Álvaro Alves de Faria
Carlos Nejar faz a longa viagem ao fundo da memória
[in Jornal da Tarde, 06.03.1999]
No romance , terceira obra
em prosa de sua autoria, o poeta transparece seu ofício ao garimpar
palavras numa realidade de sonho, à moda de Juan Rulfo
Por Álvaro Alves de Faria
O poeta Carlos Nejar assegura que seu
destino foi sempre seguir contra a corrente. Nisso pode se incluir o
romance Carta aos Loucos. Um romance escrito por um poeta, o que
significa muito. O romance de Nejar é um livro denso, à maneira de
Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, mergulhado no que pode ser
chamado de profunda solidão do ser humano, uma longa viagem ao
ausente, ao que se perdeu e só existe na memória, no fundo da vida.
Não é à toa de Nejar usa cinco citações
como epígrafes, uma delas, a que mais cabe, de Robert Musil: “A
escrita é mais importante que a obra acabada; a escrita é a obra.”
Nejar segue isso à risca, garimpando palavras numa realidade de
sonho em busca de uma aldeia que tem o nome de Assombro. E nesse
lugar os seres são pessoas invisíveis que percorrem a paisagem como
sombras, numa literatura com toque de mágica.
Em Rulfo, um personagem diz: “Eu tenho
guardada minha dor em lugar seguro. Não deixes que te apague o
coração.” As construções literárias de Rulfo em Pedro Páramo são
notáveis, porque têm gosto de terra. Em Nejar o clima é o mesmo,
envolvido numa poesia muitas vezes ferida, outras marcada de
deslumbramento sobretudo enraizada no sonho. Os personagens de Nejar
dizem: “O espírito em nós é como a água. Ao parar, apodrece”; “... é
que educar a loucura encilha, aos poucos, o trotear da esperança”;
“É noturna a infância dos mitos: somos a história ou a fábula”; “O
sonho é que nos pode falar de seus cativos, eu não. Quem pode
sonhar, sonhe e veja. O que é do sonho, é do sonho”; “A loucura é a
sensatez do tempo. E o tempo, o sonho que do vive.”
Aí se vê a diferença de um romance
escrito por um poeta. A própria linguagem se faz com outra voz.
Carlos Nejar observa que existe um preconceito de que um poeta não
pode ser romancista. E de que um romancista não pode ser poeta:
“Descobri que, ao escrever poemas, escrevo os sonhos. E, ao escrever
romance ou novela, escrevo os pesadelos.” Assinala que, às vezes,
utiliza a alegoria para flagrar o que sucede ao homem. Assim, Carta
aos Loucos é uma tentativa de perceber o maravilhoso na busca da
verdadeira sabedoria: “Após os 50 anos, dei-me conta de que minha
memória do esquecimento está bem mais criativa do que a minha
memória da lembrança.” Adianta que seu romance é feito do que lembra
para o futuro, já que é o passado que aperfeiçoa o que há por vir.
Em sua viagem pelas palavras, Nejar já
experimentou a prosa, com as novelas Um certo Jaques Netan, de 1991,
e O Túnel Perfeito, de 1994. Essa linguagem levou Antônio Houaiss a
escrever que a criação tão intensa e passional em Nejar busca
atingir os ápices da solidariedade humana.
A busca da aldeia Assombro passa por
muitos vultos, já que as sombras sempre estarão presentes. Nunca
será possível apagá-las das paredes, dos vitrais, das janelas, das
portas, do chão onde se fincam e permanecem a observar com olhos
antigos, antepassados. O olhar inerte que passa pelas doenças, pelas
mortes, gestos perdidos, pela reminiscência da dor, do ferimento
aberto. Mas, antes de tudo, é uma narrativa da possibilidade do
sonho.
Nejar explica que o romance
contemporâneo, com honrosas exceções, tornou-se tão sofisticado, tão
árido de pensamentos, que é preciso voltar à fonte da poesia para
sobreviver. O retorno a Homero, à escrita ligada ao poder mágico da
linguagem, acima dos gêneros, mesclando a todos com sabedoria. Ele
observa que o romance só é grande quando alcança a plenitude da
linguagem pela poesia. Cita Dostoiévski, Proust, Guimarães Rosa,
Clarice Lispector, Rulfo e Cortázar como exemplos, entre outros, de
autores que “fizeram a palavra voar, por tocarem a poesia”. E, como
poeta, garante que “à medida em que se chega à linguagem primitiva
chega-se ao coração do homem de todos os tempos”. Observa que a
poesia pode estar na linguagem e na ação do romance. Trata-se de um
território mítico. No seu romance, um território onde o mágico vê e
“o instinto poético conduz à verdade que não precisa de prova”, como
quis Valéry.
Carta aos Loucos é uma fábula ensinando
que “a loucura dos homens crê sobreviver matando sem parar”. Ou
ainda que os sonhos são mais caridosos e reais que as próprias
dádivas. Por fim, o arremate do autor dentro do livro, vestindo as
sombras do seu personagem: “Não escrevo: risco fósforos, risco a
memória como um fósforo na sua pequena caixa. E cada palavra tem sua
memória. Riscar palavras é acender a memória.”
CARTA AOS LOUCOS, de Carlos Nejar. Record, 222 págs.,
R$ 20,00
Página de Carlos Nejar
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