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Jornal do Conto

 

 

Ariela Boaventura


 


Por um fio



Para o mosquito
também a noite é longa,
longa e só.
Kobayashi Issa (1763-1827)


 

As vozes vieram da superfície, distantes, muito além do círculo. Milagre, sonho, já não sabia.

Domingo gelado, céu limpo qual alma de virgem. Sete dias por semana eu retirava entulho de um velho prédio na cidade com tempo sem uso; lá dentro, mofo e lixo. O sindicato que alugou o prédio tinha pressa. Eu tinha direito a descansar um domingo por mês.

Em folga, fui almoçar com o Kilmes, jogar um dominó, conversa fora, passar tempo. Tutu de feijão e cerveja escura. Não jogamos. Depois do almoço, decidiu-se que caçar tatu seria mais divertido. Tinha várias tocas numa terra-de-ninguém a meia hora de caminhada. O tutu e a cerveja me deram moleza, mas amanhã já era serviço de novo, de maneira que era hora de levantar o esqueleto e partir para a ação.

A casa do Kilmes ficava num descampado afastado da cidade, só Deus de vizinho. O Kilmes tinha material que dava três armadilhas para cada um. Levou tempo, terminamos e saímos atrás da tatuzada. Ele foi para um lado, eu para outro.

Para caçar tatu primeiro tem que se achar as tocas deles, para pôr nelas as armadilhas. Consegui armar em duas tocas. Tinha encontrado a terceira, e meti o pé para ver até onde ia o buraco. Sumiu o chão, sumi; quinze metros de profundidade depois, espatifei as costas contra o chão de terra.

Senti dor de agulha entrando na pele. Sangue nenhum. A gente, numa situação dessas, acha que tá sonhando, parece piada, é de rir de si. Mas o coração dispara da realidade em diante. Sozinho terra abaixo, o céu era um círculo branco que eu podia tapar com a mão: o mundo lá em cima.

Depois do susto, agi. Socorro, gritei. Ninguém respondeu. Pudera, até Deus tinha ficado pra longe, naquele descampado. Mesmo assim, gritei, e outra vez e outra, gritei até arder a garganta. Socorro! Socorro! Nas primeiras tentativas, senti um pouco de ridículo, tímido da própria voz, mas o medo fez a vergonha passar. Deu em nada gritar. Esperar era o que restava a fazer.

Esperei. Quem caça tatu aprende paciência. Esperei. Quando vi que a noite começava a baixar, afligi. Sem comida ou água, longe de tudo, debaixo de metros de terra: estava bem-encaminhado, seu Adalmor. Só o Kilmes me chamava assim, pra todo resto era Seu Gertz.

Numa hora dessas, as coisas mais esquisitas, daquelas que a gente nunca pensa, passam pela cabeça. Casamento. Por que não me casei? Se vivesse com uma mulher, tivesse eu filhos, será que teria saído a caçar tatu hoje? E se casado fosse, se filhos tivesse, a mulher já teria saído a procurar por mim? Certo que sim. Mulher é cheia de cuidado, avisaria autoridade, já teriam até me achado, aposto. O Kilmes casou, mas a mulher morreu, ele se abisonhou e veio morar no meio do nada. O nome dela, da minha, seria Senhora Gertz. De quem se ignora a cara não se adivinha o nome. Então, Senhora Gertz.

Poderia ter me contentado com o dominó; fui ambicioso, quis diversão com tatu. Fazer o bicho de bobo. Taí, castigo. Sem comida, sem água, as costas doídas. Sem sangue, só dor. O círculo tinha ficado preto. Parecia aumentar o frio. Não sentia mais o pé, gelado, anestesiado. E não me cabia direito, de maneira que tinha de ficar de joelho encolhido. Estreitei o corpo mais um pouco e deitei de lado. Tremia feito vara de bambu.

Acordei formigado, dormente de frio, de tudo. O círculo lá em cima, branco. Mexi o corpo e o grito saiu sem que eu quisesse. As costas, a agulha. Lembrei da mãe, deveria estar preocupada. Era a Senhora Gertz que eu tinha, a mãe, não a esposa. Encurvada de anos, já beirando os oitenta. Procuraria autoridade nenhuma, não saía de casa há tempo, depois do derrame as pernas enrijeceram. Precisava de mim, e eu ali, socorro!, tentei, bobo. Ninguém ouviria. Era para o vizinho que eu gritava. Meu Deus, me ajuda! Comovi nem as pedras.

Mexer o corpo não dava direito antes, agora as carnes enervavam. Encarquilhei. Sentia o corpo velho, doente: as agulhas. Respirar era uma aventura. O tutu do Kilmes ainda me preenchia, fome nenhuma. Mas precisei me aliviar, talvez fosse a umidade ou o frio ali embaixo, a bexiga doía. E o que não doía?

Esperei.

As pernas não faziam mais parte de mim, não sentia nada da cintura pra baixo. Tentei esquentar o corpo, esfregando com as mãos. Pensei, pensei. Pensar fazia passar um pouco o desespero, sensação de que algo ainda podia ser feito. Lutar contra o destino, a dor. Enfiei as mãos na terra, apalpando em redor de mim. Achar alguma coisa para montar um estilingue. Ou um apito, mais fácil. Objeto nenhum para bodoque nem apito. Pensei, pensei. Fumaça, para mostrar onde estava. Pensei melhor: iria sufocar e morrer, ainda mais rápido que. A fatalidade viria, com ou sem fumaça. Cadê Deus, numa hora dessas? Milagre, era isso. Prometi, pararia de fumar, se vivesse. Se saísse dali, então.

Esperei pelo milagre. O tempo escorreu, esqueci a paciência. Um suspiro para aliviar o peso da alma doeu tanto que chorei. Augúrio ruim: as forças me fugiam. Ninguém me ouviria, pensei, mas não podia pensar nisso. Socorro, tentei. Só o silêncio escutou. A voz saía sem governo, tísica. Sabia: o som chegava lá em cima sem força para alguém dar conta.

Círculo preto. Será mesmo que é minha hora?, duvidei. Senti que já tinha resistido o que podia; respiração canina em dia de calor, eu arfava, os pulmões tinham diminuído, o ar, gordo, camelo querendo passar pelo vão da agulha. Várias agulhas. O limite, ou perto disso. A voz teimava não sair, mesmo que forçasse, que eu quisesse. Respirar era um fardo. Para sempre, perdido. Estava perdido, admiti, sem choro, nem pedido, milagre ou promessa. Noite longa, sem sono. Esperei minha hora.

A manhã chegou, já não duvidava do destino. Contava o segundo dia ali, doze ou quinze metros abaixo da terra, tudo o que via era o pequeno círculo de luz lá em cima, a boca aberta do poço, muda. Armadilha para um tatu gordo como eu. Essa vida é muito besta, mesmo. Fiquei mirando o círculo, como se encarasse Deus, até ele desaparecer. Quando cansei, olhei para as paredes em redor: via o círculo em qualquer lugar, do meu lado, no chão. Assim parecia mais fácil sair, distraía a cabeça, minguava a angústia.

Distante, ouvi o silêncio passar. Senti um pinote frio no estômago. Vozes vinham da superfície, coração na garganta. Milagre, sonho, já não sabia. Prendi o ar, poderia afugentar a felicidade, eu, feliz de assustado, não alucinava: milagre. As vozes, lá em cima, falavam idioma que não traduzi, língua deformada pelo vento, pela altura da superfície. Quis gritar, as forças faltaram, voz nenhuma saiu. Um objeto escuro surgiu no meio do círculo, atirado. Caiu como um tatu gordo em cima de mim. Milagre, sorri. Era uma corda.

 

 

 

 

22/06/2005