Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Ariela Boaventura


 



Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar




 

Você anda pela vida aos assovios, despreocupadamente, contando as pedras das calçadas existenciais com atenção apenas para não se perder por aí dentro de uma xícara de café expresso ou um bueiro, de vez em quando um anão albino para matar, mas de resto tudo calmo, os passarinhos pipilam, e então, um dia, assim sem mais, você sente um perfume, apenas um aroma de algo adorável como os alpes suíços ou uma viagem para Madri, sua alma se refresca ao mesmo tempo em que alguma célula lá dentro do organismo se quebra, danificando seus arquivos vitais, parece até mesmo que tudo foi resetado e a vida tem a cara viçosa da liberdade, sua memória se esquece de tudo o que aconteceu anteriormente, igual como acontece quando se tem uma amnésia, e nada mais faz sentido se você não sentir aquele cheiro de novo, o que desencadeia todo um processo inexplicável de afetividade. E então é uma obsessão que toma conta de todos os seus momentos, pensamentos e ações, e mesmo quando dorme sonha aquele cheiro, já transformado em outra coisa menos gasosa, já é espessa e significativa como certa maneira mimosíssima de desenhar sentimentos com creme sobre o café e em outro instante a coisa está concreta incrustada dentro de você. É assustador, mas o que você transpira é éter puro. Verdíssimo.

Tudo começa a se complicar quando a matéria perfumada que penetrou em seu organismo com aquele singelo gesto de aspiração, um milissegundo, passa a afetar seu comportamento. É como uma doença, os sintomas vão aparecendo devagar e por mais que você tente disfarçar todo mundo nota. Está mais quieto, pensativo, abobalhado, disperso. Sente muito sono, mas ao mesmo tempo tem insônia e escreve em línguas estranhas. Come de menos, bebe demais, fuma ainda mais que antes, sem falar no café. Ah. E então você se dá conta de que está amarrado a isso como se fosse a uma droga, como se você fosse um adicto e o perfume a sua cocaína, é preciso tê-lo por perto, senti-lo, aspirá-lo de novo e novamente, e mesmo se o perfume não estiver por perto você dará um jeito de recordá-lo das mais diversas maneiras, tentará algum contato por rádio ou satélite, por ondas eletromagnéticas e por que não cósmicas, já que a coisa tomou tal vulto que nem você sabe mais seu tamanho e extensão de danos? É como um vírus, e começa a te destruir. Porque um dia você tropeça numa letra, no outro conta uma mentira e depois, ah. Depois é leite derramado, bolo abatumado, lágrimas, mordidas e sangue. Isso é o que os manuais de psiquiatria denominam de loucura.

Então você pensa nas possibilidades do passado, naquela calma, naquela calçada de linhas retas e corretas, um pouco morna, mas sem sustos, e, quando o desespero for quase insuportável e você começar a ranger os dentes de dor, você desejará do fundo do coração não ter jamais parado aquele dia por perto desse aroma, rogaria por ter nascido inclusive sem nariz, sem coração, melhor seria ter nascido na versão de um verme, uma minhoca, todo e qualquer inseto, mesmo de uma rã marrom e pegajosa você tem inveja, porque se você não tivesse chegado muito perto daquele perfume e aspirado aquele néctar gasoso e não tivesse sentido a vida se reciclando dentro de si, se você não tivesse sido tão pueril diante das manhas das pedras da calçada e mais atento aos bueiros e se, principalmente, estivesse prestando mais atenção aos seus anões, aqueles malditos anões que você tem de matar todos os dias, nada disso teria acontecido. Só aí você entende Torquato Neto e seu enigmático bilhete de suicídio.

 

 

 

 

 

08/09/2005