Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Álvaro Alves de Faria



 


Na contramão


 


 

Passo a ser um exilado da poesia brasileira. Graças a Deus. A ordem agora é manter distância de muita gente. A mediocridade cansa. Chega uma hora em que não dá mais para conviver com ela. A saída é a poesia de Portugal. Pelo menos para mim. Cansei também desse jornalismo que se diz cultural e que não tem compromisso com absolutamente nada. É o desencantamento completo. Pobre poesia brasileira, descontadas algumas exceções. Sou de uma geração de poetas, dos anos 60, que é feita de alguns nomes sérios. Cansei de ver nomes de “poetas” inventados da noite para o dia pela chamada mídia cultural, que não resistem a uma crítica razoável. Cansei desses que ocupam as redações com as regras do AI-5 ainda debaixo do braço. No tempo da ditadura militar era mais fácil. No tempo da ditadura militar eu criei e editei por doze anos o suplemento cultural do extinto Diário de São Paulo. Era um suplemento democrático. No fechamento, nas sextas-feiras, muitas vezes tive um censor da Polícia Federal ao meu lado. Hoje os censores são outros, muito piores. No tempo da ditadura militar eu fui preso cinco vezes pelo Dops, por falar poemas no viaduto do Chá (“O sermão do viaduto”) com microfone e quatro alto-falantes. Mas no tempo da ditadura era mais fácil. Eu vivo num país onde o presidente da República é um traidor de si mesmo. Se não é traidor de si mesmo, então mentiu a vida inteira. As duas circunstâncias são lamentáveis. Eu vivo num país onde o ministro da Cultura se vangloria de ter fumado maconha até os 50 anos. É uma questão de gosto. Ao país não diz respeito. Eu vivo num país onde uma revista de circulação nacional publica o anúncio de uma caneta que custa 640 mil reais. É uma afronta. Eu vivo num país em que a classe política é sórdida. Eu vivo num país em que guerrilheiro do Araguaia se transforma num boneco. Eu vivo num país onde Cazuza é chamado de poeta de uma geração. Mas o que é que isso tem a ver com a literatura, com a poesia, com o jornalismo ? Tem tudo a ver. O tal jornalismo cultural é um jogo de cartas marcadas que faz e desfaz da informação ao bel prazer. A mediocridade reina, é forte. Os que me têm como uma pessoa recatada e até delicada estão assustados com estas afirmações. Mas é assim mesmo. Cheguei de Portugal onde fui lançar meu novo livro de poemas “Sete anos de Pastor”. Antes de viajar dei uma entrevista ao poeta Floriano Martins, de Fortaleza, para a revista “Agulha”. Abri a alma. Deixei que falasse por mim. As minhas declarações assustaram muita gente. Floriano teme que eu passe a idéia de ser uma pessoa ressentida. O poeta Carlos Felipe Moisés pede-me ponderação. Diz, com razão, que não posso generalizar. Afirma que apesar de tudo existem pontos positivos na poesia brasileira e também no jornalismo cultural. Lembra-me que sempre foi assim. Não mudou nada. Está certo, até porque não gosto de generalizar nada. Mas a democracia ainda não chegou à informação cultural. Eu sou jornalista. Como crítico de literatura recebi por duas vezes o Prêmio Jaboti de Imprensa. Sei bem o que e do que estou falando. É duro dizer, mas no tempo da ditadura havia mais democracia nos meios culturais e na mídia. Não dá mais para conviver com isto. Em relação à poesia e à literatura em geral, esse quadro melancólico ocorre também nas universidades. Uma vez, em Portugal – mais exatamente na Universidade do Porto - o poeta Ferreira Gullar me disse estar cansado, por exemplo, de ler textos sobre Baudelaire escritos por pessoas que nunca leram um único verso de Baudelaire. Disse-me que os suplementos culturais estão sendo editados sem consciência do que se está fazendo. Gullar tem razão. É muita leviandade. É muita ignorância pura e simples. Sem falar na má fé, no mau caráter. O Brasil é um país sem sorte. É uma angústia. É o país da música sertaneja. Da poesia usada por alguns facínoras que não teriam vez num país civilizado, com jornalismo cultural honesto. Essa lástima também atinge a prosa. O conto. O romance. Será sempre preciso ressalvar que existem as exceções. Existem. Mas está demais. É um jogo de favores mútuos. E assim o jornalismo cultural caminha neste país infeliz. Sou um poeta exilado da poesia brasileira. Graças a Deus. Encontrei minha libertação. Estou fora e – convenhamos – isso não vai alterar em nada a ordem das coisas. Tenho um poema que faz parte do livro “A Palavra Áspera”, publicado no Rio de Janeiro em 2002, que termina assim: “Toda a poesia brasileira/ guardo numa caixa de sapatos/ e ainda sobra espaço/ para as coisas que não desejo mais”. Esses versos nunca me serviram tanto como agora. Toda a poesia brasileira cabe numa caixa de sapatos. Cansei das vaidades. O que vale mesmo é o poder. É o marketing. O que vale de verdade é a sordidez. O constrangimento é absoluto. Os que conseguem ainda pensar neste país talvez tenham ainda o direito de se indignar. Mas eu não tenho muita certeza disso. Pensar está difícil. Os livros da turma, por exemplo, aparecem em longas matérias com fotos coloridas em todos os suplementos culturais especialmente de São Paulo e Rio de Janeiro e em todas as revistas num mesmo final de semana. Os textos são todos parecidos. Há até palavras de elogio repetidas. Frases inteiras. Tudo igualzinho. Tudo orquestrado. Some-se a isso alguns “jornalistas” que escrevem sobre tudo e até se dizem escritores. Na verdade, são servis e medíocres. Os poetas e escritores verdadeiros estão escondidos. Não há espaço para eles. Não há espaço para a boa poesia. Não há espaço para a boa prosa. A minha saída particular foi buscar em Portugal a poesia que me falta no Brasil. Repito: isso não vai mudar em nada a ordem das coisas. O Brasil é um país de muitos poetas e nenhuma poesia. A poesia brasileira é assassinada todos os dias por gente inconseqüente, com a ajuda de um jornalismo cultural leviano e mentiroso, com algumas poucas exceções. Alguns amigos dizem, como Floriano Martins, que eu corro o risco de parecer uma pessoa ressentida. Eu esclareço: não pareço, eu sou uma pessoa ressentida. Mas prefiro dizer indignada. Não dá mais para conviver com isto. Acho mesmo que sou uma pessoa muito antiga. Uma pessoa ainda romântica. Uma pessoa que ainda acredita na poesia. Tanto que busco em Portugal a poesia que me falta neste país de equívocos. Tenho 19 leitores em Portugal. Tento respirar. No Brasil é sufocamento. No Brasil é suicídio lento. Como não tenho tendências suicidas, fujo para longe. Graças a Deus nada mais tenho a ver com a poesia brasileira. Uma poesia que está a merecer mais respeito. Chega de vândalos e aventureiros. Na ditadura militar era mais fácil.

Álvaro Alves de Faria é jornalista, poeta e escritor. Autor de, entre outros, “20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra” (1999), “Poemas Portugueses” (2002) e “Sete Anos de Pastor” (2005), publicados em Portugal e “Trajetória Poética – Poesia Reunida”, Editora Escrituras, Prêmio APCA-2003.
 

 

 

 

 

26/08/2005