Aricy Curvello
Aricy Curvello: poesia além do
impenetrável
Por Fábio Lucas
A poesia, nos dias de hoje, procura ater-se mais às coisas concretas
e às relações humanas perceptíveis. Necessita da referencialidade
intensiva, sem, todavia, deixar-se apanhar na crônica dos dias,
território mais adequado à prosa.
A forma poética, deslocada de seu meio, hermética e distante, cria
por vezes enfado e rejeição. Quem busca motivar-se esteticamente com
a leitura, deleitar-se e instruir-se com as palavras, tem preferido
antes os poetas do passado e autores de quem possa colher citações
ou passagens ilustrativas de estados emocionais. Comumente não se
deixa envolver pelos anedóticos jogos verbais ou pela contemplação
de painéis publicitários que se tomam por verdadeira poesia, mas que
não passam de sucedâneo da expressão artística. O verso cadenciado,
denso, emocional e educativo, vem-lhe nos momentos de procura de si
e dos outros. E´parte de seu conhecimento do mundo. Poesia e
declamação nasceram juntas na velha Grécia.
A função da poesia, hoje e sempre, tem sido a de despertar no leitor
reações extremas de cunho intelectual, que compreendam razão e
emoção, gosto pelo saber e atração amorosa. Conjuga o entusiasmo
pela verdade com o êxtase da iluminação, instaura a epifania, um
estado de espírito culminante, limítrofe da transcendência.
O poeta, de ordinário, vai além do impenetrável. Seja exemplo o
poema de Aricy Curvello O Acampamento ( Florianópolis: Jayro Schmidt
editor, Coleção Broquéis, 2004, 5a. ed.). Aparentemente promove o
testemunho de quem tentou interpretar o mistério da Amazônia.
Muitos fizeram isso, em prosa e verso. Apenas de modo ilustrativo,
citemos Inglês de Souza ( Contos Amazônicos, S. Paulo, Martins
Fontes, 2004, 3a. ed.; 1a. ed: 1893), Márcio Souza ( Galvez, o
Imperador do Acre, Folhetim, Rio, Ed. Brasília/Rio, 1977, traduzido
para o alemão: Galvez, Kaiser von Amazonien, Roman, Kiepenheuer &
Witsch, 1983, trad. de Ray-Gilde Mertin) e Márcia Theophilo ( Eu
canto o Amazonas, traduzido ao italiano: Io Canto L’ Amazzonia,
Edizioni Dell’ Elefante, 1992), só para mencionar autores não
constantes do vasto painel traçado por outro grande ficcionista,
Nicodemos Sena, autor de A Espera do Nunca Mais – Uma Saga Amazônica
(1999), em introdução ao livro acima mencionado de Aricy Curvello:
“Amazônia: Texto e Contexto”.
A Amazônia, vê-se, é um mundo insólito, segundo nos mostra Nicodemos
Sena, que invoca desde o Pe. Antônio Vieira (“Carta sobre o
Tocantins”, 1654), a perplexidade do português John Wilkens ( A
Muhraida, 1785) e o espanto de Friedrich von Martius ( Frei
Apolônio, S. Paulo, Brasiliense, 1995, “o primeiro romance
ambientado no Norte do Brasil”), até Aricy Curvello, poeta de O
Acampamento.
O que se mostra nesse exercício de estranhamento? Nessa efusão
poética? Paisagem fechada e, por detrás, a solerte mão do
capitalismo de resultados. As falsas pegadas do “progresso”.
Não se trata de um texto panfletário. Ao contrário, é autêntica
poesia, traz o mistério e a complexidade da selva, que se denuncia
pelas cores – da escuridão até à luz – e pelos sons (do silêncio aos
gritos insituados).
Aricy Curvello traça a gramática dos signos imperfeitos, sujos de
gestos humanos gratuitos e de disfarçada cobiça. Ali, a seu ver,
tudo se mistura sob o império do provisório. Inclusive o
acampamento:
“Nenhum céu, nenhum, tetos de alumínio e uma
Floresta de chagas.”
As perguntas que ficam na consciência do leitor: Quem constrói
barracões de alumínio? Para que? O poeta indaga a seu modo, ao falar
do infinito da Amazônia.
Progredir na leitura do poema é inteirar-se do que há de evocação
nas duas paisagens chocantes: a floresta e os acampados. Natureza e
cultura.
Primitivamente, “chão noturno, mais noite que a noite.” Depois, o
vislumbrar da claridade entre penumbra, do tempo aderido ao meio
hostil:
“ o ar a ferocidade do ar
caem do céu antes da chuva
esse inarticulado grito
parece a voz da luz.”
Sem que se perceba, o poeta começa a responder à questão: “Para
que?” . Diz no terceiro segmento do poema: “No princípio do mundo, a
madeira atroz”. O adjetivo de força própria, “atroz”, substantiva a
presença do “bicho da terra tão pequeno” (Camões).
Que enxerga o poeta?
“Vinte casas interminadas, barracões de tábuas, um
embarcadouro de nada, os sonhos passam.”
Sim, “Sobre o rio a cor balançava ainda os caminhos/ da luz”. De
repente, outro adjetivo completa o segmento quarto:
“... mundo verdeal
rangente na alfombra, oficina de barulhos e marcenaria
de pregos cantantes.”
Para quem cantam os pregos? A serviço de quem? O poeta apenas aponta
o fenômeno e segue. A combinação de imagens visuais e sonoras
prossegue. Assim, no quinto segmento, o poeta invoca o “poder
imponderável” da luz:
“A verdeluz,
a luz que brilhava na luz, poder imponderável.”
Também ali, no quinto segmento, surpreendemos o leve murmúrio do
pasmo, talvez do protesto:
“ Os homens não buscam a luz do rio. Querem
apenas bauxita bauxita bauxita – e alumínio. O Governo
quer alumínio ferro ouro cobre cassiterita chumbo
níquel. Aqui, até aqui, o horror veio tecer diademas
de injúrias, meu salário.”
Observe-se a astúcia verbal do poeta, a palavra “bauxita” repetida
três vezes. E, depois, o valor “salário” associado a injúria ...
A paisagem, entre o “verde’ onipresente e a variada dispersão do ser
humano, associa-se à incerteza deste e à voraz força da vida, à
busca infindável no território movediço:
“Verde mover-se
no grande ir-se de tudo, no fruto
das casas de tábuas, nos galpões de sujos
instrumentos, núcleos esparsos de povo, nos povoados
perdidos.”
O poema encerra-se com o signo da “... paisagem além da paisagem, /
quando a imagem do tempo passar, / significados para as águas, relva
pisada em volta / das casas.”.
Aí está: “relva pisada em volta das casas”. Curiosa proximidade
semântica entre “selva” e “relva”. O geral e o específico. Além do
que, o adjetivo, mais uma vez, carregado de força substantiva,
“relva pisada”, propõe a utilização do sinal evocador da presença
humana, indicia a ação do homem sobre a relva.
Paisagem física e paisagem humana ante o olhar perscrutador do
poeta, cuja determinação verbal se apóia na expressão concisa, na
sintaxe elíptica, na tonalidade reflexiva dos versos. Mais uma vez a
manifestação lírica de Aricy Curvello se aplica na construção do
real da poesia, expandido em conceitos da visão humanística da
existência humana.
(Fábio Lucas é um dos mais importantes
críticos literários brasileiros contemporâneos. Autor de vasta obra.
Ex-diretor do INL. Por vários mandatos foi presidente da União
Brasileira de Escritores, de São Paulo. Membro da Academia Paulista
e da Academia Mineira de Letras.)
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