Abilio Terra Junior
Uma “tribo” da grande cidade
Regina nascera
em uma pequena cidade do interior de São Paulo. Sua família era
numerosa e lutava com dificuldades. Assim que atingiu idade
suficiente viajou para a capital, usando a reserva financeira que
conseguira acumular, trabalhando desde bem jovem como comerciária,
ou melhor, o que sobrou, pois também ajudava a família.
Em São Paulo,
foi morar em uma “república” de moças nos primeiros tempos e
arranjou emprego em uma farmácia, perto do apartamento onde morava.
Em pouco tempo foi promovida, pois era esforçada e rápida em seu
serviço. Com o salário que recebia conseguiu pagar uma faculdade, de
jornalismo, que era do que gostava. Conseguiu um estágio, em meio
expediente, em um jornal de porte médio. Logo começou também a se
destacar, passando pelas diversas seções do jornal.
Era bastante
idealista e apreciava as matérias em que podia defender as pessoas
humildes e carentes de recursos. Ficou revoltada, por exemplo,
quando cobriu uma matéria em que alguns mendigos haviam sido
agredidos com muita violência, provavelmente, por um “grupo de
extermínio”. Alguns faleceram e outros estavam internados em estado
grave em um Pronto Socorro. A cidade grande lhe apresentava, muitas
vezes, cenas que a deixavam horrorizada.
Certa noite,
saíra da faculdade e esperava o ônibus, muito cansada, pois a sua
jornada diária era muito pesada e ainda enfrentava um frio e uma
garoa que a deixavam trêmula e enregelada, a despeito da pesada
blusa que usava. Notou um rapaz alto, vestido com um capote preto,
de cabelos compridos, pálido e fundas olheiras, também no ponto de
ônibus. Sentiu-se atraída por ele e viu que ele também a observava,
dirigindo-lhe olhares, debaixo do seu capuz.
Não tinha muito
tempo disponível para namorar, pois vivia correndo da sua casa para
o trabalho, o estágio e a faculdade, diariamente. Tentava descansar
nos fins de semana, mas nem sempre conseguia, pois tinha que cuidar
das suas coisas e ainda colocar os estudos em dia.
Ouviu uma voz
tímida comentar sobre o tempo. Era o rapaz, que se chamava Otávio.
Como o interesse era mútuo, a conversa se desenvolveu facilmente.
Ele morava para os seus lados, assim, tomaram o mesmo ônibus. Ele
também cursava faculdade, de Medicina, e tinha também o seu tempo
todo ocupado.
Começaram a se
telefonar e, volta e meia, arrumavam um tempinho para saírem juntos,
iam a um cinema, a uma cafeteria, a um barzinho. E o tempo foi
passando, a amizade inicial se transformou em namoro. Tinham muito o
que conversar e o que fazer, e encontravam muitos pontos de
interesse em comum.
Certa vez,
Otávio chamou Regina para uma festa, no apartamento de uma amiga.
Regina topou e lá foram eles. O apartamento era de luxo, situado em
um bairro nobre. Quando chegaram, já havia muita gente. Logo de
cara, Regina, que era muito observadora, notou certos traços comuns
entre os participantes. A grande maioria usava roupas em tons bem
escuros, eram quase sempre muito pálidos e olhavam para ela com um
interesse incomum, independente de serem homens ou mulheres. Regina
procurou “ficar na dela” e agir com naturalidade. Serviu-se de uma
bebida esquisita, esverdeada, que não conhecia e de uns salgadinhos
também “suspeitos”, que não lhe agradaram ao paladar.
Otávio a
apresentou a diversos amigos e amigas, entre elas, a dona da casa,
Leonor, também muito pálida e com cabelos muito negros, que
provocavam um contraste que a fazia atraente, embora não fosse
exatamente bela. Ela era professora, lecionava Ecologia em uma
faculdade, o que logo atraiu Regina. Além disso, Leonor era
escritora, seus temas eram, em geral, o fantástico, o sobrenatural,
a magia, a bruxaria. Considerava-se, na verdade, uma “bruxa
moderna”. Este último aspecto deixou Regina na dúvida, mas com as
didáticas e claras explicações de Leonor, começou a entender. Eram
práticas e conhecimentos derivados de “antigos mistérios”, como se
costumava chamar em seu linguajar, mas que não representavam perigo,
em princípio, para os seus participantes ou para outras pessoas.
De vez em
quando, alguns convivas, geralmente em duplas, desapareciam, iam
para outros cômodos do apartamento, que era bem grande.
Os “papos”
também não eram muito usuais, pelo menos para Regina que, lá pelas
tantas, começou a se sentir cansada e deu “uns toques” em Otávio.
Este entendeu e, então, se despediram, retirando-se.
Na volta para
casa, no carro já meio “combalido” de Otávio, Regina andou lhe
fazendo algumas perguntas, procurando satisfazer a sua curiosidade
diante de um ambiente tão novo e diverso para si. Otávio,
entretanto, desconversou, falando pelas metades, deixando-a ainda
mais intrigada.
Alguns dias
depois, Regina estava em um shopping, tentando descobrir qual
presente daria a Otávio no Dia dos Namorados que fosse do seu agrado
e que, ao mesmo tempo, não provocasse um “rombo” no seu controlado
orçamento pessoal. Enquanto observava alguns calçados expostos numa
vitrine, notou que alguém estava ao seu lado: - Oi, querida! uma voz
bem modulada fez com que se virasse na sua direção. Era Leonor, com
um animado sorriso. Regina sorriu também e retribuiu o cumprimento.
Leonor também estava fazendo compras, pela mesma razão. Começaram a
trocar opiniões sobre os presentes e se ajudaram, uma a outra, na
escolha. Era uma tarde de sábado e acabaram por lanchar juntas.
Conversaram sobre proteção ambiental, espécies em extinção e, é
claro, sobre os respectivos namorados. Já se sentiam a vontade. Foi
a própria Leonor quem tocou no assunto da festa e Regina, como boa
jornalista, acabou por fazer algumas perguntas capciosas a Leonor
que, por sua vez, as respondeu com tranqüilidade: - O que aquelas
pessoas iam fazer, quando sumiam de vez em quando? Não é nada do que
você está pensando. Eles iam fazer uma troca de energias entre si.
- Como assim?
perguntou Regina.
- Onde se
encontra a energia vital do ser humano? perguntou Leonor.
Regina ficou na
dúvida: - Seria no... sangue?
- É claro, meu
bem! No sangue! respondeu Leonor, com entusiasmo.
- E daí?
perguntou Regina. Continuo não entendendo!
- Ora, meu bem. Aquelas pessoas que sumiam da sala iam trocar sangue
entre si.
- O que?
perguntou Regina, arregalando os olhos.
- Sim, querida,
respondeu Leonor. – Trocar sangue. Porque não?
- Eu nunca ouvi
falar nisso em toda a minha vida! afirmou Regina, estarrecida.
- Sim, é
natural, respondeu Leonor. É uma prática pouco difundida. Mas existe
há muito tempo.
- Você quer
dizer, então, que vocês se alimentam de sangue? São vampiros,
portanto? perguntou Regina, já se sentindo desconfortável.
- Bom, se você
preferir chamar-nos assim... não nos incomodamos. – Você teria que
entrar no nosso mundo para nos compreender, replicou Leonor, sem
alterar o tom da sua voz.
- Não, obrigada!
respondeu Regina. – E o Otávio, pratica isso também? perguntou
Regina, com receio da resposta.
- Sim, claro que
sim! disse Leonor. – Às vezes, até nos arranja um suprimento extra
de sangue, lá do hospital onde dá plantão.
- Oh, meu Deus!
foi apenas o que Regina conseguiu dizer, já meio tonta e decidida a
sair dali o mais rápido possível.
Então, Otávio! O
seu querido Otávio, com quem se dava tão bem, não passava de um
vampiro! pensou consigo mesma.
Arrumou uma
desculpa, pagou a sua parte da conta, se despediu de Leonor, que a
olhava com um ar misterioso e tomou um táxi para chegar depressa em
casa.
Lá chegando, mal
se despiu, procurou uma garrafa de cachaça, da boa, que usava para
fazer caipirinhas e coquetéis, e já foi logo virando no gargalo
mesmo. Tomou alguns goles, amoleceu e desabou na cama, “apagando” de
vez.
O telefone
tocou, o celular também e, por fim, a campainha. Ela não ouviu nada.
Inúmeros
vampiros a perseguiam, com seus capotes negros, seus olhos desumanos
e avermelhados, seus dentes afiados que surgiam das bocas horríveis,
sujas de sangue. As faces eram lívidas e davam gritos horrendos,
animalescos, enquanto corriam atrás dela. Na frente deles, Leonor e
ao seu lado Otávio, já com seus rostos deformados e um mal cheiro
nauseabundo, que chegava até Regina. Ela não sabia o que fazer. Em
seu desespero, buscava um canto, um abrigo, onde pudesse se esconder
da turba sanguinária.
- Regina!
Regina! Ouviu uma voz distante. Abriu os olhos e viu Otávio sentado
na cama, ao seu lado. Deu um grito, que o assustou: – O que foi,
Regina? Você bebeu?
- Seu vampiro!
ela berrou, com um olhar de nojo.
Otávio
compreendeu tudo. Então, ela sabia! Mas como? Se ele nunca lhe
dissera nada. Teria sido... Leonor?
Antes que ele
perguntasse algo, Regina Já foi dizendo: - Foi Leonor quem me
contou! Seus loucos! Nunca pensei que você fosse capaz... e começou
a chorar.
Otávio tentou
abraçá-la, mas ela o rechaçou com violência.
- Regina, me
perdoe! Juro que vou abandonar este pessoal. Você é muito importante
para mim! Eu te amo! Não te deixarei nunca!
Regina chorava
desesperada. Para ela, era o fim do mundo. Otávio, a quem tanto
amava! Logo ele!
Otávio prometeu
a Regina que nunca mais voltaria ao apartamento de Leonor. Nunca
mais se encontraria com aqueles seus antigos amigos.
Regina olhou bem
para ele, ainda soluçando.
- Você jura?
- Sim, querida!
Juro pelo nosso amor que nunca mais me encontrarei com eles!
E, de fato,
Otávio cumpriu seu juramento, afastou-se do grupo. As semanas se
passaram, Regina voltou a se sentir confiante em Otávio e o amor
entre eles se tornou até mais forte. Passaram a viver juntos,
alugaram um apartamento.
Um belo dia, o telefone tocou, Otávio atendeu.
Regina notou que
algo ruim se passava com ele, pelo seu semblante, uma nuvem de
amargura o constrangia, os ombros de Otávio estavam caídos e um suor
descia pelas suas têmporas.
Quando desligou,
se sentou sozinho em um sofá da sala. Regina o observava de longe,
preocupada. Teria sido Leonor? O que dissera a Otávio que o deixara
naquele estado? Tentou puxar assunto, mas Otávio nada disse. Trocou
a roupa e saiu.
Quando voltou,
já era madrugada. Entrou silenciosamente. Regina estava dormindo.
Olhou para ela durante um bom tempo. As lágrimas lhe desceram pela
face. Deu um beijo suave no rosto da sua amada. Depois, foi até o
armário, procurou suas roupas e outros pertences, os colocou em uma
grande mala e saiu. Trancou a porta e colocou as chaves em um
esconderijo que só ele e Regina conheciam. Desceu até a garagem,
colocou a mala no porta-bagagem, ligou o carro e se foi. Sabia que
nunca mais voltaria. Não podia. Precisava proteger Regina e não
conspurcá-la jamais.
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