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Adelto Gonçalves





A saga de um jornalista sem poder

 



 

O romance "Vida, Paixão e Morte de Etelvino Soares" de Lustosa da Costa, publicado no Brasil em 1996, pela Editora Maltese, de São Paulo, ganha agora edição portuguesa, lançada ao final de maio na Embaixada do Brasil em Lisboa. O entrecho do livro se passa em Sobral, no Ceará, no princípio do século XX, época em que a cidade, hoje com 150 mil habitantes, tinha 28 mil moradores.

É um romance que traz à tona todas as questões que envolvem a liberdade de imprensa, ao contar a saga de um tipógrafo que montou em Sobral um jornal determinado a combater o reacionarismo e a corrupção das oligarquias locais. Não é preciso dizer que o jornalista se deu mal.

Para defender o direito de ter idéias e opiniões, Etelvino enfrenta o diabo: prisão, tiroteio, processos, boicote de publicidade e até a condenação pelo bispo da terra – mancomunado com os conservadores, como era comum à época. Nada, porém, consegue silenciar sua voz, que insiste em apontar as mazelas da sociedade de seu tempo. E mais: defender os oprimidos, ser o intérprete dos que não tem voz.

Para calar tão atrevido jornalista, só mesmo a lei dos que estão por cima da lei: um tumulto provocado na Câmara, em dia de eleição – a bico de pena, como convinha na República Velha – e as bocas de cinqüenta revólveres vomitando fogo. Obviamente, um crime sem culpados. Feito à medida para justificar a impunidade.

Estamos no plano da ficção. Mas o que é a ficção senão a realidade desfigurada pela memória? O autor deste romance, nordestino e jornalista, sabe muito bem sobre o que escreve, pois conhece a fundo a realidade de que trata. Lustosa da Costa começou como repórter exatamente na pequena Sobral e, depois, passou para a vizinha Fortaleza, transferindo-se, mais tarde, para Brasília, onde trabalhou como repórter político para o influente diário O Estado de S.Paulo, antigo porta-voz dos fazendeiros de café e hoje da indústria paulista.

Toda podridão que emana de Brasília, portanto, Lustosa da Costa sentiu nas últimas décadas, desde o tempo em que se ouviam bater as botas nos corredores do Palácio do Planalto e do Palácio do Alvorada. Seu cotidiano foi observar os acontecimentos, alimentando a memória. E o que é Brasília senão o macrocosmo de uma cidade do interior brasileiro, com todas as suas iniqüidades e imundícies morais?

É possível que, com o passar dos anos, a memória já não reflita com fidelidade o passado. E reconstrua uma nova realidade. E que o repórter Lustosa da Costa, ao reconstruir uma Sobral que não conheceu, reconstrua exatamente a Sobral em que viveu, sem esquecer da Brasília que sempre percorreu sem precisar de um fio de Ariadne para transitar por seus labirintos.

Por tudo isso, o que temos diante de nós é uma história verossímil. Até porque os assuntos de que trata ainda estão todos os dias nas páginas dos jornais: o dinheiro para o combate à seca, que acaba sempre no bolso dos coronéis nordestinos; o jornalista ousado que termina assassinado; a impunidade dos assassinos a soldo dos maiorais da terra; e a roubalheira na prefeitura e na coletoria.

Vida, paixão e morte de Etelvino Soares foi escrito com o pensamento em Jorge Amado, como deixou claro o autor na edição brasileira. Diz Lustosa, modesto, que esta história – construída a partir de um fato real –, nas mãos de um mestre, teria melhor tratamento. Mas o escritor não decepciona. Pelo contrário. Faz de Etelvino Soares um personagem inesquecível, por seu radicalismo em favor dos ofendidos e humilhados. E mostra que, além de grande repórter político que foi, é também bom ficcionista, a merecer mais atenção da crítica.

Escrito em estilo que lembra Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez, o romance de Lustosa da Costa seduz também por mostrar um linguajar rico e atraente, fixando o vocabulário popular do Ceará, a exemplo do que Jorge Amado fez em relação à linguagem baiana ou Graciliano Ramos à alagoana. Para o leitor português, é mais uma oportunidade de descobrir a que ponto pode chegar a Língua Portuguesa, deformada ou deturpada, para os mais puristas, ou alargada e enriquecida, para aqueles que se encantam com os rumos que um idioma, solto pelo mundo, pode ganhar.

* Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999) e Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999).
 



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02/02/2006