Aleilton Fonseca
O sabor
das nuvens
Era aquele cheiro cálido de biscoitos no
formo. Invadir o portão era
sempre o sonho, a vontade de ver como se faziam
biscoitos, quantas mãos os amassavam, enfornavam,
acomodavam nas embalagens coloridas. Mas não
podia, que lá sempre havia o homem a vigiar,
sozinho, quieto na guarita. Ele se ocupava em
ouvir um rádio de pilha, enquanto os nossos olhos
escalavam o ar para colher a fumacinha, um sorriso
sorrateiro da chaminé multiplicando-se em nuvens
baixas. Elas levavam aos arredores de nossas casas
as cores silenciosas daquele gosto morninho.
Dava-nos vontade de saborear a fábrica
inteira. Era uma enorme casa. O ruído dos
geradores era o aviso, o coração da fábrica
pulsava: distraía-nos como um motor de nave em
vôo, zumbindo nos ouvidos curiosos. Mas, o portão!
Sempre fechado aos estranhos – estranho, eu?! –, a
guarita e seu morador solitário, escutando aquelas
notícias. Seu mundo saía do rádio e ali mesmo se
esvaía. E as letras vermelhas, iradas,
gritavam: ENTRADA
PROIBIDA
Agora, não: eu ia
vencendo portão adentro, de repente escancarado;
nem portão que era, mas a entrada que me chamava
sem impor condições:
– Ei, o senhor está
procurando alguma coisa? - um menino me
atalhou.
– Biscoitos! – respondi, sem
deixar escapar-me o fio de meu próprio
tempo.
– No meio do mato? - ele
insistiu.
– Não, no meio da
fábrica.
– ?!
– Huummm. Esse
cheiro! - murmurei, sentindo-me orvalhar nos
lábios.
– Cheiro de mato e insetos - ele
pontuou-se no real.
– Não, biscoitos
quentinhos.
– ?!
– Veja a fumaça da
chaminé.
O menino olhou para as nuvens, que
se iam altas e ensolaradas, me encarou e,
distanciando-se um pouco, me observava de um certo
soslaio, bem que desconfiava de mim. Eu estava um
doido? Ambos fizemos pausas, entrecortadas de
olhares esconsos. E, nesse diálogo, já de somente
olhar, nos tangenciávamos, nos recortes do tempo.
Cada qual seus quais, com suas estampas, em que a
vida pode ser revisitada.
Era um menino e
sua bicicleta, nas rodas de seu presente. Eu,
então... Ele encostou o brinquedo numa estaca
sobrevivente, entrou na fábrica saltando por sobre
um resto de parede. E me disse que seu avô
trabalhara ali antigamente. Ao se aproximar, ele
afastou as ramagens tenras, por entre as touceiras
de mato. Colheu um melão-de-são-caetano e o
apertou entre os dedos, as partes se abrindo em
estrela, expondo as carnes vivas e sementes do
fruto silvestre. Era bonito, desde menino eu
achava: pena que não se prestava a melhor
degustação, só servia para alimentar o sonho.
Aquele fruto viera do passado, entrando portão
adentro para tomar conta de tudo. Eram as ramagens
da mão do tempo.
– Olhe isso!
O
menino tocou o pé na parede e me disse que estava
tudo podre. O telhado viera abaixo, os cupins
devoraram as madeiras. Eu ouvia o relato, mas não
acompanhava seus olhos. Ouvia mesmo era a
engrenagem trabalhando. As máquinas que nunca vi,
apenas as imaginara, pelo som do trabalho que os
cobogós me avisavam. Dois tijolos saltaram,
quebrando-se sobre o capim rasteiro que assoalhava
o lugar. Eram dois tijolos que se esmigalhavam,
mas eu os revia intactos, na parede firme, na cor
do óxido de terra, sempre novos.
O menino
montou de um salto, saiu cavalgando a bicicleta,
ia-se equilibrado. Segui atrás, sem saber ao certo
por que o acompanhava. Lá adiante, vi quando ele
entrou num terreiro, a casa simples mais ao fundo.
Continuei caminhando, até me acercar da grade
baixa do portão. Na frente da casa compunham-se
pequenos canteiros de flores, acenavam-me ali
nessa busca as rosas e seus espinhos. Havia uma
aroeira jovem, sob a qual um banco de madeira
convidava à sombra:
– Ô de casa! – me
arrisquei a novo rumo.
Um homem de boa
idade assomou à porta, logo me averiguava as
feições, certamente para ver se me conhecia de
outro tempo ou lugar. Ele veio ao meu encontro.
Senti o seu esforço a esmo: não, ele não me
conhecia. Eu desatei a cena:
– Boa-tarde. O
senhor é seu...?
– Ivo, eu mesmo. Boa
tarde. É alguma coisa? – ele respondeu e
perguntou, reticente.
– Nada. Ia passando,
seu neto me disse que o senhor trabalhou na antiga
fábrica, então...
– Ah, sim, trabalhei,
né? Mas isso faz muitos anos, pra lá de uns
trinta! – ele informou, enquanto apontava o banco
de madeira, num convite.
– É, faz tempo! -
comentei, enquanto nos sentávamos à
sombra. – O senhor veja: o tempo passa,
leva tudo. Leva a gente também - ele filosofou,
buscando apoio nas nuvens. – O senhor se
importaria de me falar um pouco daquele tempo, da
fábrica, como era antigamente?
A primeira
frase de sua resposta foi um gesto silencioso, de
quase em quase, desde seus olhos para os meus.
Depois seu olhar fugiu para os galhos da aroeira
que nos assistia. Esse seu Ivo, avô do menino,
estava já encabulado. Eu lhe trazia aquele assunto
morto, num repente voltando à luz da tarde. Ele
estava surpreso. Depois de se cultivar absorto,
num quase sorriso, ele murmurou, com jeito de
certa tristeza:
– Ah, não sei lhe contar,
não. Não sei de lá, nada.
– Mas, e o
serviço, lá dentro? - eu quis insistir.
–
Lá dentro, não lembro.
– Mas se o senhor
trabalhou lá?!
– Mas eu só trabalhava
fora.
– Ah – murmurei,
desapontado.
– Quem é o senhor? – ele
reverteu a entrevista, mas já eu
desanimara.
Fiquei de pé, olhei a aroeira
tranqüila, ele também se levantou. O menino vinha
de volta, os olhos acesos em nossa direção.
– Contou a ele, vô? – disse, com o ar
orgulhoso.
– O quê?
– Que o senhor
era vigia da fábrica?
Para mim, esta
revelação do menino, diante da fala vazia do seu
avô. Meio a contragosto, o velho esfregou as mãos,
com os dedos entrelaçados, e confirmou:
–
Eu era só mesmo vigia.
Os três ficamos
calados. Eu reconhecia naquele homem a função que
nos impedia de alimentar a curiosidade, de nos
arriscar à prova de alguns biscoitos. Ele ficava
de guarda na guarita para que os meninos vadios
não entrassem. No seu sem jeito, ele confessava
isso, meio que pesaroso, até mesmo descontente.
Restava-nos aquele silêncio em
branco.
Então eu cumprimentei o velho com
um gesto e disse “até logo”. Aquilo era mesmo um
adeus. Ele, cabisbaixo, nem respondeu. Segui pelo
caminho de barro, sem ânimo sequer de olhar para
trás. De repente, ouvi que o menino me seguia, em
meu rumo direto de volta à fábrica. Meus olhos
ainda iam cheios das imagens que aquele avô não
pudera me contar. Toda a fábrica para ele
resumia-se à mínima guarita, o tamanho exato de
sua história. Eu me senti pleno, tinha a fábrica
inteira dentro de meus olhos. E agora ia seguindo,
o menino guiando, sem palavras quais que fossem.
– Essa fábrica foi importante aqui, o
senhor sabe? – ele se esforçava para preencher a
página que o seu avô rasgara sem querer. Eu
fui seguindo pelo acostamento da pista
recém-asfaltada, enquanto o menino me acompanhava,
pedalando devagar. Aproximei-me do velho prédio e
agora eu via de fato as ramagens que invadiam os
restos das paredes, entrando e saindo pelos
cobogós sobreviventes.
De novo, entrei pelo
vão aberto das ruínas da guarita onde ficava o
vigia: era a boca do tempo que tudo engolira. E
percorri aquele mapa da fábrica, um debucho antigo
perdido nas memórias envelhecidas de uns e
sepultadas de outros. Eu rabiscava as imagens,
preenchendo-me de todos os talvezes. Riscava por
onde fosse que ficava cada máquina, onde era o
forno, onde se empacotava, tudo agora um
ex-existir das coisas e dos gestos. Os operários
de novo a postos, suas vozes e passos abafados
pela vibração das máquinas. Quantas vezes eu
sonhara ser um deles! Dentro de mim a massa ia
engrossando, os biscoitos tomando forma e daí ao
forno, saindo de lá quentinhos para os pacotes e
para as latas. Eu não podia me perder
daquele cheiro. Eu precisava me repor no saber
experiente que a vida desbota e destrata, nas
rimas certas do texto, a súmula do sim e do nada,
as respostas que a gente colhe como frutos de
safra no pomar. Estou aqui, mas cheguei tarde,
contudo em data aprazada: em vez de massa, preparo
um outro tipo de fermento. O relógio sumiu
de minha rota, eu me vi num ponto suspenso, as
reticências entre duas vírgulas absortas, antes de
assinar aquela sentença. Eu tinha de reconhecer:
três gerações, o avô, eu e o menino vivíamos cada
um sua própria alegoria, cada qual a mais
plausível e incerta. Em cada um de nós havia uma
fábrica diferente brotando de dentro do mato, que
invadia os nossos olhos e os nossos dias. Dos três
sobreviventes do sonho, apenas eu tinha pena e
papel; e sabia sentir as cores, o gosto e o sabor
das nuvens.
Tudo sobrevive nos sulcos que
as letras escavam sobre o mudo pergaminho. Debaixo
dos riscos, sobrevivem as demais
escritas. Eis a fábrica. Entrei de novo,
sem licença. Eu andava a esmo, pelo meio do salão
de trabalho, tropeçando nos matos rasteiros. Eu só
queria repor as peças em seus lugares, ligar as
máquinas, aquecer o forno e despertar a chaminé. O
menino de novo me observava, talvez curioso ante
minha empreitada. Eu perscrutava-lhe uma pergunta
que ele não alcançou formular. Eu, também
funcionário, em certo depois, minha função era a
última de todas. Enfim, eu agora a exercia. Ouvi
que a fábrica apitava e me senti arrepiar inteiro.
Estava findo esse turno de trabalho. Então eu fui
saindo.
– Esta fábrica está morta.
O
menino disse isto e retomou sua bicicleta. Deu uma
última olhada, foi-se a guiar para longe, fazendo
girar o tempo presente. Era já o cair da tarde; e
dentro de mim o apito da fábrica chorava. Eu via
de novo a fumaça formando nuvens e provava o
cheiro morno dos biscoitos. Continuei caminhando,
sem olhar para trás, os matos já não me
incomodavam. Era hora, e eu ia saindo pelo mesmo
portão aberto, por onde as minhas lágrimas
passavam.
Do livro O Desterro dos Mortos
(Relume Dumará), 2001
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