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Compadre
Primo
MOTE GERAL:
A infância, o chão,
os matos, as pedras,
os céus, as águas,o sertão,
os bichos grandes e miúdos,
oficinas e tralhas,
cheiros, e sons!
Mofumbos & alecrins, perfumes.
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CANTO PRIMEIRO - TRAVESSIA
Passinho
miúdo, pedregulho da serra,
Padrim Ulisses, a burra Faceira
garupa, o primo, molecote, meu igual.
Quarenta...
e lá se vão pedradas.
Foi ontem!
Vicente,
o tio, brabo e valente,
montaria Jandaíra. E eu também...
— Brincamos ou brigamos?
Perguntou
o padrim aos dois meninos.
Nem
precisava:
primos, destino;
séculos, amizade:
Compadres!
Oito
léguas, mas chegamos.
Chovia,
paraíso:
fazenda Bom-Jardim,
sertão do Tamboril,
terras de Siarah!
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CANTO SEGUNDO - CAÇADAS
Diz
o governo que não pode.
Naquele
tempo, podia:
caçar passarim.
Era
craque o primo.
terror da floresta,
na mira da baladeira,
inverno,
em terras de Siarah,
mofumbos, alecrins:
perfumes... a mata
cheia.
Não
podia era tirar ninho,
nem judiar do inocente,
nem abrir-a-porteira-do-curral,
nem mangar do desvalido,
nem desrespeitar o mais velho,
nem deixar de socorrer, doente, o animal.
Tocar
fogo no capim?
Nem
pensar,
pois o Cão "aparecia"...
Tudo
isso estava escrito
no Segundo Livro,
de Felisberto,
feliz que escreveu;
de Carvalho,
imortal!
E,
fielmente obedecido.
Quarenta...
e lá se vão pedradas!
Foi ontem!
Pois
caçar,
naquele tempo, podia!
Primo
meu, mira afinada,
fogo-pagou, juriti, jaçanã...
terror da mata, o primo.
entre espinhos da faveleira,
atirava,
eu ia buscar.
Crime
dos crimes:
do beija-flor, troféu de glória,
o coração, antropófagos,
comíamos, para atirar melhor.
A
mim nunca adiantou a mandinga:
Remorsos, hoje, do inocente beija.
Atirava no que via,
matava o que não via.
Matava?
É
um modo-de-dizer.
acertava na pobre da lagartixa,
confirmatória,
jiboiada na cerca do curral.
Primo
meu,
quarenta, primo, lá se se vão:
ainda acertarias no Sibite em pleno vôo?
[...] ou
à raiz de teus cabelos parcos
(pensei, apenas pensei)
haveriam de tremer
no ar
a mão,
o olho,
a baladeira,
a pedra,
e no tempo,
o tempo?
—
Cadê tua baladeira?
Não, não, Compadre-primo,
eu sei que tu acertas!
Embainhes tua arma,
mestre Sibite
agora é nosso compadre,
tem filhos para criar...
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CANTO TERCEIRO
A LETRA TÊ, EM TACHINHAS
Íamos
traquinar nas tralhas,
da oficina do avô, Joaquim.
Tinha a bésta, de madeira e relho,
do meu já falecido pai, Tatim.
A
letra T, em tachinhas...
Na madeira da besta,
um T,
igualzinho ao das cadeiras lá de casa.
A
besta é dele,
disse um tio, Quinzim:
Eu ajudei a fazer... a mobília também.
Não é para mexer...
É dele...
Um
proibido tão fraco, esse do tio...
Pareceu até achou bom,
os meninos...
dos meninos que um dia,
ele também...
Cúmplice,
saiu fininho,
fez de conta que não viu!
Pois
mexemos e traquinamos!
Alguém
fazia outra coisa?
Casaca-de-couro,
um ninho imenso,
na canafístula, lado da casa,
inocente, pagou o pato.
Perdemos a flecha, da besta.
O
avô, o tio e o "dono",
até hoje,
não sabem da traquinagem.
Foi bom!
Ah,
meu Tempo,
que me avoe o velho Sibite,
que me perdoe o Beija.
Flor, flores...
Longos anos , mestre Casaca,
felicidades, comadre Jaçanã.
Mas,
vocês rezem,
rezem muito,
sempre chega uma nova safra...
os moleques, de baladeira!
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CANTO QUARTO
REZAS & PAÇOQUINHA
Francisquinha,
nossa avó:
meu netim, uma paçoquinha,
de gergelim, com rapadura.
E
nos ensinou o Ângelus:
Angele Dei, qui custos es mei...
Anjo do Senhor, que és o meu guarda...
Às seis da tarde, recomendava.
E
se benzia!
Por
que, compadre,
a gente não reza mais?
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CANTO QUINTO
PERIPÉCIAS
Depois,
nas montarias,
mais quatro léguas,
Sítio-do-Meio, de Raimundo, tio.
Os primos e os moleques, do nosso tope.
Foi festão!
E
corríamos nos jumentos.
Nas jumentas, ainda não,
não era tempo.
E
traquinávamos;
e traquinávamos!
Um
capuxu,
ferroadas...
doeu!
A
prima,
a farda do patronato,
Crateús,
fim do mundo, diziam.
Tão longe...
depois ficou perto...
agora é longe...
Como
pode?
menino, longe;
taludo, perto;
velhote, outra vez é longe...
esse mesmo Crateús!?
É muito longe!
Sal,
água morna,
a bacia de ágata,
a toalha de cheiro:
lava-pés de rei!
E tirava os espinhos,
branca, listras azuis,
belíssimas!
A farda,
a prima!
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CANTO SEXTO
"BENÇAS"
E
a papa de farinha-do-reino?
E a coalhada, da ceia?
A carne seca, do bode, assada...
Tudo com rezas e benças
aos mais velhos, dos meninos.
—
Meninos...?
—
Velhos?
Ver
fabricar o queijo, primo;
o queijo do Tamboril, famoso,
da fazenda Bom-Jardim, melhor,
das terras de Siarah;
a coalhada ainda quente, fiapando...
—
Não mexe, menino!
Dizia a preta Tonha.
—
Tome um pedacim, meu netim!
E chamava pra perto.
As
beiradas, da prensa, à noite,
quem não comeu, (rangindo),
o queijo,
salte esta linha, pois inocente,
não sabe o que é bom!
Foi
ontem!
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CANTO SÉTIMO
ALMANAQUE & ALMANAQUES
Tem a história do Almanaque:
Vô
Joaquim, para ficar forte,
comprou um biotônico.
Não é que tinha um almanaque.
Ilustrado!
Até
o galo, de botas e esporas,
a onça,
a terrível onça, comedeira dos bodes,
de um murro só, Zeca matou-la!
—
Tu não te lembras?
Pois foi lá que "li o Almanaque".
E não me canso de "ler almanaques".
Até hoje!
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CANTO OITAVO
CHEIROS & SONS
Compadre-primo,
eu te digo:
o estrume da Mimosa,
o bodejo do Caprichoso, nas cabras...
Cheiros
e Sons!
Foi
ontem.
Não,
não foi ontem,
foi ind’agorinha!
Pra
lá,
compadre bode,
pra cá, minha vaquinha.
Safado
todo,
o Caprichoso, compadre!
Ah, compadre, a gente olhava...
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CANTO NONO
RETORNAR, QUANDO CHOVER
Antes
que a ceifeira chegue,
e que não chegue já...
Eu
te convoco:
Vamos tomar emprestado
os pulsantes
dos beijas:
aqueles,
daquele tempo
—
Será que a gente agüenta?
(É
melhor quando chover)
Selar
a Faceira,
a Jandaíra,
e chamar
o Padrim,
e para ir junto,
o tio,
Vicentim.
E,
coragem,
cavalgada ligeira,
voltar lá,
Bom-Jardim!
É
que eu tenho de voltar lá, compadre,
para pegar
a besta,
aquela,
das tachinhas
...
... ... ... É "minha"!
—
E a flecha?
—
O Compadre me ajuda a procurar.
Recife, tarde, 26.09.93
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Notas de Compadre-primo
1 - Abrir-a-porteira-do-curral:
entre os 'pecados' dos meninos, logo abaixo do desrespeitar
pãe e mãe, tios inclusive, estava a
traquinagem de abrir a porteira do curral, de manhã
bem cedo, com o que os bezerros entrevam e mamavam todo o leite.
Pecadíssimo, bem mais grave, seria tocar fogo no
capim - bastava pensar, que o Cão, o famosíssimo
Cão do Segundo Livro, da obra didática
de Felisberto de Carvalho, aparecia para carregar o capetinha
colega.
2 - Felisberto
de Carvalho: Os livros eram quatro: Primeiro Livro de Leitura,
Segundo, Terceiro e Quarto, do referido Felisberto de Carvalho
e mais os Pincipios de Arithmética, de Antônio
Trajano, depois as famosíssimas coleções FTD.
Duravam os livros de bisavô a neto. A literatura da época
incluia o Lunário Perpetuo e os almanaques, Capivarol,
Bristol, Fontoura - onde Monteiro Lobato divulgava o Jeca-Tatu
- estampas (belíssimas mulhres) do sabonete Eucalol.
A expressão "dei até o terceiro livro" significava
ter estudado inclusive o terceiro livro de Carvalho, o que,
dizia minha mãe, ganhava das oitos séries atuais.
Parece que ganhava. Ganhava mesmo, com certeza. E tome bolo,
na sabatina.
3 - Cão-do-Segundo-Livro:
Faz parte da famosa coleção de Felisberto de
Carvalho, o Segundo Livro, que lá pelas tantas trazia
a história de Ernesto, capetíssimo, que mexia nos ninhos
e, pecado maior, mexia neles durante a queresma. Levanta-se de
noite, abria a porteira do curral, botando o bezerros para
mamar, de modo que, de manhã, adeus leite, adeus queijo!
A mais grave das traquinagens do tal Ernesto é que num
belo dia resolveu tocar fogo na pastagem, deixando os pais
na penúria, porque o gado não teria o que comer
tão cedo. O Cão, um bicho terrível, cascos de burro (chifres do Cão mesmo,
imensos, que corno algum do trecho os
teria tão medonhos), aparece a Ernesto, pronto para levá-lo.
Na gravura, os cabelos arrepiados do menino, um berro escancarado de
mais de palmo, o fogaréu no pasto e o tal Cão, soprando enxofre,
já agarra e não agarra! Por um triz! Aquilo era a nossa didática,
uma didática de rezas — Livrai-nos do Cão!, dizíamos.
Amém.
[Em
tempo: já rodei Ceca e Meca à procura dessas
antigas coleções: Livros de Leitura I a IV, tanto
de Felisberto de Carvalho como de Erasmo Braga. Quem conseguir,
por favor, gostaria de ter nem que fosse uma xerox. Reembolsarei todas as
despesas.]
Consegui os livros de Felisberto de Carvalho!
O cão do poema não é mesmo de Felisberto. Confira aqui, por favor.
4 - Coração
do beija-flor: Corre a lenda no sertão de que o
menino que comer o coração do beija-flor, pasmem, ainda
"batendo", cru, ficará arteiro na pontaria da
baladeira. Por certo, um sacrifício ritual - teria origem
nos sacrifícios das civilizações pré-colombianas
do Novo Mundo, o coração, também pulsante,
das virgens imoladas? O poeta, como todo menino, comeu também,
mas de nada adiantou... óculos desde muito pequeno,
quando muito acertava na pobre da lagartixa, um alvo imóvel, uma injustiça!
5. - Letra T,
em tachinhas: A mobília de madeira ou de couro, no
Ceará, era marcada com a inicial do dono, com pregos de cabeças arredondadas,
as tachinhas, aqui retratadas tanto na besta de madeira como
nas cadeiras ainda hoje existentes na casa da mãe do
poeta, lá-em-casa. O pai do poeta chamava-se Francisco,
(apenas no registro de nascimento), pois era conhecido no trecho
Serra das Matas-Serra da Ibiapaba, (Ceará) onde comboiava
uma tropa de burros e de jumentos, com rapaduras e farinhas,
como Tatim. Numa dessas viagens, de "grande conforto", em meio
aos garajaus e aos caçoás, quando o casal passava
pela cidade do Ipu (19/jan/44), nasceu o poeta, mas, no mesmo 19, algumas horas antes
do nascimento, o pai, Tatim, suicida-se, sem ter tido o prazer
de ver o filho, único. O pai agonizou até o alvorecer do dia 20.
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