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Antonio Olinto




A presença de Ascendino

 

Tribunal da Imprensa


(Rio de Janeiro, 02 de março de 2005)



 

Pertencente ao grupo dos romancistas brasileiros que, no século XX, mais longe foram no exame dos costumes de uma sociedade que se erguia depois da guerra 1939-45, fixou Ascendino Leite para sempre toda uma época de transformação por que passamos a partir do momento em que soldados brasileiros voltaram da Europa e influíram no fim de uma ditadura que nos vinha desde o começo dos anos 30. Em seus romances de então - "A viúva branca", "O salto mortal", "A prisão" - estava um classe média que tomava consciência de que as respostas aos desafios de cada instante deviam ser diferentes.

Se a alguns romancistas brasileiros coubesse a classificação de existencial, Ascendino Leite seria um deles. O homem que se consumia de câncer, o poeta satanista que fugia ao otimismo e o menino prisioneiro eram vítimas (ou causa) das mudanças do momento e colocavam a acentuação tônica de cada momento no ato de existir. Ser-lhes-ia decisivo conhecer a essência - de um caminho, de um objeto, de uma situação - mas era no existir que se concentravam.

Já então, de vez em quando, o romancista inseria um comentário fora do contexto narrativo, quase como que adotando o estilo de um diário. Como neste, depois de mostrar um ato de amor ao ar-livre: "Sobre a clareira recamada da relva, que havia recolhido aquele ato gratuito de convulsão física, nada mais ficaria senão a forma indistinta de seus corpos e o ardente vestígio escarlate de corolas que se tinham magoado".

De repente, abandonou Ascendino Leite sua residência no Rio de Janeiro, regressou à sua Paraíba natal para ali se dedicar a dois outros gêneros literários, a poesia e o diário, de que já publicou mais de 20 volumes. Que vem a ser o diário? Gênero múltiplo, suas especificidades está no extravasamento, na fuga às limitações. Daí o paradoxo que nele habita. E que lhe dá a sedução de segredo desvendado.

Mais do que em outros setores da literatura, neste é o escritor que vale. Não é por um ato de escolha que um livro que se intitula "jornal literário", aparece na primeira pessoa. Esta lhe convém. Faz parte de sua natureza. Quanto mais pessoais forem as páginas de um diário, mais objetivas se tornam. Se acontecimentos passados ou do momento interessam, é através de quem os descreve que readquirem vida. Destaco, nesta nova colheita ascendiniana, o volume "As pessoas - Jornal literário", em que seu estilo, em traços rápidos sugere apenas, e, com isto, tudo diz. Que a obra marca pelo estilo, é o que nos repetimos continuamente. Porque, na verdade, existe uma exata correlação entre a linguagem e o impulso anterior que a antecede. Em "As pessoas", como nos seus poemas e nos muitos volumes em busca de si mesmo, vê-se, percebe-se quase fisicamente que as palavras obedecem a Ascendino Leite. Ali estão elas para servir a ele, ciosas dos sentidos que o autor nelas imprime.

A cada página do livro - ia quase escrevendo "a cada passo do livro", consciente que estou de que livros de Ascendino caminham como gente, ou como bicho, dão passos para a frente como qualquer um de nós - a cada passo do livro pega Ascendino um aspecto do fazer literatura, do usar palavras seja falando, seja na escrita, como quando, num encontro com Xavier Placer, os dois comentam o conhecido verso de Augusto de Lima - "Plenilúnio de maio em montanhas de Minas" em que as cinco vogais têm seu papel, além da repetição de "M" em Maio, Montanhas e Minas - e nesse encontro e nos comentários que faz, mais uma vez me surge a palavra que me parece definir Ascendino Leite: intensidade.

Seu estilo é, tanto nos romances de antigamente como nos poemas e nos jornais literários de agora, intenso, de modo que não há um canto sequer da faina literária que o não atraia, mergulhado na palavras, alimentando-se delas, vivendo-as, numa inquieta procura da finalidade, não só da vida em geral, mas de qualquer dos aspectos, maiores ou menores, em que ela se abriga.

Em artigo que escrevi, há muitos anos, sobre "o Salto mortal", citei a pergunta que Flanenery O'Connor fez em seu ensaio "The fiction writer and his country": "Quem falará hoje em nome da América?" - o que me levou a achar que em nome do Brasil quem fala é Ascendino Leite.

Nos livros de sua vivência no Rio de Janeiro, nos artigos de jornal, na obra que, de volta ao solo da infância, realizou e vem realizando, levando-nos, a cada instante, a cada livro novo, a cada poema, a cada jornal literário, a que nos detenhamos para pensar, levados pela intensidade que ele põe nas palavras que diz, na sua luta para nos mostrar a nós mesmos e, mostrando-nos, falar por nós.

"As pessoas - Jornal literário", de Ascendino Leite, sai pela Editora Idéia, de João Pessoa. Prefácios de Joacil de Brito Pereira e Francisco Carvalho. "Orelha" de Marcos de Farias Costa. Na sua soberana posição de ser escritor, só escritor, quase no final de "As pessoas", Ascendino proclama: "Escrever é afugentar obsessões. Não escrevendo sou o modelo da morte imcompleta. Escrevendo sem compromisso, dificilmente alguém poderá ser infiel a si mesmo. - Escrevo. Aqui, eu sou todo eu. E minhas transparências".
 



Ascendino Leite
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02/02/2006