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Carlos Antônio leite Brandão


 


Fábricas de medo


Jornal do Brasil
31 de Dezembro de 2005

 

 

Cidade Vertigem contém escritos poéticos sobre as métropoles e a sociedade de consumo e informação contemporânea, tal como as vê o poeta Afonso Henriques Neto, e ensaios, pesquisa e reflexão - acompanhados de alguns dos principais textos que lhes serviram de fonte, inspiração e referência, como a descrição das cidades por poetas, prosadores, arquitetos e urbanistas. Nesse livro, o autor coloca suas poesias ao lado da crítica desenvolvida no seu doutorado da Escola de Comunicação da UFRJ. Rompendo qualquer fronteira entre as experiências objetiva e subjetiva da metrópole, o tex to flui entre ambas e anseia por uma unidade ou, ao menos, um indício de métrica e rima, capaz de reunir a fragmentação e o dilaceramento característicos tanto da cidade contemporânea quanto do seu dividido habitante. Falar da cidade é também falar de nossa individualidade e de nossa vida em comum. E perder a cidade é também perder nossa individualidade e nossa vida em comum. E é diante desta perda que Afonso Henriques Neto erige seu trabalho, expõe a angústia ''de um pensamento ferido de treva qual uma lua bruscamente arrancada do céu'' e investiga as alternativas passadas, presentes e futuras oferecidas por arquitetos, urbanistas, filósofos e poetas.

Reunir e transitar livremente entre o poético e o científico, a contaminarem-se reciprocamente, é um dos maiores valores e ousadias que encontramos nesta obra. Ao fazê-lo, o poeta visionário procura encontrar seu lugar num mundo pragmático e inflacionado de informação e consumo para denunciá-lo e tentar abrir nele espaço para o lírico e para o humano de um homem em queda livre: eis a vertigem da cidade apocalíptica revelada pelo autor, expressão do exílio, do desconforto e de uma diáspora comum a todos nós e ao nosso tempo. É um tempo de homens partidos, afinal. Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Paris, Londres, Praga, Nova York e Dublin são as paisagens quixotescas onde os signos são a um só tempo demasiados e precários; onde as palavras, insuficientes, tentam ferir o real, mas acabam sendo capturadas em seu redemoinho. Nesta pista, o flâneur hodierno e a cidade são como dois dançarinos girando enlouquecidos sem conseguir acertar o passo nem compreender seus enigmas recíprocos.

Se no século 12 um provérbio alemão diria que ''o ar das cidades liberta'', hoje elas aparecem como uma ''prisão civil'', como uma ''cadeia de sonho cercada de vento e vazio'', como ''um oceano de crespas constelações'' e ''utopias soterradas'', como ''fábricas de medo onde o carinho vem sob a forma deste fedor de gasolina'', para usarmos apenas algumas das metáforas da primeira parte do livro. Nelas, rastejamos ''pássaros amarrados no chão'', meros ''acidentes diante deste espetáculo estúpido''. Em atitude típica do herói trágico moderno, o poeta mergulha fundo no espetáculo estranho, buscando desencavar da matéria amorfa algum frescor, fazer transbordar a linguagem e abrir o horizonte e o silêncio de uma transcendência dentro da loja do acúmulo e a sucessão vertiginosa do tempo que constituem as cidades e nossa existência dentro delas.

Os textos sobre a urbe contemporânea ''são amontoados de palavras que não arranham nem a mínima superfície''. Uma vez que a matéria da cidade e o espírito do poeta estão em permanente estranhamento, entram em cena o pesquisador, o visionário e o memorialista. O pesquisador investiga as razões e a origem desse estranhamento na modernidade, de modo a fazer-lhe a crítica e encontrar-lhe alternativas. Tais alternativas são examinadas tanto nas vias utópicas que são objetos da simpatia do visionário (Platão, Sto. Agostinho, Renascimento e Modernismo), quanto no trabalho da memória, na recuperação da experiência infantil e juvenil e dos espaços vividos e atualizados para fazer face à fugacidade de uma realidade autômata e virtual. Atritar-se com ela é a única maneira de confirmar a nossa existência. Abismar-se no passado pessoal e histórico ou aventurar-se nas especulações do sem-lugar ou do porvir são vertigens nas quais se busca o aceno da liberdade e a remissão do indivíduo além de sua condição moderna e pós-moderna de ''ser em permanente divisão''. Pela utopia, distopia e memória atrita-se com o real e afirma-se o ser do poeta, em sua negatividade essencial e fecunda. Um poeta que se faz auxiliar pelo pesquisador para verificar se ainda existe vida atrás da morte de todas as utopias.

A crítica urbana do autor é épica e empenha-se em verificar o pensamento e o jogo de poder político-econômico-cultural que organiza a cidade, o modo como ela é apreendida (''psicomorfismo urbano''), como se traduz em texto e como este texto se imprime no habitante e no leitor. Através de teóricos como K. Lynch e C. Alexander, o autor esforça-se para organizar a leitura do todo metropolitano, o qual sempre lhe escapa; e compreender, como recorrendo ao mito de Ártemis, o rito de passagem entre a natureza e a cidade, entre a infância e a vida adulta e entre as várias subculturas e fragmentos que formam a metrópole diante da qual ele elabora sua ''poética de resistência'' - como um novo Baudelaire, Kafka, Joyce e Eliot, autores os quais examina com perspicácia. Depois de o poeta dar lugar ao pesquisador e teórico, eis que ele ressurge para lançar alguma luz e unidade sobre o território de desolação, fragmentos e labirintos urbanos só possíveis de serem capturados por uma espécie de hipertexto avesso a estabilizar-se em qualquer linguagem. Se o pretexto do pesquisador foi elaborar uma crítica da cidade moderna, o objetivo do poeta é reinventar o homem novo e reconduzir-nos do que somos ao que deveríamos ser, ciente da cegueira que nos guia neste labirinto: ''bem mais vale a luz que a alma modela / que a treva a nos apagar dos olhos dela''.

Depois de percorrer a história e a teoria da arquitetura e do urbanismo; de abraçar poetas, escritores e mitos arcaicos e contemporâneos; de investigar sua memória e a experiência dos espaços sonhados e vividos e traduzi-los em poemas, Afonso Henriques Neto conclui percebendo não haver fórmula pronta para salvar a si, a nós e à cidade. Suas primeiras indagações, as fundamentais, voltam-lhe todas. As mesmas dúvidas que o fizeram percorrer o universo da cidade reaparecem ao final para lançar a todos no labirinto que nos cumpre também atravessar, na cidade que permanece como ruína de nossos sonhos. A travessia de Afonso Henriques Neto é completa e provisória: ele fez de seu doutoramento não apenas um percurso acadêmico e científico, mas uma viagem espiralada e infinda em torno da linguagem e de si próprio. Feliz daquele que se faz pessoa dentro de um mundo tão impessoal e que, sabendo-se ser sempre dividido - pois dividida também é a cidade na qual habitamos -, se lança no rio vazio que nos racha ao meio para nele encontrar seu ponto de união e de salvação. Ainda que, também, de perpétua interrogação.

 

Carlos Antônio Leite Brandão é professor da Escola de Arquitetura da UFMG.
 

 

 

 

 

 

 

12/11/2007