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Alberto Caeiro



Quando vier a Primavera, (7-11-1915)

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

 

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Se eu morrer novo, (7-11-1915)

Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra coisa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão -
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.
 

 

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Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, (8-11-1915)

Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas-a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

 

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Seja o que for que esteja no centro do Mundo, (24-10-1917)

Seja o que for que esteja no centro do Mundo,
Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,
E quando digo «isto é real», mesmo de um sentimento,
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim.

Ser real quer dizer não estar dentro de mim.
Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade.
Sei que o Mundo existe, mas não sei se existo.
Estou mais certo da existência da minha casa branca
Do que da existência interior do dono da casa branca.
Creio mais no meu corpo do que na minha alma,
Porque o meu Corpo apresenta-se no meio da realidade.
Podendo ser visto por outros,
Podendo tocar em outros,
Podendo sentar-se e estar de pé,
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.
Exista para mim - nos momentos em que julgo que efectivamente existe -
Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo.

Se a alma é mais real
Que o mundo exterior, como tu, filósofo, dizes,
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade?
Se é mais certo eu sentir
Do que existir a coisa que sinto-
Para que sinto
E para que surge essa coisa independentemente de mim
Sem precisar de mim para existir,
E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível?
Para que me movo com os outros
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo?
Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente.
E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas.
Coisa por coisa, o Mundo é mais certo.

Mas porque me interrogo, senão porque estou doente?

Nos dias certos, nos dias exteriores da minha vida,
Nos meus dias de perfeita lucidez natural,
Sinto sem sentir que sinto,
Vejo sem saber que vejo,
E nunca o Universo é tão real como então,
Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim,
Mas) tão sublimemente não-meu.

Quando digo «é evidente», quero acaso dizer «só eu é que o vejo»?
Quando digo «é verdade», quero acaso dizer «é minha opinião»?
Quando digo «ali está», quero acaso dizer «não está ali»?
E se isto é assim na vida, porque será diferente na filosofia?
Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos,
E o primeiro facto merece ao menos a precedência e o culto.
Sim, antes de sermos interior somos exterior.
Por isso somos exterior essencialmente.

Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo.
Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia,
Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha,
Se isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu?
 

 

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Sempre que penso uma coisa, traio-a. (21-5-1917)

Sempre que penso uma coisa, traio-a.
Só tendo-a diante de mim devo pensar nela.
Não pensando, mas vendo,
Não com o pensamento, mas com os olhos.
Uma coisa que é visível existe para se ver,
E o que existe para os olhos não tem que existir para o pensamento;
Só existe verdadeiramente para o pensamento e não para os olhos.

Olho, e as coisas existem.
Penso e existo só eu.
 

 

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Sim, talvez tenham razão. (4-6-1922)

Sim, talvez tenham razão.
Talvez em cada coisa uma coisa oculta more,
Mas essa coisa oculta é a mesma
Que a coisa sem ser oculta.

Na planta, na árvore, na flor
(Em tudo que vive sem fala
E é uma consciência e não o com que se faz uma consciência),
No bosque que não é árvores mas bosque,
Total das árvores sem soma,
Mora uma ninfa, a vida exterior por dentro
Que lhes dá a vida;
Que floresce com o florescer deles
E é verde no seu verdor.

No animal e no homem entra.
Vive por fora por dentro
É um já dentro por fora,
Dizem os filósofos que isto é a alma
Mas não é a alma: é o próprio animal ou homem
Da maneira como existe.

E penso que talvez haja entes
Em que as duas coisas coincidam
E tenham o mesmo tamanho.

E que estes entes serão os deuses,
Que existem porque assim é que completamente se existe,
Que não morrem porque são iguais a si mesmos,
Que podem mentir porque não têm divisão [?]
Entre quem são e quem são,
E talvez não nos amem, nem nos queiram, nem nos apareçam
Porque o que é perfeito não precisa de nada.
 

 

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Sim: existo dentro do meu corpo. (20-6-1919)

Sim: existo dentro do meu corpo.
Não trago o sol nem a lua na algibeira.
Não quero conquistar mundos porque dormi mal,
Nem almoçar a terra por causa do estômago.
Indiferente?
Não: natural da terra, que se der um salto, está em falso,
Um momento no ar que não é para nós,
E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra,
Traz! na realidade que não falta!
 

 

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Todas as opiniões que há sobre a Natureza (29-5-1918)

Todas as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Toda a sabedoria a respeito das coisas
Nunca foi coisa em que pudesse pegar, como nas coisas.
Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das coisas sem ciência?
Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito
Tem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem.
Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas.
 

 

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Todas as teorias, todos os poemas (11-1-1916)

Todas as teorias, todos os poemas
Duram mais que esta flor.
Mas isso é como o nevoeiro, que é desagradável e húmido,
E maior que esta flor...
O tamanho, a duração não têm importância nenhuma...
São apenas tamanho e duração...
O que importa é a flor a durar e ter tamanho...
(Se verdadeira dimensão é a realidade)
Ser real é a única coisa verdadeira do mundo.
 

 

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Tu, místico, vês uma significação em todas as coisas (12-4-1919)

Tu, místico, vês uma significação em todas as coisas.
Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma coisa oculta em cada coisa que vês.
O que vês, vê-lo sempre para veres outra coisa.

Para mim graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as coisas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma coisa é não significar nada.
Ser uma coisa é não ser susceptível de interpretação.
 

 

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Última estrela a desaparecer antes do dia, (29-5-1918)

Última estrela a desaparecer antes do dia,
Pouso no teu trémulo azular branco os meus olhos calmos,
E vejo-te independentemente de mim,
Alegre pela vitória que tenho em poder ver-te,
Sem «estado de alma» nenhum, senão ver-te.
A tua beleza para mim está em existires.
A tua grandeza está em existires inteiramente fora de mim.
 

 

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Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. (8-11-1915)

Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem; cada um como é.

 

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Uma gargalhada de rapariga soa do ar da estrada (12-4-1919)

Uma gargalhada de raparigas soa do ar da estrada.
Riu do que disse quem não vejo.
Lembro-me já que ouvi.
Mas se me falarem agora de uma gargalhada de rapariga da estrada,
Direi: não, os montes, as terras ao sol, o Sol, a casa aqui,
E eu que só oiço o ruído calado do sangue que há na minha vida dos dois lados da cabeça.

 

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Verdade, mentira, certeza, incerteza... (12-4-1919)

Verdade, mentira, certeza, incerteza...
Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.
Estou sentado num degrau alto e tenho as mãos apertadas
Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.
Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?
O cego pára na estrada,
Desliguei as mãos de cima do joelho.
Verdade, mentira, certeza, incerteza são as mesmas?
Qualquer coisa mudou numa parte da realidade - os meus joelhos e as minhas mãos.
Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?
O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real é isto.

 

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Vive, dizes, no presente; (19-7-1920)

Vive, dizes, no presente;
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
É uma coisa relativa ao passado e ao futuro.
É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas coisas como presentes; quero pensar nelas como coisas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

 

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14.07.2006