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Álvaro Cardoso Gomes




A marca registrada de Uchoa Leite

 


Em seu último livro de poesia, A Espreita, o poeta carioca reafirma mais uma vez o seu talento de um dos nossos mais consagrados antilíricos

 

Em sua obra já clássica, Estrutura da Lírica Moderna, Hugo Friedrich aponta como uma das características mais marcantes da poesia moderna a proposital obscuridade. Contrafação ao lirismo de grande público do Romantismo e ao especiosismo e transcendentalismo simbolista, visceralmente antilírica, a poesia da contemporaneidade implode-se enquanto poética do sentido, imprimindo em si um movimento entrópico, o que implica, por conseqüência, a voluntária instauração do caos, da desordem, como forma de atacar no cerne a pieguice dos bons sentimentos e o idealismo místico.

A subversão do fazer poético vem a se manifestar sobretudo no plano da pessoa lírica, que parece cada vez mais perder o seu contorno, sua conformação de pólo aglutinador, capaz de dar unidade e sentido a si e ao mundo que a rodeia, ora por via da emoção e da subjetividade, ora por via da eleição de um objeto estético, correlativo-objetivo, que lhe permitisse alçar vôo até o altar da transcendência. Num ou noutro caso, a pessoa lírica tem um perfil delineado e ganha por isso mesmo uma dimensão que lhe permite superar o caos da realidade circundante e, desse modo, conquistar as graças de um público que só entende a poesia como autêntico espelho.

É com Mallarmé que tem início o processo de esvaziamento dessa meta de ascensão, com a assunção do néant, para onde convergirão as formas puras, especulações simbólicas, metáfora do grande vazio metafísico, vácuo entre o eu e as coisas. Nasce assim a obscuridade da poesia moderna e contemporânea, uma forma, entre outras coisas, de se voltar as costas ao crescente mercantilismo, à transformação da poesia em objeto de consumo. Em conseqüência, a partir do Simbolismo os poetas distanciam-se do público, passando a se dirigir aos “raros apenas”, conforme a lição do simbolista português Eugênio de Castro.

Sebastião Uchoa Leite insere-se nessa linha de obscuridade com sua poesia feita de insights, flashes do cotidiano mais banal, tendo por mediação a consciência que se divide entre as imagens solares de fora e as imagens líquidas de dentro, que implicarão, muitas vezes, sua marginalização do mundo, na medida em que se descobre que “qualquer consciência/É uma doença” (“Uma voz do subsolo”). A espreita mimetiza um processo de oclusão da pessoa lírica, bem como a “desenigmação total” (no dizer do próprio poeta em “Fora algumas metáforas”) do real.

Esses dois pólos, o do sujeito e o do objeto, apreendidos pelo olhar de viés, como que se desplugam (contrariando a lírica convencional que buscava sempre a plugagem de sujeito e objeto), para que os fragmentos soltos valham por si sós, representando assim o a-sentido, metáfora mais que óbvia de um mundo opaco, em que os seres, como animais indiferenciados, “iam todos radiosos/Indiferentes/Para as mangedouras” (“Spiritus ubi vult spirat”). Como registro dessa opacidade do mundo, apenas iluminado por um “sol incósmico”, onde se pratica “um pobre périplo anagramático”, onde os azuis “mallarmaicos” são substituídos por “tendas de plástico sujo” e onde ainda os belos, enigmáticos cisnes de outrora cedem lugar aos prosaicos patos, o poema merece um tratamento de choque, se se pensar em sua conformação convencional.

Os versos condensam ao máximo a linguagem, quase que se reduzindo à impactação do vocábulo solitário, como se poderá verificar no exemplar poema “Eros cruel” que abre o livro, comentando o clássico mito bíblico da decepação da cabeça de Holofernes pela heroína Judite: “O que/ Espreita nas trevas/ Fascínio difícil/ Judith corta Holofernes/ A cabeça/ Semicerrados/ Olhos os/ Cabelos lábios/ Semi-abertos/ Breve o busto/ Lúbrica/ Híbris êxtase/ Da morte crua.”

A técnica utilizada é a da elipse, que elide artigos, verbos, preposições e conjunções e/ou da fusão – a cabeça são os olhos, cabelos-lábios. Mas chama a atenção sobretudo a ausência de pontuação, que serve para imprimir um ritmo todo especial ao texto: as imagens, presas apenas pelos constantes enjambements, como que se coagulam como ilhas de significado, que anulam o efeito negativo da discursividade, da afetação lógica, que implicaria a servidão das palavras encandeadas a uma consciência pretensamente ordenadora do caos.

A marca registrada de Uchoa Leite está no modo como trabalha a pessoa lírica. Sempre à espreita, ela olha de viés o mundo (olhar de cigana oblíqua e dissimulada...), aproximando-se e distanciando-se dele graças ao efeito da ironia. Em “Pensamentos sólidos”, o oxímoro do título está a serviço da destranscendentalização de um mundo já em si pobre de sentido e que só se torna o centro de interesse porque desmontado e “comentado” pelo poeta: “Uma vez/ Numa sala de espera/ Ela olhava/ Absorta/ Um ponto no espaço/ Perguntei/ No que pensava:/ “Em Deus”/ Respondeu (sem piscar)/ “E você”/ “Em comida”/ Respondi/ Parafraseando/ A poética da matéria/ “Primeiro o estômago/ Depois Deus”/ Amém.”

O estômago que se satisfaz antes de Deus é similar ao olhar que, espreitando, tira o prazer da coisas em seu estar-aí, sejam elas os esboços da paisagem carioca em sua banalidade atroz, o “lixo nauseabundo”, os “passantes da Rua Paissandu”. Outra forma de mostrar o mundo que perdeu a transcendência reside na montagem da paródia, como em “Odisséia”, em que o poeta revisita o poema homérico, transformado num pedestre de baixa extração.

Esse desenraizamento da pessoa lírica por Sebastião Uchoa Leite faz parte não só de um programa de “obscurecimento” da lírica, como também de um distanciamento crítico do poeta. A poesia configura-se assim como um objeto que supõe não a elevação do “eu” ou a ordenação do mundo, mas como uma sombra intervalar, que questiona esse mesmo mundo com o olhar irônico, de viés. Desse modo, o poema, projetando-se como o espaço de palavras entre o “eu” ofuscado por sua própria sombra e o mundo banalizado pelo cotidiano, constrói-se como um autêntico objeto com peso, densidade e forma. O real deixa de ser apenas um mais-além, que se atinge pelo corredor transparente da palavra, na medida em que o poema, alimentando-se dele e, acima de tudo, subvertendo-o, ganha a própria dimensão de realidade. Poesia que incomoda, devido ao constante processo de desenigmação das coisas, nascida entre a “beatitude” e o “vômito”, A Espreita reafirma mais uma vez o talento de um dos nossos mais consagrados antilíricos.


A Espreita, de Sebastião Uchoa Leite. Perspectiva, 96 págs. R$ 13,00.

Álvaro Cardoso Gomes é romancista, ensaísta e crítico literário

 



Sebastião Uchoa Leite
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