
                            a José, o Santo errado,
                            pajem de ouro do Menino
                            e da Senhora Santa,
                            descuidado vaqueiro
                            das terras secas,
                            assim as minhas,
                            aqui.

De viagens longas, meu poeta, eu venho,
o couro de bode em cabelo
— cabelo, a não deixar rastro —
do solado de umas alpercatas pisadeiras
em muito chão de mundo,
eu venho doutros cantos e chãos,
                            cheguei.

Venho de um poeta, digamos Euclydes,
capitão Ocrides, como o chamava às solidões baianas,
e ele me instruía, em riscos de fogo,
sobre os riscos da terra,
e também sobre o fogo da fé ele falava,
e explicava os riscos faciais do guerreiro Santo,
Antônio, um dos nossos, Conselheiro,
                            de Quixeramobim,
                            ali.

De mais outro poeta eu venho,
falemos Gerardo,
"coroné Geraldo", poeta-Poeta,
O País dos Mourões que também são meus
(Mourão eu sou, da banda dos Feitosas),
e de Nertan, Nertan Macedo, também falemos
— o bode o cavalo o boi o sentimento mortal —
e do homem às contemplações
do fogaréu deste meu chão sem águas,
Siarah de chãos e terra!

Venho também de Humberto,
que as asas e os assuns,
bichos de pena de minha viagem longa,
Humberto, Humberto Teixeira, e todas as asas,
brancas, Thiago, e os assuns,
pretos;
e as asas-brancas, de cantar e chorar,
furaram,
furaro os zóios, Thiago,
e de Gonzaga falemos também, e do coronel
Ludugero e de Otrope, que preferiram, estes dois,
as águas verdes, para lhes entregar o pulso final,
e agora cantam a presepada inocente, eles cantam
entre os botos azuis e a raiz
dos peixes dos Guajarás, eles cantam
uma canção nordeste — no país do Pará —
de não voltar.

Em comum, caro Thiago, ainda temos
a ancestralidade de sangue:
quem dos amazonas,
qual dos paroaras,
aponte-me, por favor, o nortista verdadeiro
que poderá dizer que escapou
do contaminado do fogaréu
destas terras de pedra e pó!?

Quem,
dos que aqui ficaram,
dos imprudentes que ousaram ficar neste braseiro,
poderá dizer que não mandou botar
raízes nesses lodos ainda palpitantes,
nos lodos teus, Thiago, do dilúvio elementar!?
Ceará e Amazonas,
Almazona e Siarah,
uma terra só,
onde os opósitos:
a água, vasta água, é lá;
onde o chão, vasto chão e muito sol, aqui.

Somos dois,
somos o mesmo!

                            — O homem?

É o mesmo, Thiago, o mesmo homem,
idêntico bicho-de-dois-pés,
e por favor não te pabules dos teus rios contra mim,
que eu jogo para cima de ti o meu mar
com todas as minhas jangadas de sete paus,
levíssimas, flutuam, e voltam!

E mando, se zombares, supliciar-te com o vento raso,
escorraço-te com os meus peixes,
não esses "peixes" de lenda-de-beira-de-rio —
com os peixes verdadeiros, porém, peixes-de-mar,
de-mar-cheio, do-mar-oceano;
e os meus tubarões de vinte metros
e as baleias de duzentos comerão
os teus paroaras, e te direi aos quatro ventos
que as águas dos teus rios, maiores que sejam,
jamais encharcariam estas terras secas,
terras que foram feitas para se irrigarem
— tão-somente quando daqui fugimos —
                            nos
                            olhos
                            das que
                            ficaram.

Desconfio, Thiago, dessas águas todas, tuas,
de todos esses rios imensos, teus,
não podem ser de chuva só:
esse mundaréu de chãos de águas
são dos meus olhos, Thiago,
quando aí fugido,
entre polegar e indicador,
eu apertei a casca limosa da floresta vasta,
quando meus pés chiaram lama entre os dedos tarsos,
quando meu lombo se encharcou da chuva rápida
....................................................................
foi aí, Thiago, quando os meus olhos
se explodiram na lembrança
daquelas terras, daqui;
daquele vento, seco, meu;
daquele sol dos olhos
                            dela,
                            minha.

Teus,
meus também, Thiago,
estes olhos de sol de todas estas janelas
desta terra, caatinga, são olhos de água fugida,
de coisa faltada, do orvalho ressecado,
a lágrima inútil,
restolhos do matinho verde,
escassos...

A caminho das coisas grandes,
fugimos,
sempre fugimos — para voltar —
cobras imensas,
o berreiro dos navios prontos para o seringal, comadre,
e pés-de-pau, compadre, que cem homens não abraçavam,
eu vi com estes olhos —
era assim que os meus mais velhos contavam
as histórias do Almazona, e as cobras,
aqui, neste alpendre da noite,
vastidões da casa grande,
era quando chovia,
o relâmpago piauizeiro troando os céus,
que aqui também relampeia — às vezes —,
o milho assado, o queijo rangedor com rapadura,
era quand’eu daí tinha voltado, pra cá,
que sempre voltei,
que sempre fiquei,
que nunca saí,
indaguem notícias de mim em Barreirinha!

Venho também, Thiago, de um canto aprendiz,
do canto de mim, Antífona, canto meu,
e já não esperava,
depois desses cantos todos,
dos poetas de que lhe falei,
Eclesiastes, a coisa nova,
quando dos silêncios da floresta,
sob um outro sol,era Manaus,
uma conversa palpitada de filho e pai:
— o senhor lembra de um barulho do mato,
depois de tantos remos e tantas águas? —
e ele avançando entre as mangueiras
.....................................
o machado brandindo,
abrindo em achas
...................
e ela sozinha,
no meio da floresta.

Era também quando o cacaual desgovernado
dava fruto ao grito dos macacos,
gritos plangentes dos macacos-pregos,
vide o Domador, vide o Macaco Caetano,
ambos deste seu criado,
criado seja de Deus e Nossa Senhora,
do meu Padrim Conselheiro, amém,
e de Francisco, São Francisco do Canindé,
também de Cícero, meu Padrim
(abaixo o casamento civil,
viva o Imperador!),
e os papagaios pândegos de sol;
eu escutei, Thiago, 
abaixe, por favor, o ouvido, e sinta —
palpita nas beiradas destes chãos,
eu vi, compadre, foi assim mesmo,
cantavam, escutem,
estão cantando agora:
o canto de cantar,
o canto de guardar.

E depois, Thiago, tu me dizes que a casa só morreu
— que não morreu,
eu sei, é mentira o que disseste,
a casa está “lá”, sempre esteve —
num silêncio de limo,
num silêncio de folhas,
que também de telhas...
as telhas de um céu
insuportavelmente
estrelado.

Uma risca de telhados rentes,
que rentes com o chão das águas
ficaram os telhados da casa velha;
rentes, formavam os telhados e as águas uma risca só,
d’água e telhas, rentes;
rente também o salto do peixe
na prata pura que lhe renteia fúlgida uma chispa de sol
por entre os cipós do igarapé e o meu grito:

e subitamente um brilho fugaz:
eram uns orvalhados
na minha face seca,
qu'eu rapidamente enxuguei,
de vergonha e belo,
com o espinhaço rude de minhas mãos,
só por fora:

um gosto de infâncias e águas, Thiago,
parece que era:

errei todos os tiros.

E dos tiros estalados da mucunã da seca,
em onze águas lavada, a mucunã de veneno,
ainda assim, "veneno"
— está engulhando, mãe,
"num" quero mais não —
dizemos ao cuscuz nefasto da mucunã,
de só ela e nada mais;
também do vergastado vento seco desta tarde rubra,
e do fino pó destas terras vastas, daqui,
vamos fugindo, Thiago,
fugindo de muito sol
para nos afá
........... nos afagarmos
na vastidão terçã,
fugidos somos,
voltados somos,
outra vez fugidos,
outra vez voltados,
sempre assim, sumus,
às terçãs das terras submersas,
terçãs de naufragados corações da terra verde,
onde me plantei, Thiago;
perguntem, por favor,
indaguem por mim
ao pessoal de Barreirinha.
 


Salvador, noite alta, 28.12.1995



Notas sobre Thiago:
1. O poeta: Thiago de Mello, Brasil, 1926, Amazonas, Barreirinha, poema mais famoso Os Estatutos do Homem. Este poemeto é uma glosa — e homenagem — do poema Filho da Floresta, Água e Madeira, do seu livro Amazonas, Pátria da Água, Ed. Civilização Brasileira, sob o título VENTO GERAL. Tentei fazer um contraponto das águas de Thiago com os meus chãos de poeira, Ceará, referindo passagens minhas e dele, Thiago, a saber:

2. Âmago: "raça de âmagos", estrofe de Thiago, desejada libertação de sua (nossa) gente ribeirinha. Alburno: do meu poemeto O Domador, dissertação lateral sobre a mata atlântica e seus mistérios.

3. José, o Santo errado: do meu poema Siarah, quando comprovo que a escolha do Carpinteiro, como padroeiro, foi um erro para o Ceará: carpinas não gostam de chuva!

4. Couro de bode em cabelo: as chinelas de couro de bode, os pêlos diretamente no chão, era estratagema dos cangaceiros para enganar os rastejadores: informar que iam à esquerda quando estavam à direita.

5. Euclydes: Euclides da Cunha, supremo poeta da nacionalidade, Os Sertões, pronúncia popular "seu Ocrides", ou "seu Ocrídio". Os riscos da face eram os estudos, em moda à época de Canudos, fim do século passado, das expressões e formas cranianas, a partir de Gall e Broca (cientistas) e de Lombroso (jurista).

6. Santo Antônio: Antônio Vicente Maciel, dito Antônio Conselheiro, um "dos nossos", pois também cearense, de Quixeramobim. Poemas meus: Siarah e Psi, a penúltima.

7. Gerardo: Gerardo Mello Mourão, 1917, do Ceará, Ipueiras, Os Peãs e Invenção do Mar. Nertan Macedo: também poeta cearense, Cancioneiro de Lampião (integralmente no Jornal de Poesia), do ciclo histórico dos cangaceiros e fanáticos.

8. Humberto Teixeira: também do Ceará, poeta e letrista maior, de todas as grandes obras de Luiz Lua Gonzaga: Asa Branca, Assum Preto e outros e outros.

9. Ludugero e Otrope: dupla de "coronel e seu ajudante", do Nordeste, mortos em desastre aéreo na baía de Guajará-Mirim, em Belém, PA.

10. Almazona: pronúncia matuta, no Ceará. Estreitíssima ligação desses dois povos: águas e seca, a colonização do Norte, os soldados da borracha, a ferrovia Madeira-Mamoré, a conquista do Acre e outras epopéias: nossas. Vide poema meu, Siarah.

11. Antífona: poema meu, onde canto o fogo do sol destes braseiros. Macaco Caetano e O Domador: poemas meus, referências aos bichos.

12. "O senhor lembra de um barulho?": estrofe belíssima, de Thiago, rara ternura na evocação das infâncias, do poema Filho da Floresta.

13. "Abaixo o casamento civil, viva o Imperador": palavras de ordem em Canudos, confira em Vargas Llosa, Guerra do Fim do Mundo; em Ariano Suassuna, A Pedra do Reino. O movimento de Antônio Conselheiro era sobretudo religioso — prestigiando o casamento na igreja católica — e conseqüentemente contra o casamento civil, "republicano e do demônio". Era também monárquico, pelo retorno do rei, Dom Pedro II, e de Dom Sebastião inclusive.

14. "Os papagaios pândegos de sol": é de Thiago. "Canto de cantar, canto de guardar": do poema meu Tentação.

15. "Um céu insuportavelmente estrelado": também de Thiago. "Salto do peixe", da penúltima estrofe: poema meu, Antífona. "Mãos rudes": poema meu, Siarah.

16. Mucunã: semente que abre com o sol, em bom estalido, usada como recurso de boca, no desespero das secas. Venenosa, é necessário lavá-la em onze águas; dá um cuscuz insuportável.

17. Barreirinha: lugarejo de Thiago, onde este autor inverte as mãos do real e pede notícias dele próprio num lugar onde nunca botou os pés. Ou botou?


 



De Thiago de Mello

para SF:


"Celebro a felicidade que me deste com a tua poesia.
Conseguiste um novo idioma que é só teu".
 



Thiago de Mello
Leia a obra de Thiago de Mello

 

 

Da Vinci, La Scapigliata

Início desta página

Ricardo Alfaya

 

Nilto Maciel

 

From: "niltomaciel" <niltomaciel@uol.com.br>
Sent: Friday, August 24, 2007 7:22 PM
Subject: Sobre o poema de hoje à tarde

 Estive com Soares Feitosa e ouvi dele o poema “Thiago”, o poeta Thiago de Mello. Ouvi um canto de amor ao Ceará, ao Siarah, à sua gente, às suas águas (seu mar, que Alencar cantou nos versos românticos de Iracema, poema em prosa dos mais belos da língua portuguesa), suas criaturas, anônimas ou históricas.

Lido, agora, em silêncio, senti os mesmos arrepios de ouvinte, embora não saiba ler como ele, nos gestos, na entonação das palavras, dos versos, no saber falar, dizer. Poema épico, sim, e, ao mesmo tempo, lírico.

O poeta fala de si como se falasse de todos nós, cearenses, amazônicos. Thiago é ele também, assim como ele é Thiago. Pois ambos são poetas de versos que se não podem conter nas páginas pequenas dos livros. Transbordam, feito o Amazonas. Inundam ilhas, arquipélagos, o vasto mundo, como se tsunâmis fossem. Vão mais além, como os tubarões e as baleias no mar, como as águas que se espalham pelo chão do Norte, como os olhos que tudo vêem, como as lágrimas dos que choram para regar o chão.

Um poeta falando a outro, às vezes em tom de brincadeira, mas sempre com muita ternura.

Fortaleza, 24/8/2007.

Nilto Maciel