Adelto Gonçalves
Canção para Sophia
LIVRO
DE SOPHIA, de Álvaro Alves de Faria, com textos de apresentação de
Graça Capinha, professora de Poesia e Poética Contemporâneas da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e de Miguel Sanches
Neto, poeta e escritor brasileiro.
Editora Palimage, Coimbra, Portugal.
I
O
mais português dos poetas brasileiros. É assim que o poeta
Affonso Romano de Sant´Anna (1937) define Álvaro Alves de
Faria (1942), poeta lírico brasileiro que acaba de lançar
Livro de Sophia, poema longo dirigido a Sophia de Mello
Breyner Andresen (1919-2004), escrito a 2 de julho de 2004,
dia em que ouviu o anúncio do seu falecimento, por
coincidência num período em que estava em Portugal e se
sentiu na obrigação de fazer esta homenagem a uma das
maiores poetas da língua portuguesa, distinguida em 1999 com
o Prêmio Camões, em 2001 com o Prêmio Max Jacob de Poesia e,
em 2003, com o Prêmio Rainha Sofia de Poesia
Ibero-Americana.
Naquele dia, tomado de grande emoção, passou a escrever, por
horas seguidas e em vários recantos lisboetas, o grande
poema que a Sophia dedicou. “Na verdade, apenas conversei
com ela, a andar por Lisboa, a falar com ela sobre o poema e
a poesia, até que de mim se despediu, já madrugada,
desaparecendo assim como surgiu”, escreve na abertura do
novo livro.
Filho de portugueses, Faria, em sua maturidade, tem feito
uma poesia que se tem caracterizado por uma busca de suas
raízes pessoais, talvez decepcionado com os rumos que o seu
país vem trilhando nos últimos anos, depois que a
redemocratização mostrou a verdadeira face daqueles que,
misturados aos que de coração lutavam contra a ignomínia que
representava o regime militar (1964-1985), o que mais
queriam eram uma oportunidade para se locupletar com as
benesses do Estado. Talvez por isso, nos últimos anos, Faria
vem fazendo na poesia o que o também poeta Miguel Sanches
Neto (1965) definiu como “uma longa viagem de volta”. E que
pode ser constatada neste trecho da elegia a Sophia de Mello
Breyner: (...) Estou na tua terra, Sophia, em busca desse
poema que me falta, no teu país em que me percorro na minha
intimidade como se assim pudesse ainda salvar minha alma de
poeta que fui. (...)
O
desencanto do poeta com a poesia que se pratica no Brasil
vem de longe, desde a década de 1960, quando o seu fazer
poético foi questionado e, de certo modo, colocado de lado
pela então vanguarda do movimento concretista. Ao lado de
Mário Chamie (1933) e dos poetas influenciados pela geração
beat norte-americana, Faria ficou imprensado entre o regime
ditatorial que ceifava a liberdade de pensamento e a
ortodoxia dos corifeus do movimento concretista -- Haroldo
de Campos (1929-2003), Augusto de Campos (1931) e Décio
Pignatari (1927) --, que atacavam a produção poética da
época, dominada pela geração de 1945, a quem acusavam de
verbalismo, subjetivismo, falta de apuro e incapacidade de
expressar a nova realidade gerada pela revolução industrial.
Defendendo o experimentalismo na linguagem a qualquer preço,
a abolição do verso tradicional e o uso de uma linguagem
sintática, além da utilização de neologismos e
estrangeirismos, os concretistas, praticamente, ocuparam
todos os espaços na imprensa cultural e nos meios
universitários de São Paulo. Até porque não incomodavam o
poder. Radicais sem causa, acabaram, praticamente, por
erradicar o lirismo da poesia brasileira, como se percebe na
acusação implícita que o poeta parece lhes dirigir nestes
versos:
(...) No
Brasil, Sophia, a poesia não existe mais,
morta que foi a golpes brutos
que dela fizeram uma sombra que não se distingue,
de tal sorte
que o poema desfeito mais se desfez no próprio nada,
retrato que não se nota,
imóvel no seu féretro,
imagem inútil dos poetas à margem da poesia. (...)
Em
tom coloquial, entre a epístola e a prece, como bem observa
Graça Capinha na apresentação, o poeta faz recordar Alberto
Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa (1888-1935), ao
escrever um “poema que não é poema”, “que se nega como
poema”.
(...) Não sei se percebes, Sophia,
já que neste poema que não é poema,
faço a fotografia possível do que me invade
com a notícia de que deixas o mundo.
O que se salva é a poesia feminina,
esse olhar que diferencia o poema. (...)
II
A
extensa obra da homenageada não se resume aos domínios da
poesia, abrangendo também a ficção, o conto para crianças, o
ensaio, o teatro e a tradução, como provam magníficas
versões que fez de textos de Eurípides (c.485 a.C-406 a.C),
William Shakespeare (1564-1616), Paul Claudel (1868-1955) e
Dante Alighieri (1265-1321). Mas foi sempre na poesia que se
destacou, desde que publicou o livro Poesia (1944), que
contém versos que definem uma questão central em sua obra,
como aponta Clara Rocha em texto que consta do site do
Instituto Camões, de Lisboa: a relação entre poesia e magia.
Esses versos são os seguintes:
Palavras que eu despi da sua literatura,
para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
de fórmulas de magia.
“Pode dizer-se que constituem a primeira arte poética de
Sophia e a mais importante deixa para os livros
subseqüentes”, acrescenta Clara Rocha.
Nascida no Porto, no seio de uma família aristocrática,
Sophia, principalmente depois de casar em 1946 com o
jornalista, advogado e político Francisco Sousa Tavares
tornou-se atenta às questões sociais do seu tempo, assumindo
uma atuação cívica, tanto antes como depois do movimento de
25 de abril de 1974, que devolveu a democracia a Portugal:
esteve sempre na oposição ao regime ditatorial de António
Salazar (1889-1970) e na defesa das liberdades, foi
co-fundadora da Comissão Nacional de Socorro aos Presos
Políticos, presidente da Assembléia Geral da Associação
Portuguesa de Escritores e, após o movimento de 1974,
deputada na Assembléia Constituinte.
De origem dinamarquesa por parte do pai, a sua educação
decorreu num ambiente católico e culturalmente privilegiado
que influenciou a sua personalidade.
Freqüentou o curso de Filologia Clássica na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, talvez em função de seu
fascínio pelo mundo grego, o que a levou igualmente a viajar
pela Grécia e por toda a região mediterrânica. Não chegou,
porém, a concluir o curso.
Um
de seus filhos, Miguel Sousa Tavares (1952), é hoje
jornalista consagrado em Portugal e autor de romances de
êxito também no Brasil, como Equador (Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 2004) e Rio das Flores (são Paulo,
Companhia das Letras, 2008).
Sabendo-se agora um pouco da história da homenageada,
pode-se ler melhor o poema de Faria, profundo conhecedor de
sua obra, que, quase ao final de sua canção, diz:
(...) Tua nau, Sophia, que atravessa o mar que te cobre,
o vento que sopra partidas nas horas próximas,
a sombra que te abrange em tuas distâncias,
o cigano Cristo que te dá as mãos,
as águas que amaste com olhos de sal,
tua cidade do Porto já antiga na tua memória,
quase desaparecida palavra de um poema esquecido,
teus deuses gregos a correr ausências pelas florestas,
teu grito no grito grave do grito para dentro,
como quem fala observando os temporais. (...).
III
Para se ter uma idéia do retorno de Faria às suas raízes
lusitanas, basta ver que, nos dez últimos anos, publicou
sete livros de poesia, seis deles em Portugal. Pela ordem:
Vinte poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra
(1999), Poemas Portugueses (2002), Sete anos de pastor
(2005), A memória do pai (2006), Inês (2007) e agora este
Livro de Sophia.
Nascido na cidade de São Paul, Faria é jornalista e
escritor, com mais de 50 livros publicados, entre poesia,
romances, crônicas, contos, ensaios, livros de entrevistas
literárias e peças de teatro, uma delas sobre Augusto dos
Anjos (1884-1914), que considera o único poeta brasileiro
universal.
No
Brasil, publicou neste ano Os melhores poemas, numa das
coleções mais importantes da literatura brasileira, com
seleção e ensaio de Carlos Felipe Moisés, e ainda uma nova
edição de O Sermão do Viaduto, com o ensaio “Álvaro Alves de
Faria e seu Sermão do Viaduto para o mundo”, de Aline Bernar,
doutoranda na Universidade de Coimbra sob a orientação da
professora doutora Graça Capinha.
O Sermão do Viaduto é constituído por poemas que foram lidos
em recitais publicados realizados no Viaduto do Chá, no
centro histórico de São Paulo, no início da ditadura militar
(1964-1985). O poeta realizou no local nove recitais, com
microfone e alto-falantes, e, acusado de subversão, foi
detido pela polícia cinco vezes.
Em
2007, foi homenageado no X Encontro de Poetas
Ibero-americanos, realizado em Salamanca, na Espanha, nesse
ano dedicado ao Brasil. Teve, então, uma antologia de seus
poemas publicada no evento, Habitación de olvidos, com
seleção, ensaio e tradução do poeta peruano-espanhol Alfredo
Perez Alencart. Seu livro Babel – 50 poemas inspirados numa
escultura do artista plástico Valdir Rocha –, publicado em
2007, recebeu o Prêmio da Academia Paulista de Letras como o
melhor livro de poesia do ano.
Crítico literário e jornalista cultural, Faria escreve para
várias publicações questionando a poesia que se faz hoje no
Brasil, que considera “mergulhada numa densa escuridão,
descontadas algumas exceções”. Mantém ainda uma participação
constante num programa noturno da Rádio Jovem Pan, de São
Paulo, em que igualmente faz comentários sobre lançamentos
de livros de poesia.
(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003).
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