Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Aleilton Fonseca




A lira terçã e a liqüidez de rocha

(in A Tarde 27.01.2001)



As palavras batem forte
no coração dos poetas.
Fernando da Rocha Peres

 

A lírica do século XX entra em balanço com um saldo positivo, tendo legado uma rica experiência criativa que continuará alimentando os poetas por muito tempo. Isto porque a poesia moderna quebrou, de uma vez por todas, as regras clássicas que teimavam em resistir, e desdobrou-se em múltiplas possibilidades. Neste processo, as conquistas formais, a diversidade de temas, a concepção do poema como construção verbal, a reflexão metapoética, a liberdade dos ritmos, a multiplicidade da linguagem, a visão irônica e/ou agônica da condição humana compõem a gama de elementos essenciais de uma poesia que, geralmente, assumiu a atitude crítica, como discurso reflexivo que se confronta com a sociedade tecnocrática e dela se nutre.

Trata-se de um universo que parece prescindir do poético na sua organização estrutural, mas que, por isso mesmo, necessita visceralmente de sua manifestação como um acometimento, uma “doença” benigna, um processo de depuração existencial e de defesa, através do qual se sustenta o equilíbrio precário do sujeito sensível num mundo problemático.

Febre terçã, livro mais recente do poeta Fernando da Rocha Peres (Salvador: editora Corrupio, 2000; 144 págs. Preço: R$20), deve ser lido e discutido como peça desse legado na poesia baiana, tanto pelo exercício das liberdades modernas, como pela diversidade de temas que, trabalhados quase sempre em tom de reflexão, com uma ironia clara ou subliminar, resulta num balanço de atitudes e de práticas, levando em conta o próprio ofício de poeta e seu percurso pelo universo de vivências e significações.

Neste livro, Rocha Peres apresenta uma poesia que fixa na diversidade seu ponto de equilíbrio, embora sempre em tensão, do que decorre sua força expressiva e sua madureza. De fato, o resultado reflete a condição de um autor que assume posição polifônica de historiador, estudioso da cultura e poeta, cuja experiência, como tal, também se converte em matéria-prima de sua escrita. Assim, o universo que vem freqüentando ao longo de sua vida se torna um mosaico de recortes privilegiados, através de poemas contextualizados no espaço, no tempo e na cultura, qual fosse uma súmula lírica da biografia afetivo-intelectual do autor.

O próprio título já estabelece uma aproximação simbólica com a figura de Gregório de Mattos, autor pesquisado por Peres, em cuja condição de morte - e metáfora de sua condição de vida - uma febre terçã, inscreve o princípio norteador, a concepção e a justificação da coletânea. Estes sinais convertem olivro em homenagem ao poeta fundador, conforme assentado em nota paratextual introdutória. Tanto é assim, que a abertura do livro se dá com o poema ipsis litteris, que define a poesia através do alargamento dos sentidos de “febre terçã”, como movimento gerador da manifestação lírica: “Poesia é maleita, /febre terçã que não se enjeita” (pág. 15).

Essa febre, no entanto, é manifestação lírica de uma consciência crítica, constituída pelas vivências e autorizada pela experiência: “Carrego idade bastante/ para ver...” O que o poeta vê, revê, sente e significa são as imagens das andanças, as lições da vida, a confissão do aprendizado, o registro dos amores, entre outras experiências. Neste percurso, lugares, pessoas e situações desfilam como motivos, como homenageados, como titulares de dedicatórias, como indícios e fonte de onde fluem as vozes que incomodam os ouvidos atentos do poeta: “De onde chegam as vozes? / Não perturbam, mas são de veludos, velados barulhos de amores escondidos”. E, mas adiante: “As vozes aqui estão, acima dos registros./ Escutá-las é uma dádiva,/ música sem notações e partituras”. Essas “vozes” assumem uma significação múltipla que engloba desde os sinais da intuição, até as marcas das lembranças e dos registros, de onde fluem os discursos da poesia in natura, como dádiva em potência, sem tangência concreta, em estado puro de poesia.

Rocha Peres acredita que o poema pode estar depositado no silêncio. Cabe ao poeta ouvi-lo, resgatando-o da condição “inescrita” para a difícil imanência nas palavras: “O poeta merece o poema, / mas é difícil pautar”. “O poema fica na imaginação:/ impassível, curtido, duro, / nona face da impossibilidade, / fome atiçada no ar.”

Trata-se de uma reconfiguração da dupla imagem drummundiana: a luta com palavras e a procura da poesia, movimentos de superação do estado potencial para a difícil concretização em palavras, como se reitera no poema “Anatomia” (pág 21) e, de modo agudo, em “Heras”: “Urdir um poema/ é trabalho insano,/ loucura mesmo,/ palavra após palavra/ como heras no muro./ A poesia tem sua trama/ e, por isto, requer malícia” (pág. 27). Essa confrontação com os sentidos do ato de poetar é forte em todo o livro, atualizando um discurso que atravessou todo o século XX como manifestação especular da lírica.

Certamente Peres acredita, como pregava T.S. Eliot, que a poesia é o indispensável registro da sensibilidade humana, de geração a geração, o que a torna um signo comunitário. Cada poeta é um elo entre os demais, um vetor da corrente que torna o canto poético uma sucessão de vozes que se comunicam e interagem. As referências diretas e indiretas a poetas do passado e do presente, assim como a intelectuais, artistas e amigos, ao lado de referências afetivas, como o pai, os filhos, os amigos - projetam, no universo poético, o desejo de convivência e comunicação simbólicas através da poesia.

De certa forma, Febre terçã se inscreve na tradição moderna de uma poesia-síntese de vivências, pois assume a feição de balanço de uma trajetória pessoal de vida, em sentido mais amplo, respaldado no lastro biográfico. As identidades intelectuais e afetivas aparecem nitidamente nas referências, no registro das viagens, nas homenagens, em que nomes antigos e atuais, dentre poetas, artistas, vultos históricos, santos, amigos e parentes são citados, referenciados e até intertextualizados (“Evocanto para Gregório”, pág 129, por exemplo) com diferentes graus de aproximação, refletindo as afinidades eletivas do autor, no plano intelectual, artístico e pessoal.

A multiplicidade temática desse livro torna-o eclético e às vezes surpreendente, com poemas sobre aspectos e situações em torno de assuntos como amor, sexo, morte, cotidiano, lugares, cidades, existência, sonho, história, religiosidade, memória. O seu epicentro é sempre a reflexão febril em torno do ato de existir e do encontro com o semelhante, no diálogo concreto ou simbólico que só a poesia torna possível. Febre terçã pode ser visto como um balanço multifacetado de experiências de vida e de autodecifração constante, enquanto movimento em busca dos sentidos do ser-e-estar no mundo.

Por isso requer do leitor um grau de identificação intelectual e/ou afetiva, tanto em torno das reflexões que o autor propõe, como através da linguagem poética que adota. Enfim, Fernando da Rocha Peres revela nas palavras as imagens de sua poética pessoal, imantada na experiência lírica de um tempo precário de “poetas loucos, videntes mancos/ memória crua, lições perdidas,/ fazer poesia, delírio cão.” Palavra é dura rocha". Mas o poeta tem febre terçã. E o seu calor restaura a liqüidez da rocha.
 

 



Leia a obra de Fernando Peres
 

 

 

 

17/05/2005